OTELO
E SANT’IAGO
NO
PASSEIO PÚBLICO
Entramos
no Passeio Publico. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias
espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos
para o terraço. Andando, para me dar animo, falei do jardim:
―
Ha muito tempo que não venho aqui, talvez um anno.
―
Perdôe-me, atalhou elle, não ha tres mezes que esteve aqui com o nosso visinho
Padua; não se lembra?
―
É verdade, mas foi tão de passagem...
―
Elle pediu a sua mãe que o deixasse trazer comsigo, e ella, que é boa como a
mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que
você ande com o Padua na rua.
―
Mas eu andei algumas vezes...
―
Quando era mais jovem; em creança, era natural, elle podia passar por creado.
Mas você está ficando moço, e elle vae tomando confiança. D. Gloria, afinal,
não póde gostar disto. A gente Padua não é de todo má. Capitú, apesar daquelles
olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos della? São assim de
cigana obliqua e dissimulada. Pois, apesar delles, poderia passar, se não fosse
a vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e elle não
nego que seja honesto, tem um bom emprego, possue a casa em que móra, mas
honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor
com as más companhias em que elle anda. Padua tem uma tendencia para gente
réles. Em lje cheirando a homem chulo é com elle. Não digo isto por odio, nem
por que elle fale mal de mim e se ria, como se riu, ha dias, dos meus sapatos
acalcanhados...
―
Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor;
pelo contrario, um dia, não ha muito tempo, disse elle a um sujeito, em minha
presença, que o senhor era “um homem de capacidade e sabia falar como um
deputado nas camaras.”
José
Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o
rosto; depois replicou:
―
Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me tem feito o favor de juizos
altos. E nada disto impede que elle seja o que lhe digo.
Tinhamos
outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar.
―
Vejo que o senhor não quer senão o meu beneficio, disse eu depois de alguns
instantes.
―
Pois que outra cousa, Bentinho?
―
Neste caso, peço-lhe um favor.
―
Um favor? Mande, ordene, que é?
―
Mamãe...
Durante
algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cór. José Dias
tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e
espetava os olhos em mim, ancioso tambem, como a prima Justina na vespera.
―
Mamãe quê? Que é que tem mamãe?
―
Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente.
―
Jose Dias endireitou-se pasmado.
―
Não posso, continuei eu, não menos pasmado que elle, não tenho geito, não gósto
da vida de padre. Estou por tudo o que ella quizer; mamãe sabe que eu faço tudo
o que ella manda; estou prompto a ser o que fôr do seu agrado, até cocheiro de
omnibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para
mim.
Todo
esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptorio,
como póde parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e
timida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava certamente com
a resistencia, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o assombrou
foi esta conclusão:
―
Conto com o senhor para salvar-me.
Os
olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que
eu contava dar-lhe com a escolha da protecção não se mostrou em nenhum dos
musculos. Toda a cara delle era pouca para a estupefacção. Realmente, a materia
do discurso revelara em mim uma alma nova; eu proprio não me conhecia. Mas a
palavra final é que trouxe um vigor unico. José Dias ficou aturdido. Quando os
olhos tornaram às dimensões ordinarias:
―
Mas que posso eu fazer? perguntou.
―
Póde muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede
muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de
talento...
―
São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que merecem
tudo... Ahi está! nunca ninguém me ha de ouvir dizer nada de pessoas taes;
porque? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um
cavalheiro perfeitissimo. Tenho conhecido familias distinctas; nenhuma poderá
vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim
confesso que o tenho, mas é só um, ― é o talento de saber o que é bom e digno
de admiração e de apreço.
―
Ha de ter tambem o de proteger os amigos, como eu.
―
Em que lhe posso valer, anjo do ceu? Não hei de dissuadir sua mãe de um
projecto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos annos. Quando
pudesse, é tarde. Ainda hontem fez-me o favor de dizer: “José Dias, preciso
metter Bentinho no seminario.”
Timidez
não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provavel que, com a
indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria
preciso confessar-lhe que estivera á escuta, atraz da porta, e uma acção valia
outra. Contentei-me de responder que não era tarde.
―
Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quizer.
―
Se eu quizer? Mas que outra cousa quero eu, senão servil-o? Que desejo, senão
que seja feliz, como merece?
―
Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou prompto para tudo; se ella
quiser que eu estude leis, vou para São Paulo...
Machado
de Assis
Dom
Casmurro
H.
Garnier. Rio / Pariz.
1ª
edição.