quarta-feira, 24 de outubro de 2012

CONGONHAS


OS NOVOS INCONFIDENTES



Aposentadoria   (cont.)

José Filadelfo Machado Filho
José Firmo
José Firmo de Aguiar
José Francisco de Oliveira
José Gerardo Grossi
José Gílton Pinto Garcia
José Godói
José Gomes Talarico
José Gonçalves de Souza
José Henrique de Souza
José Hermógenes Barroso de Morais
José Holanda Ramos
José Honório da Silva
José Ignácio Ferreira
José Ilídio do Nascimento
José Joaquim da Silva
José Joaquim Martins
José Leal Ferreira Júnior
José Leite Lopes
José Leonardo da Silva
José Lima de Souza
José Lopes
José Luiz Leida
José Luiz Ribeiro Gonzales
José Manoel de Mello
José Maria Alves
José Maria de Araújo Osório
José Maria de Oliveira
José Maria de Souza
José Maria Delgado Tubino
José Mariano de Freitas Beck
José Marques de Souza
José Moisés Grilo
José Molina Júnior
José Napoleão Ferreira
José Naufel
José Oliveira do Nascimento
José Pacheco Júnior
José Padre de Souza Júnior
José Paulo Sepúlveda Pertence
José Pereira da Motta
José Pereira de Azevedo
José Pereira de Oliveira
José Péricles Couto Alves
José Pio de Lima Antunes
José Pontes Netto
José Porfírio Lagranha do Amaral
José Rangel Areias
José Rodrigues de Carvalho
José Rodrigues Vieira Neto
José Sampaio Campista
José Saraiva de Macedo
José Sette de Barros
José Silva
José Tinoco Barreto

RAPOSOS


OS INCONFIDENTES


Ordem do Visconde de Barbacena ao Des. Pedro J. A Saldanha para apreensão de papéis e seqüestro, no ato das prisões de Tomás Antônio Gonzaga e Domingos de Abreu Vieira; Cachoeira, 21-05-1789.

Logo que Vossa Mercê receber aviso do Tenente-Coronel Francisco Antônio Rebelo, irá com os oficiais competentes fazer apreensão em todos os papéis do Desembargador Tomás Antônio Gonzaga, e seqüestro nos seus bens.

Concluída esta diligência, passará à casa do Tenente-Coronel Domingos de Abreu Vieira, que achará também em segurança, e depois de o mandar recolher no segredo da Cadeia dessa vila, fará rigoroso exame em todos os seus papéis, separando e apreendendo somente os que forem suspeitosos, ou conducentes à importante averiguação que é objeto dos sobreditos procedimentos, e deixará tudo o mais em boa arrecadação, de forma que não possa haver, nem depois alegar-se. prejuízo algum, não só a respeito dele mas principalmente do grande contrato que administra.

E tanto para este exame como para todos os mais pertencentes ao mesmo negócio, ordeno que ajude e concorra com Vossa Mercê o Doutor José Caetano César Manitti, Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca do Sabará, e que lhe sirva de escrivão nos autos judiciais que pedirem segredo, o qual está prevenido já para esse fim e nesta inteligência.

Deus Guarde a Vossa Mercê. Cachoeira do Campo, 21 de maio de 1789.


Senhor Desembargador Ouvidor Geral e Corregedor Pedro José Araújo de Saldanha

terça-feira, 23 de outubro de 2012

CABO FRIO


EMANUEL E FEDERICO



Na Samarra, aliás, Manuelzão conduzira o início de tudo, havia quatro anos, desde quando Federico Freyre gostou do rincão e ali adquiriu seus mil  e mil alqueires de terra asselvajada. — “Te entrego, Manuelzão, isto te deixo em mão, por desbravar!” E enviou o gado. Manuelzão: sua mão grande. Sua porfia. Pois ele sempre até ali usara um viver sem pique nem pouso —  fazendo outros sertões, comboiando boiadas, produzindo retiros provisórios, onde por pouquinho prazo se demorava — sabendo as poeiras do mundo, como se navega. Mas, na Samarra, ia mas era firmar um estabelecimento maior. Sensato se alegrara. Mordeu no ser. Arreuniu homens e veio, conforme acostumado.


João Guimarães Rosa
Corpo de Baile – 1º volume
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

domingo, 21 de outubro de 2012

ENTRE RIOS DE MINAS


O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM



Por esse tempo, Jesus passou, num sábado, pelas plantações. Os seus discípulos, que estavam com fome, puseram-se a arrancar espigas e a comê-las. Os fariseus, vendo isto, disseram: “Olha só! Os teus discípulos a fazerem o que não é lícito fazer num sábado!” mas ele respondeu-lhes: “Não lestes o que fez Davi e seus companheiros quando tiveram fome? Como entrou na casa de Deus e como eles comeram os pães da proposição, que não era lícito comer, nem a ele, nem aos que estavam com ele, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que com os seus deveres sabáticos os sacerdotes no Templo violam o sábado e ficam sem culpa? Digo-vos que aqui está algo maior do que o Templo. Se soubésseis o que significa: Misericórdia é que eu quero e não sacrifício, não condenaríeis os que não têm culpa. Pois o Filho do Homem é senhor do sábado.


Mt 12, 1-8

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

SETE LAGOAS


A BÍBLIA SAGRADA



Dois anos depois sucedeu que o Faraó teve um sonho: ele estava de pé junto ao Nilo e viu subir do Nilo sete vacas de bela aparência e bem cevadas, que pastavam nos juncos. E eis que atrás delas subiram do Nilo outras sete vacas, de aparência feia e mal alimentadas, e se alinharam ao lado das primeiras, na margem do Nilo. E as vacas de aparência feia e mal alimentadas devoraram as sete vacas bem cevadas e belas de aparência. Então o Faraó acordou.

Ele tornou a dormir e teve um segundo sonho: sete espigas subiam de uma mesma haste, granuladas e belas. Mas eis que sete espigas mirradas e queimadas pelo vento oriental nasciam atrás delas. E as espigas mirradas devoravam as sete espigas granuladas e cheias. Então o Faraó acordou: era um sonho!

De manhã, com o espírito conturbado, o Faraó chamou todos os magos e todos os sábios do Egito e lhes contou o sonho que tivera, mas ninguém pôde explicá-lo ao Faraó. Então o copeiro-mor dirigiu a palavra ao Faraó e disse: “Devo confessar hoje minhas faltas! O Faraó se irritara contra seus servos e os mandara prender na casa do comandante dos guardas, a mim e ao padeiro-mor. Tivemos um sonho, ele e eu, na mesma noite, mas a significação do sonho era diferente para cada um. Havia ali conosco um jovem hebreu, um escravo do comandante dos guardas. Nós lhe contamos nossos sonhos e ele no-los interpretou: ele interpretou o sonho de cada um. E exatamente como ele nos explicara, assim aconteceu: eu fui restituído em meu emprego e o outro foi enforcado.

Então o Faraó mandou chamar José, e depressa ele foi trazido da prisão. Ele se barbeou, mudou de roupa e se apresentou diante do Faraó. O Faraó disse a José: “Eu tive um sonho e ninguém pode interpretá-lo. Mas ouvi dizer de ti que quando ouves um sonho podes interpretá-lo.” José respondeu ao Faraó: “Quem sou eu! É Deus quem dará ao Faraó uma resposta favorável.”


Gn 41, 1-16

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

GRANDE SERTÃO


DE DIANTE PRA TRÁS



Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou  meu contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência —  calma de que minha dor passasse; e que podia esperar muito longo tempo. O que vendo, tive vergonha, assaz.

Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei:

— “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!”

Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu:

— “Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais...”

E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras.

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco — que de tão grande se comparece — parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.


                                    


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

CORDISBURGO


UM APRENDIZ DE FEITICEIRO



SILÊNCIO

Que ninguém saiba
o que fiz ou o que faço.
Se a alma fala,
que fale com Deus,
não com outros homens
— estes são inimigos —
e de guardar-me careço
bem sozinho comigo,
pois se quisermos salvar-nos,
chegar a bom porto,
a bom termo, à bonança,
é preciso calar.


março/82

PETRÓPOLIS


MACHADO



DONA GLÓRIA

Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Matacavalos, onde vivera os dous últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes.

Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, dona Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dous anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia touca branca de folhos. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite.

Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá idéia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para  todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.

Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo, em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dous bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: “Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!”. O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: “Vejam como esta moça me quer...” Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.


Machado de Assis
Dom Casmurro

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

BALAIO DE GATO


HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA



Os Novos Retratos do Brasil

O debate religioso era apenas um dos aspectos por que a consciência coletiva traduzia instintivamente o sentimento de que um novo Brasil devia emergir das crises de 1930 e 1932. Se, como ficou assinalado, a Constituição de 1934 configurou-se, afinal, como um melancólico malogro político, a Constituinte, ao contrário, parecia inscrever-se na atmosfera  de reavaliação da realidade brasileira , a essa altura refletida em livros tão diversos como, no campo da criação literária propriamente dita, Banguê e Essa Negra Fulô!, de Jorge de Lima; Samba, de Orestes Barbosa; Urucungo, de Raul Bopp; Noroeste e Outros Poemas do Brasil, que Ribeiro Couto publicava simultaneamente com Província (impresso em Coimbra) e a coletânea de contos Clube das Esposas Enganadas, a que podemos acrescentar a significativa reedição de A Ilusão Americana, de Eduardo Prado, com prefácio de Augusto Frederico Schmidt; Terra Imatura, de Alfredo Ladislau, em terceira edição; Terra de Ninguém, de Albertino Moreira; Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire; Fórmula da Civilização Brasileira, de Aníbal Falcão (1859-1900), e a Introdução à Realidade Brasileira, de Afonso Arinos de Melo Franco.

De fato, nunca se falou tanto em realidade brasileira como nessa época — cada um, claro está, vendo-a de maneira diferente. Afonso Arinos começava com a declaração ao mesmo tempo juvenil e inquietante de que havia “conquistado a verdade”, convicção igualmente partilhada por todos os ideólogos do momento. Levado pela lógica dos fatos, que não raro desvenda o artifício todo arbitrário da lógica das convicções, Afonso Arinos acentuava, a certa altura, que “uma doutrina falsa pode conquistar o mundo pelas mesmas vias que uma doutrina verdadeira”, o que significa serem “falsas” ou “verdadeiras” as doutrinas que como tais reputamos. Desde o século XVII, o teatro de Molière havia revelado aos teólogos escandalizados “cette ressemblance du vice avec la vertu”, e, em 1963, o insuspeito François Mauriac concluía que, no Tartufo, não é a canalhice do falso devoto que testemunha contra a religião, mas a tolice do verdadeiro devoto. A “verdade” não é apenas relativa: ela é também movediça, múltipla e fragmentária.


Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960)
Cultrix. São Paulo, SP. Editora da Universidade de
São Paulo. São Paulo, SP.
1ª edição. 1979.

domingo, 14 de outubro de 2012

SETE LAGOAS


PANEM NOSTRUM



Hoje, o Rio das Velhas, tem o supremo prazer de apresentar o melhor poema — ou um dos melhores — do maior poeta brasileiro (ao lado de Jorge de Lima), Cruz e Sousa.

REGINA COELI

Ó Virgem branca, Estrela dos altares,
Ó Rosa pulcra dos Rosais polares!

Branca, do alvor das âmbulas sagradas
E das níveas camélias regeladas.

Das brancuras da seda sem desmaios
E da lua de linho em nimbo e raios.

Regina Coeli das sidéreas flores,
Hóstia da Extrema-Unção de tantas dores.

Ave de prata e azul, Ave dos astros...
Santelmo aceso, a cintilar nos mastros...

Gôndola etérea de onde o Sonho emerge...
Água Lustral que o meu Pecado asperge.

Bandolim do luar, Campo de giesta,
Igreja matinal gorjeando em festa.

Aroma, Cor e Som das Ladainhas
De Maio e Vinha verde d’entre as vinhas.

Dá-me, através de cânticos, de rezas,
O Bem, que almas acerbas torna ilesas.

O Vinho d’ouro, ideal, que purifica
Das seivas juvenis a força rica.

Ah! faz surgir, que brote e que floresça
A Vinha d’ouro e o vinho resplandeça.

Pela Graça imortal dos teus Reinados
Que a Vinha os frutos desabroche iriados.

Que frutos, flores, essa Vinha brote
Do céu sob o estrelado chamalote.

Que a luxúria poreje de áureos cachos
E eu um vinho de sol beba aos riachos.

Virgem, Regina, Eucaristia, Coeli,
Vinho é o clarão que ao teu Amor impele.

Que desabrocha ensangüentadas rosas
Dentro das naturezas luminosas.

Ó Regina do Mar! Coeli! Regina!
Ó Lâmpada das naves do Infinito!
Todo o Mistério azul desta Surdina
Vem d’estranhos Missais de um novo Rito!...


Cruz e Sousa
em Broquéis

sábado, 13 de outubro de 2012

CORDISBURGO


G. RAMOS



Os homens do primado espiritual viviam bem, tratavam do corpo, mas nós, desgraçados materialistas, alojados em quartos de pensão, como ratos em tocas, a pão e laranja, como se diz na minha terra, quase nos reduzimos a simples espíritos. E como outros espíritos miúdos dependiam de nós, e era preciso calçá-los, vesti-los, alimentá-los, mandá-los ouvir cantigas e decorar feitos patrióticos, abandonamos as tarefas de longo prazo, caímos na labuta diária, contando linhas, fabricamos artigos, sapecamos traduções, consertamos engulhando produtos alheios. De alguma forma nos acanalhamos. Por que foi que um dos meus livros saiu tão ruim, pior que os outros? pergunta o crítico honesto. E alinha explicações inaceitáveis. Nada disso: acho que é ruim porque está mal escrito. E está mal escrito porque não foi emendado, não se cortou pelo menos a terça parte dele.

Aqui findo o resumo dos empecilhos até hoje apresentados à narração que inicio. Terão eles desaparecido? Alguns se atenuaram, outros se modificaram, determinam o que impediam, converteram-se em razões contrárias. Estarei próximo dos homens gordos do primado espiritual? poderei refestelar-me? Não, felizmente. Se me achasse assim, iria roncar, pensar na eternidade. Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze. Contudo é indispensável um mínimo de tranqüilidade, é necessário afastar as miseriazinhas que nos envenenam. Fisicamente estamos em repouso. Engano. O pensamento foge da folha meio rabiscada. Que desgraças inomináveis e vergonhosas nos chegarão amanhã? Terei desviado esses espectros? Ignoro. Sei é que, se obtenho sossego bastante para trabalhar um mês, provavelmente conseguirei meio de trabalhar outro mês. Estamos livres das colaborações de jornais e das encomendas odiosas? Bem. Demais já podemos enxergar luz a distância, emergimos lentamente daquele mundo horrível de treva e morte. Na verdade estávamos mortos, vamos ressuscitando.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. Viagens. (Obra póstuma).
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1953.

HOMENAGEM AO ZÉ



JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

OUTROS TEMPOS...


GR



Do ponto de vista existencialista, a desgraça humana radica no fato de sermos temporais, pensa Jean-Paul Sartre  na sua interpretação da temporalidade em William Faulkner. Segundo ele, o que o escritor americano descobre não é esse ponto de interseção ideal entre o passado e o futuro, mas um presente essencialmente catastrófico. Nesse seu tempo narrativo d’O Som e a Fúria, ‘nada sucede, a história jamais se desenrola.” O futuro não existe para além desse presente detido: nulo e, ao mesmo tempo aniquilante. Em termos dialéticos sartreanos, esse tempo  (d)escrito por Faulkner é “imobilidade fugidia”. Essa vida cheia de ruído e de fúria é, também, o reductum absurdum de toda experiência humana. O seu desespero existencial antecipa-se a toda e qualquer metafísica; noutras palavras emanadas destas “narrativas” imóveis, o futuro está vedado para todos nós... No seu exempla de Situations I  —  adquirido em Paris (l948) , segundo anota na página inicial — JGR faz algumas marginálias. Marca, inclusive, este trecho: “O passado ganha aí  [em Faulkner] uma espécie de super-realidade: os contornos são duros e nítidos, imutáveis; o presente, inominável e fugitivo, defende-se mal contra ele; está cheio de buracos, e por esses buracos, as coisas passadas invadem-no, fixas, imóveis, silenciosas como juízes ou, ainda, com o olhar.”

Durante o seu “pacto” frustrado, Riobaldo, no ermo do lugar e com o frio que o reduz a mero ponto de dúvida, ele fica esvaziado no íntimo de sua erma cronologia: “Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia.” Hora desolada essa a do trato, e a partir da qual Riobaldo se faz insistentemente e mesma pergunta desde várias perspectivas. Primeiro, enquanto demoníaca assombração que o persegue em luta corpo-a-corpo com a consciente resolução final de ter aceito o pacto nas Veredas-Mortas: “O aquilo.  (...) Declaro ao senhor: hora chegada.” Depois, como revelação ao ver a Maior Alegria concentrar-se nos olhos risonhos de Diadorim; ou seja, o-que-há, o que existe: “Pensei; quase disse. Aquilo durou o de um pingo no ar. Eu havia de? E por último, à maneira negativa e trágica do abismo espantoso:  “Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo.”

Para o tempo pensado que impregna essa essência baldia, como o bergsoniano, a temporalidade é a condição fundamental da ação. Não havendo esta, estaríamos perante uma inversão que almejasse espacializar o tempo. Nesse processo  neato, julga Henri Bergson, toda representação espacial do tempo implica uma metafísica inevitável, diferente, e que é “a metafísica natural do espírito que especula sobre o devir.” O filósofo francês pede para não ser considerado um metafísico, caso chamarem assim os homens das construções dialéticas. Constatar não é construir; a construção dialética, julga ele, foi feita por Platão, que considerava o tempo enquanto privação de eternidade. As figuras roseanas, no entanto, não se privam dessa brevidade cósmica que é, a um tempo, imóvel e fugaz.

No relato desse deserto espiritual que é o grande sertão, o tempo destituído de vazão fica estagnado ali mesmo, como Riobaldo diz,  remando vida solta: “Sertão estes seus vazios.” Se a experiência iniciática carece de continuum, aquela pela qual o poeta-jagunço peleja denodadamente é: Só a continuação de airagem, trastejo, trançar o vazio.” Mais ainda..., as tribulações apocalípticas não o inquietam, mesmo sob o céu botando mais nuvens: “Que modo que senseei, do vazio do tempo em redor — e que eu entredisse: —  ‘o sertão vem?’ Vinha.”

Nas entrelinhas tortuosas dos seus textos, JGR foi lapidar na equação da sua proposta enquanto “ato de não”. A negatividade intrínseca a esse ato — dialético e dalgum efêmero modo totalizador — é uma visão mística inquestionável. Uma ofuscante revelação de imagens que se apresentam sob a luz obscura dos seus enigmas.


Héctor Olea
O Professor Riobaldo: um Novo Místico da Poetagem
Ateliê Editorial. Cotia, SP. Oficina do Livro Rubens Borba de Morais.

São Paulo, SP. 2006.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

PETRÓPOLIS


MACHADO



Era urgente concluir esses estudos de grau superior, que os casamentos aguardavam... (Se o noivo fosse discreto e a noiva herdeira rica, cumpriria ao rapaz propor que se fizesse “escritura de separação de bens”, com a esperança talvez, fiado no amor da moça, de que ela não concordasse com essa medida de prudência.)

Quase todos os futuros bacharéis ou os médicos futuros tinham as suas namoradas, à espera do pedido, no que pesasse a opinião de uma D. Joaquina Aguiar, segundo a qual uma noiva só devia conhecer o noivo no dia do casamento, “e já é conceder muito”.

Os pedidos se faziam naturalmente ao pai da moça, e, se esta fosse viúva, como era o caso de Lívia, na presença de um parente de responsabilidade; Estácio preferiria recorrer a uma carta, para pedir a mão de Eugênia.

A noiva, comprometida, gastaria boa parte dos pensamentos diários imaginando a cerimônia do consórcio, legalmente celebrado perante a câmara eclesiástica e sacramentado na igreja: “as carruagens — ou antes, todo o préstito: “cavalos brancos, arreios finos, cocheiros de libré, coisa bonita” — o apuro do noivo, a sua própria graça, a coroa de flores de laranjeira, que a havia de adornar; enfim talhava já o vestido branco e pregava as rendas de Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do gênero humano”.”

As “cartas de participação”, enquanto isso, iriam circulando, e a noiva sempre a  “idealizar as suas “bodas de estronto”. Veria “mais de um dignitário de Estado inclinar-se diante dela, e dar-lhe os parabéns. Os mais célebres colos da cidade” far-lhe-iam corte. “Equipagens ricas, cavalos briosos, atirando as patas com vagar e graça, pela chácara dentro, muitas librés particulares, flores, luzes; fora na rua, a multidão olhando.” (Para júbilo do noivo, lado a lado com a esposa viria o prazer de um “dote”, que talvez lhe fosse entregue “sob a forma de bons prédios”.)

O fecho do devaneio seria a surpresa de ser recebida em casa, de volta da igreja, por “um dilúvio de folhas de rosa”, atiradas pelas escravas.

As noivas, como as de hoje, vestiam-se de branco; mas Fidélia, por seu estado de viúva, haveria de vestir-se com roupa escura e afogada, em seu segundo casamento, “as mangas presas nos pulsos por botões de granada, e o gesto grave”: casar-se-ia “ao meio-dia em ponto, na matriz da Glória, poucas pessoas, muita comoção”.

Depois das bodas, muita vez, jantar e baile.

Passada a lua de mel, em lugares aprazíveis  —  Petrópolis, por exemplo, ou, o que era mais freqüente, Tijuca  — , ou em viagens mais audaciosas e longínquas (Carlos Maria e Maria Benedita gozariam três meses de Europa), a vida do novo par estaria consolidada para o desfruto dos prazeres da família e do amor conjugal, não poucas vezes em quartos separados, quando não adviessem brigas e divórcios ou desquites.

Daqueles doces momentos de noivado e matrimônio guardar-se-iam retratos no sigilo das gavetas ou exibidos nas paredes, quando não sobre mesinhas, belamente encaixilhados, ou em álbuns: em vez de telas ou desenhos, ou de miniaturas — o que “nem era já aplicação sensata da arte das imagens “depois do daguerreótipo, então em plena posse de ambos os mundos” —, fotografias autênticas.

A fotografia era a documentação fiel dos momentos solenes da vida: “Tempo há de vir —  observava o Conselheiro Aires — em que a fotografia entrará no quarto dos moribundos para lhes fixar os últimos instantes, e se ocorrer maior intimidade entrará também.”


Miécio Táti
O Mundo de Machado de Assis
O Rio de Janeiro na obra de Machado de Assis
Estado da Guanabara. Secretaria de Estado da Educação e Cultura.
1961.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

RAPOSOS


OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA   (cont.)

Jorge Ferreira da Silva
Jorge Galvão dos Santos
Jorge Peixoto Pache de Faria
Jorgino de Souza Gomes
José Adonias de Araújo Neto
José Aguiar Dias
José Albano de Macedo
José Alexandre Timbé de Vilhena
José Alves de Lima
José Amaury de Rossis Portugal
José Américo da Mota Pessanha
José Antônio da Incarnação
José Antônio da Silva
José Antônio de Azevedo
José Arimatéia de Lima
José Arimatéia Rosa
José Arlindo dos Santos
José Arthur Gianotti
José Augusto Lessa
José Augusto Pereira das Neves
José Augusto Ribeiro
José Baltazarino dos Santos
José Baptista da Costa
José Barbosa Porto
José Bernardo Cabral
José Bezerra de Melo
José Bonifácio Machado Leal Moreira
José Campelo Filho
José Carlito dos Santos
José Carlos Alvim
José Carlos Argolo Fraga
José Carlos da Silva Flores
José Carlos Duarte Rocha
José Carlos Ferreira Saraiva
José Carlos Maciel da Silva
José Carlos Simões
José Clóvis de Souza
José Costa Ferreira
José de Araújo
José de Lima Siqueira
José de Lima Siqueira
José de Oliveira Torres
José de Sant’Anna
José de Souza Ramos
José Dionísio Gavião Escobar
José dos Santos Serra
José Dutra
José Eduardo Brasil Vivácqua
José Elias de Moraes
José Elias Gonzaga
José Emílio da Silva
José Fagundes de Menezes
José Feliciano de Figueiredo
José Fernandes Pedral Sampaio

BELO HORIZONTE


HOMENAGEM



OS SINOS DA AGONIA

Começou a ouvir um sino muito longe, em longas pancadas sombrias e espaçadas. As pancadas já no fim, há muito estavam tocando, só agora reparou. Não podia saber o que anunciavam, apenas pressentia, pela tristeza redonda das badaladas. Você que entende de sino, que é que estão tocando, Isidoro?

O preto custava cada vez mais a responder, achando que só os olhos bastavam. A fala ia perdendo para ele qualquer serventia, só o silêncio contava. Não escutou antes? disse. Não, é a primeira vez, disse Januário custoso. O preto parece que vai rir, os olhos já riam. Não escutou mesmo antes? Ou escutou e não contou? É capaz de eu ter escutado antes, respondeu Januário. Não se lembrava. Não é a primeira vez, disse o preto a contragosto, não querendo ainda responder. É capaz de ir assim o dia inteiro.

Passado ainda algum tempo, disse o preto agora vem a última. Preste bem atenção. Não sabe o que é, não contou. Eu contei, mesmo sem querer eu conto. São as sete pancadas compridas, muito espaçadas, como de costume. Mesmo eu falando, não sabe o que é? Parece brinquedo, meu branco, mas eles estão tocando é mesmo a agonia.

(E Tirésias sorria vitorioso detrás de sua cegueira.)

A minha agonia, pensou Januário numa estremeção. Um calafrio correu toda a espinha, desde a nuca. Não, não era dele a agonia. De algum outro. Um outro também carecia de render a alma cansada, não conseguia.

Alguém está morrendo, disse Isidoro. As badaladas pedem ajutório de reza. Não custa nada rezar, é o que branco ensina pra gente. Eu mesmo rezava, agora não rezo mais não. Pra que o infeliz não sofra demais a agonia, os dedos da cadela.

Não sofrer demais, mergulhar no silêncio sem fim de Deus. Todas as coisas que vêm do fundo, antes delas vem o silêncio. Feito a cegueira dos adivinhos. O silêncio é a fala de Deus. A gente fica querendo ouvir a foz de Deus, não escuta o silêncio. Antes de dizer faça-se a luz, houve o sopro de Deus, o silêncio consagrando a terra. Ainda hoje, a gente querendo, na véspera da agonia, se ouve o sopro silencioso de Deus. E o espírito de Deus se movia sobre as águas. Era outra vez a voz sem timbre do leitor no seminário. E o espírito de Deus era o silêncio, reconheceu Januário na mais profunda e sentida humildade. E começou a ver, uma repentina paz o invadia, uma luz tão forte, por dentro e fora dele. Uma pz que era como a aragem mansa e perfumada.

Levantou-se e olhou Isidoro já de pé. Você vem, perguntou mais por perguntar. Como poderia perguntar quantas horas eram, ele que já tinha ouvido as nove soarem. Agora era indiferente, sabia que na hora mesmo estaria sozinho. Perguntou como uma despedida, em vez de dizer adeus.

Vou não, disse o preto. Daqui pra frente vou sozinho. Me afundo num sertão desses, sertão é o que não falta. Sei lá pra onde vou. Vai se encontrar com a morte de vez, mundo de branco acabou pra mim. Me desato pra sempre.

E Januário sentiu uma estranha alegria, todo o cansaço desapareceu. Na cara a aragem fresca do vento lambendo as folhagens, soprando as flores. Respirava fundo, e todo o seu peito era uma campo de luz e de flores, esvoaçado pelo silêncio colorido das borboletas. Tudo macio, ele podia morrer. E uma ternura imensa, uma luz de alegria, começavam a jorrar dentro dele; um canto de nave, epifania de Deus. Tinha vontade de beijar a mão de Isidoro e, sem saber por quê, pedir perdão.

Você vai pra algum quilombo? Vai virar quilombola?

No timbre da sua voz, nas suas perguntas, toda a mansa e luminosa ternura que ele não era capaz de dizer. Quem sabe o Quilombo Grande, ia dizendo num conselho que valia por um carinho. Porque não era capaz de dizer o que queria mesmo dizer.

O preto guardou um longo silêncio. Os silêncios eram cada vez mais longos e pesados, só através deles Isidoro queria falar. Os olhos relumeavam enormes.

Tem Quilombo Grande nenhum mais não, disse Isidoro. Quem diz que ainda tem está mais é sonhando com alma do outro mundo, conversando com a banda de lá, na escuridão. Pai Ambrósio morreu faz um tempão de anos. Tempo de tudo é de todo mundo, não tem meu nem teu, se acabou, volta mais não.

Mas tem gente que ainda fala nele, disse Januário sem acreditar muito. Não queria deixar o preto sozinho no vazio silencioso da solidão. Dizem que Ambrósio não morreu, continuou querendo ver outro lume nos olhos sofridos do preto. Dizem que um dia ele volta com uma tropa de centuriões, muito mais de mil, que ele vive alforriando  e arrebanhando no peito por esse mundão perdido de Deus.

Qual, disse Isidoro num riso repuxado. Basta fazer as contas nos dedos. Ninguém vive tanto assim. Tem Ambrósio mais não!

Dizem que Ambrósio não envelhece, a morte de Ambrósio foi mentira, invenção de branco, disse Januário repetindo o que tinha ouvido contar na senzala do pai.

Só se for um outro Ambrósio, aquele morreu, disse Isidoro começando a querer acreditar. Não, tudo isso é história, fumaça, invenção! A gente carece disso, é melhor isso sofrendo do que nada sem dor. A gente carece de fumaça, de ar, de azulidão. Pra poder agüentar a dor de viver. É feito esse rei dom Sebastião, que tem muito branco esperando até hoje. Se acha que ainda tem quilombo... disse querendo acreditar, já acreditando.

Tem, você mesmo sabe que tem, disse Januário.

O preto ruminava o seu groso silêncio. Um boi pastava longe, contra o azul ensolarado do céu.

Sempre tem uns gatos pingados de fujões encafuados por esses matos, disse Isidoro. Isso nunca deixou de ter. É, é capaz de ter razão. Eu ou catar um quilombo qualquer por aí, ainda deve de ter. Até que a disgramada da morte venha buscar venha buscar o que é dela de nascença.

É o melhor que você faz, disse Januário. Você tem uma raça que te espera, uma noite pra te abrigar. Eu não tenho raça nenhuma, sou que nem mula, manchado de geração. Me chamam às vezes de bugre, você sabe. Nem isso eu sou. Sou mais um puri esbranquiçado por obra de meu pai. nem branco nem índio. Eu sou nada. Eu vou é ao encontro dessa nada que eu sou.

O silêncio do preto era agora enorme demais, maior do que a noite da véspera, da noite que o esperava. Uma ou outra palavra avarenta, palavras miúdas e sofridas, arrancadas das entranhas do silêncio, era só o que Januário conseguia. Pelo que vejo, você não quer mais falar comigo, disse Januário sufocado.

O preto custava ainda mais a responder, como se tivesse mesmo de arrancar da carne as palavras. Nada disse não, falou. Que é então, perguntou Januário. Nada, repetiu o preto olhando o céu. Nada não, gritou Januário, e o seu grito ecoou longe. Isidoro encarou-o demoradamente, mais fundo do que nunca, nos olhos. O olhar do preto lhe varava a alma. Só com os olhos queria falar.

E Januário viu que uma coisa terrível, um silêncio ensurdecedor, crescia detrás dos olhos do preto. Fala, disse Januário pedindo, apesar do medo na alma, do que o outro podia dizer.

Eu falo agora pela última vez, foi dizendo Isidoro pausado e duro, feito ditando uma carta. (E Januário viu: de há muito ele não era mais seu escravo, os dois eram agora iguais.) Daqui pra frente me calo de vez em língua de branco. Só vou falar ioruba, língua da minha cor. Branco nenhum vai mais me entender. Podem me matar de pancada, bacalhau no lombo, pés e braços no tronco, que não falo mais língua de branco, de reinol ou paulista nenhum! Se não tem mais quilombo, eu arrebanho uns da minha iguala, faço um. Um quilombo tão grande que nem o do Ambrósio, do tamanho da minha nação. Só preto igual a mim é que vai me entender! Só morto é que vão me pegar. Morro de trabuco na mão!

E como Januário tentasse ainda uma nova pergunta, o preto começou, entre uivos e gemidos, uma algaravia selvagem de sons guturais. Adeus, mesmo assim, disse Januário sabendo que o outro não ia mais responder.

E foi descendo o morro, quase escorregando. Quando se voltou, viu o preto parado e mudo. A carabina segura pelas duas mãos, na frente do corpo. Todo a sua figura se recortava em pedra negra, contra o azul claro do céu. A cabeça levantada, o peito aberto, os olhos no além, parecia mais um guardião do templo, o porteiro e guia mudo da sua nação. Andou mais um pouco e tornou a se voltar. Andou mais um pouco e tornou a se voltar. Isidoro tinha sumido de vez na luz. Agora ele ia sozinho, quase corria. Não se voltou mais para trás . Alcançou a rua, passou pela igreja das Mercês.


Autran Dourado
Os Sinos da Agonia
Difel. São Paulo.

4ª edição. 1981.