segunda-feira, 15 de outubro de 2012

HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA



Os Novos Retratos do Brasil

O debate religioso era apenas um dos aspectos por que a consciência coletiva traduzia instintivamente o sentimento de que um novo Brasil devia emergir das crises de 1930 e 1932. Se, como ficou assinalado, a Constituição de 1934 configurou-se, afinal, como um melancólico malogro político, a Constituinte, ao contrário, parecia inscrever-se na atmosfera  de reavaliação da realidade brasileira , a essa altura refletida em livros tão diversos como, no campo da criação literária propriamente dita, Banguê e Essa Negra Fulô!, de Jorge de Lima; Samba, de Orestes Barbosa; Urucungo, de Raul Bopp; Noroeste e Outros Poemas do Brasil, que Ribeiro Couto publicava simultaneamente com Província (impresso em Coimbra) e a coletânea de contos Clube das Esposas Enganadas, a que podemos acrescentar a significativa reedição de A Ilusão Americana, de Eduardo Prado, com prefácio de Augusto Frederico Schmidt; Terra Imatura, de Alfredo Ladislau, em terceira edição; Terra de Ninguém, de Albertino Moreira; Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire; Fórmula da Civilização Brasileira, de Aníbal Falcão (1859-1900), e a Introdução à Realidade Brasileira, de Afonso Arinos de Melo Franco.

De fato, nunca se falou tanto em realidade brasileira como nessa época — cada um, claro está, vendo-a de maneira diferente. Afonso Arinos começava com a declaração ao mesmo tempo juvenil e inquietante de que havia “conquistado a verdade”, convicção igualmente partilhada por todos os ideólogos do momento. Levado pela lógica dos fatos, que não raro desvenda o artifício todo arbitrário da lógica das convicções, Afonso Arinos acentuava, a certa altura, que “uma doutrina falsa pode conquistar o mundo pelas mesmas vias que uma doutrina verdadeira”, o que significa serem “falsas” ou “verdadeiras” as doutrinas que como tais reputamos. Desde o século XVII, o teatro de Molière havia revelado aos teólogos escandalizados “cette ressemblance du vice avec la vertu”, e, em 1963, o insuspeito François Mauriac concluía que, no Tartufo, não é a canalhice do falso devoto que testemunha contra a religião, mas a tolice do verdadeiro devoto. A “verdade” não é apenas relativa: ela é também movediça, múltipla e fragmentária.


Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960)
Cultrix. São Paulo, SP. Editora da Universidade de
São Paulo. São Paulo, SP.
1ª edição. 1979.