terça-feira, 26 de novembro de 2013

TRIBUNA LIVRE


OTELO E SANT’IAGO
NO PASSEIO PÚBLICO

Entramos no Passeio Publico. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar animo, falei do jardim:

― Ha muito tempo que não venho aqui, talvez um anno.

― Perdôe-me, atalhou elle, não ha tres mezes que esteve aqui com o nosso visinho Padua; não se lembra?

― É verdade, mas foi tão de passagem...

― Elle pediu a sua mãe que o deixasse trazer comsigo, e ella, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Padua na rua.

― Mas eu andei algumas vezes...

― Quando era mais jovem; em creança, era natural, elle podia passar por creado. Mas você está ficando moço, e elle vae tomando confiança. D. Gloria, afinal, não póde gostar disto. A gente Padua não é de todo má. Capitú, apesar daquelles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos della? São assim de cigana obliqua e dissimulada. Pois, apesar delles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e elle não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possue a casa em que móra, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que elle anda. Padua tem uma tendencia para gente réles. Em lje cheirando a homem chulo é com elle. Não digo isto por odio, nem por que elle fale mal de mim e se ria, como se riu, ha dias, dos meus sapatos acalcanhados...

― Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrario, um dia, não ha muito tempo, disse elle a um sujeito, em minha presença, que o senhor era “um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas camaras.”

José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou:

― Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me tem feito o favor de juizos altos. E nada disto impede que elle seja o que lhe digo.

Tinhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar.

― Vejo que o senhor não quer senão o meu beneficio, disse eu depois de alguns instantes.

― Pois que outra cousa, Bentinho?

― Neste caso, peço-lhe um favor.

― Um favor? Mande, ordene, que é?

― Mamãe...

Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cór. José Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ancioso tambem, como a prima Justina na vespera.

― Mamãe quê? Que é que tem mamãe?

― Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente.

― Jose Dias endireitou-se pasmado.

― Não posso, continuei eu, não menos pasmado que elle, não tenho geito, não gósto da vida de padre. Estou por tudo o que ella quizer; mamãe sabe que eu faço tudo o que ella manda; estou prompto a ser o que fôr do seu agrado, até cocheiro de omnibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim.

Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptorio, como póde parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e timida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava certamente com a resistencia, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão:

― Conto com o senhor para salvar-me.

Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da protecção não se mostrou em nenhum dos musculos. Toda a cara delle era pouca para a estupefacção. Realmente, a materia do discurso revelara em mim uma alma nova; eu proprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor unico. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram às dimensões ordinarias:

― Mas que posso eu fazer? perguntou.

― Póde muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento...

― São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que merecem tudo... Ahi está! nunca ninguém me ha de ouvir dizer nada de pessoas taes; porque? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitissimo. Tenho conhecido familias distinctas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas é só um, ― é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço.

― Ha de ter tambem o de proteger os amigos, como eu.

― Em que lhe posso valer, anjo do ceu? Não hei de dissuadir sua mãe de um projecto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos annos. Quando pudesse, é tarde. Ainda hontem fez-me o favor de dizer: “José Dias, preciso metter Bentinho no seminario.”

Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provavel que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera á escuta, atraz da porta, e uma acção valia outra. Contentei-me de responder que não era tarde.

― Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quizer.

― Se eu quizer? Mas que outra cousa quero eu, senão servil-o? Que desejo, senão que seja feliz, como merece?

― Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou prompto para tudo; se ella quiser que eu estude leis, vou para São Paulo...


Machado de Assis
Dom Casmurro
H. Garnier. Rio / Pariz.

1ª edição.