domingo, 30 de setembro de 2012

CABO FRIO


EMANUEL E FEDERICO



Sua casa. Sempre pudesse ser. Mas lá, a Samarra, não era dele. Manuelzão trabalhava para Federico Freyre — administrador, quase sócio, meio capataz de vaqueiros, certo um empregado. Porém Federico Freyre em bem uma vez por ano se lembrava de aparecer, e Manuelzão valia como único dono visível, ali o respeitavam.Às horas, quando na boa mira dum sonho consentido, ele chegava mesmo a se sobre-ser, imaginando quase assim já fosse homem em poder e rico, com suas apanhadas posses. Um dia, havia-de. Sempre puxara por isso, a duras mãos e com tenção teimosa, sem um esmorecimento, uma preguiça, só lutando. Ele nascera na mais miserável pobrezazinha, desde menino pelejara para dela sair, para pôr a cabeça fora d’água, fora dessa pobreza de doer. Agora, com perto de sessenta anos, alcançara aquele patamar meio confortado, espécie de começo de metade de terminar. Dali, ia mais em riba. Tinha certeza. E na Samarra todos enchiam a boca com seu nome: de Manuelzão. Sabiam dele. Sabiam da senhora sua Mãe, dona Quilina, falecida. Sua mãe, que, meses antes, velhinha viera para aquele ermo, visitando-o. Pudera ir buscá-la, enfim era a primeira ocasião em ue se via sediado em algum lugar, fazendo de meio-dono. E ela pensara até que ele fosse dono todo. A mãe apreciara aquilo, o Baixio da Samarra, a Vereda da Samarra, o território. No tempo de adoecer, ela mencionara a mesa-de-campo, como o ponto ideado para se erigir uma capelinha, a sobre.  Ela estava a se pensar? Lá mesmo Manuelzão a enterrou, confechando quase à borda da chã um cemiteriozinho razoável, cercado de aroeiras, moirões que podiam durar sem acaba, e coberto pelo capim duro do cerrado, no qual, no raiar das madrugadas, o orvalho é azul e mata a sede. Ao lado, ergueu a capelinha. Enquanto pôde uma folga, na lida. O principal da idéia da capelinha então tinha sido de sua mãe. Mas ele cumprira. E ele inventara a festa, depois.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º vol.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

sábado, 29 de setembro de 2012

ENTRE RIOS DE MINAS


O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM



A quem compararei esta geração? Ela é como crianças sentadas nas praças, a desafiarem-se mutuamente:

Nós vos tocamos flauta
e não dançastes!
Entoamos lamentações
e não batestes no peito!

Com efeito, veio João, que não come nem bebe, e dizem: ‘Um demônio está nele’. Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ‘Eis aí um glutão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores’. Mas a Sabedoria foi justificada pelas suas obras.


Mt 11, 16-19

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

SETE LAGOAS


A BÍBLIA SAGRADA



Sucedeu, depois desses acontecimentos, que o copeiro do rei do Egito e seu padeiro ofenderam seu senhor, o rei do Egito. Faraó irou-se contra seus dois eunucos, o copeiro-mor e o padeiro-mor, e mandou detê-los na casa do comandante dos guardas, na prisão onde José estava detido. O comandante dos guardas agregou-lhes José para que os servisse, e ficaram certo tempo detidos.

Ora, numa mesma noite, os dois, o copeiro e o padeiro do rei do Egito, que estavam detidos na prisão, tiveram um sonho, cada qual com a sua significação. De manhã, vindo encontrá-los, José percebeu que estavam acabrunhados e perguntou aos eunucos do Faraó que estavam com ele detidos na casa de seu senhor: “Por que tendes hoje o rosto triste?” Eles lhe responderam: “Tivemos um sonho e não há ninguém para interpretá-lo. José lhes disse: “É Deus quem dá a interpretação; mas contai-mo!”

O copeiro-mor narrou a José o sonho que tivera “Sonhei”, disse ele, “que havia diante de mim uma videira, e videira três ramos: deram brotos, floresceram e as uvas amadureceram em cachos.Eu tinha na mão a taça do Faraó: peguei os cachos de uva, espremi-os na taça do Faraó e coloquei a taça na mão do Faraó. José lhe disse: “Eis o que isto significa: os três ramos representam três dias. Mais três dias e o Faraó te erguerá a cabeça e te restituirá o emprego; colocarás a taça do Faraó em sua mão, como outrora tinha o costume de fazer, quando eras seu copeiro. Lembra-te de mim, quando te suceder o bem, e sê bondoso para falares de mim ao Faraó, a fim de que me faça saai desta prisão. “Com efeito, fui arrebatado da terra dos hebreus e aqui mesmo nada fiz para que me pudessem prender.”

O padeiro-mor viu que era uma interpretação favorável e disse a José: “Eu também tive um sonho: havia três cestas de bolos sobre a minha cabeça. Na cesta mais alta havia todos os tipos de doces que o Faraó come, mas as aves os comiam na cesta, sobre a minha cabeça.” José respondeu assim: “Eis o que isto significa: as três cestas representam três dias. Mais três dias ainda e o Faraó te erguerá a cabeça, enforcar-te-á e as aves comerão a carne acima de ti.”

Efetivamente, no  terceiro dia, que era o aniversário do Faraó, este deu um banquete a todos os seus oficiais; Ele reabilitou o copeiro-mor na copa real e este colocou a taça na mão do Faraó; quanto ao padeiro-mor, enforcou-o, como José lhe havia explicado. Mas o copeiro-mor não se lembrou de José; ele o esqueceu. 


Gn 40, 1-23

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

CORDISBURGO


UM APRENDIZ DE FEITICEIRO



AZUL

Um dia, através do jogo capitalista,
do sobe-e-desce das bolsas,
dos investimentos intercontinentais,
a Terra será de um único dono.

E todos os homens o adoraremos,
em espírito e em verdade,
como nosso único Senhor.

Biocor
3-4/1/98

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

PETRÓPOLIS


OTELO E SANT'IAGO



TIO COSME

Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos.

A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório na antiga rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.


Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.

Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: “Mamãe! mamãe!”. Ela acudiu, pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me , afagou-me, enquanto o irmão perguntava:

— Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?

— Não está acostumado.

— Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, Mana Glória.

— Pois que se queixe; tenho medo.

— Medo! Ora, medo!

A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. “Agora é que ele vai namorar deveras”, disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhérias.   


Machado de Assis
Dom Casmurro

terça-feira, 25 de setembro de 2012

CABO FRIO


EMANUEL E FEDERICO



Por tudo, mesmo sem precisão, ele não saía de cima do cavalo — estava com um machucão num pé — indo e vindo da capela, sol a sol vinte vezes, dez vezes, acompanhado sempre pelo rapazinho Promitivo. Não esbarrava. Não sabia de esforço por metade. Vai agorinha, um exemplo, deixava as mulheres na arrumação e tocava para a Casa, a ver a chegada de mais povo. Ativo e quieto, Manuelzão, ali à porta se entusiasmava, público como uma árvore, em sua definitiva ostentação. Embora dois dias para a véspera ainda faltassem, as pessoas de fora já eram em número. Gente de surrão e bordão, figuras de romaria. Alguns, tão estranhos, que antes de apear do cavalo invocavam em alta voz o louvor a Cristo-Jesus e esperavam de olhos quase fechados o convite para entrar com toda paz e mão irmã na hospitalidade geral. Outros, contando alguém doente em sua comitiva, imploravam licença para armar as tipóias ou latadas lá mesmo, na rechã descampada e ventosa, não distante da capelinha. Outros tangiam adiante cabeças de gado, sobradas para vender, pois também uma boiada estava-se ajuntando, devendo sair logo depois dos dias santos, conforme o grande aviso que Manuelzão difundira. — “...Siô, siô, mesmo aqui mesmo que a Simarra é?” — sempre sabiam. Pobres lazarados queriam ajudar em algum serviço; por devoção e esperança de comida. Até aleijados, até vultos ciganos, más mulheres, lindas moças — do rumo do Chapadão tudo é possível. Havia quem precisasse da caridade de agulha e linha para recoser suas roupas, urtigadas contra os espinheiros, no atravessarem trechos de caatinga. Um ou mais de um, três vezes armado no cinturão e com chapéu-de-couro claro quebrado adiante, não ditava de esconder sua má menção de brabo sertanejo, capaz de piorar assuntos; e Manuelzão, tanto quanto conseguia disfarçar um desgosto, acolhia-os proferindo que não era bem ele, mas sim a Nossa Senhora do Socorro, quem os agasalhava , aos que vinham para a respeitar e venerar. Principalmente mulheres, de trouxa à cabeça e pondo para a frente seus meninos, desciam a encosta — uma extensa encosta aladeirada, rachada de grotas de chuva roer, e pela qual se espalhavam, em quantidade, galhos verdes cortados de árvores, dos que os carreiros nas descidas usam para acorrentar à traseira de seus carros-de-bois, à guisa de freios. Aquém, no terço baixo dessa aba, era a Casa.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º vol.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

RAPOSOS


OS INCONFIDENTES



CARTA-DENÚNCIA DE DOMINGOS DE ABREU VIEIRA; CADEIA DE VILA RICA, 28-05-1789.

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Além do que já ontem disse aos ministros que vieram falar comigo, acresce que queriam pôr casa de moeda e pôr o ouro a 1$500, e que assim não saísse mais o ouro que estivesse no erário desta Vila; assim o dizia o Alferes Tiradentes, que também o dizia o Alvarenga e o Vigário de São José, e também disse o Padre José da Silva Rolim; e que o Desembargador  Gonzaga concorria para isto aconselhando; e que também entrava o Tenente-Coronel Francisco de Paula Freire; eu lho não ouvi, mas o diziam assim aqueles ditos, Alferes Tiradentes e Padre José da Silva, que andavam sempre nas assembléias; e que a maior parte do Regimento Pago havia de estar pronta para a tal ocasião; e que alguns oficiais estavam convidados também: o Tenente Antônio Agostinho (Antônio Agostinho Lobo Leite Pereira, futuro Capitão-Mor de Vila Rica, depois do falecimento de José Álvares Maciel (pai do inconfidente do mesmo nome), a quem sucedeu, sendo confirmado no cargo em dezembro de 1793), disse o Tiradentes que estava falado e que ele respondera que estaria pronto, pois também era mazombo (termo depreciativo designando o natural do Brasil, descendente de portugueses), e prometera, quando chegasse seu sobrinho, o Sargento-Mor Vasconcelos, o havia de convidar para o mesmo fim; e também dizia o Tiradentes que o Alferes Matias Sanches estava convidado e pronto; e também o Capitão Antônio José de Araújo, o Tenente Melo e o Alferes Antônio Gomes Meireles, para no caso de ser preciso ajudar e capacitar algum do Porto do Siró; também diziam que já faziam as leis para se governar, que estas se faziam em casa do Desembargador Gonzaga, onde estava o Vigário do Rio das Mortes e o Coronel Alvarenga, que eram muito fortes na tal desordem; o cabeça de tudo era o Tiradentes, dizendo que ele e o Alvarenga haviam de ser os heróis da função, pois defendiam a sua pátria; que os mazombos também valimento e sabiam governar; e que dando a sua terra tantos haveres, se achavam pobres por lhe tirarem tudo para fora, mas que a haviam de pôr em liberdade; que só esperavam se botasse a derrama, pois que a terra não podia pagar e que tudo ia para o Reino; que se havia mudar a praça para o Rio das Mortes, por ser mais cômoda e farta de mantimentos; e que nesta Vila haviam de pôr estudos como em Coimbra; e que havia estar pronta a artilharia e todo o mais trem; se haviam utilizar dele; que assim o diziam o Alvarenga, o Vigário e Tiradentes; que haviam de mandar vir socorro de gente das partes de São Paulo.

Tudo isto que sei e tenho dito, ouvi ao Tiradentes e ao Padre José da Silva, pois nunca conversei com o Vigário de São José nem com o Alvarenga, nem com o Gonzaga. E protesto declarar tudo o mais que me lembrar a este respeito. Espero que Vossa Excelentíssima se compadeça de mim, que não entrei nestas desordens; que aqueles demônios me contaram sem eu os acreditar; e assim o espero da proteção de Vossa Excelência, que Deus guarde por muitos anos.

De Vossa Excelência
o mais humilde escravo


Domingos de Abreu Vieira

domingo, 23 de setembro de 2012

PETRÓPOLIS


MACHADO



UMA NAÇÃO CAPITU

Os olhos de Capitu, de cigana oblíqua e dissimulada da personagem de Machado de Assis são um patrimônio feminino brasileiro.

Como seria interpretar, sobre um palco, a personagem Capitu, com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada? É impossível, para uma atriz, dar conta totalmente da complexidade desse olhar tão poderosamente descrito por Machado de Assis em Dom Casmurro. Cada um de nós teria, certamente, o seu toque oblíquo, as suas olheiras de ressaca, a sua dissimulação, o seu fluido misterioso e energético. A minha intuição me faria interpretar Capitu com a absoluta crença de que esse olhar está, todo ele, subdividido no olhar da brasileira. Todas nós somos Capitu. Esse olhar nos pertence. E só a nós. É um patrimônio do feminismo brasileiro.

Machado nos ensinou a vê-lo e o equacionou. Esse olhar é a nossa miscigenação, a nossa aparente submissão, são as nossas olheiras amorosamente gulosas, quentes e erotizadas. É o olhar que denuncia a marginal vitória desse ser-mulher colonizado. Olhar de quem dissimuladamente aceita o jogo surdo, silencioso, de carrasco e vítima, jogo fascinante e cruel na aparente aceitação das diversas manifestações do relacionamento humano. Essa luta dolorosa fascina Dom Casmurro porque ela é jogada no campo da dúvida.

Ao descrever Capitu, Machado esclarece: “Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que  eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. Nessas circunstâncias, o autor lança mão da imagem da cigana (presença marginal), do olhar de ressaca (visão de uma carne indomável) e do olhar oblíquo (não definido, não confiável, dissimulado).

Os olhos mostram o que desejamos ver por meio deles. É sempre também o reflexo, a projeção de quem olha. Esse perscrutar de olhares se apresenta desde o primeiro momento em que os hormônios começam a latejar. Não é só o menino que é o pai do homem. A menina também é a mãe da mulher. Os heróis de Dom Casmurro se conheceram na adolescência. Com mais luz ou menos luz, os olhos de uma menina de 14 anos já denunciam o olhar de toda uma vida.

Dom Casmurro é um tratado sobre o olhar. Capitu é emblemática.

Bentinho descreve seu próprio olhar, olhando Capitu. Ouso falar sobre Capitu como atriz. Como se estivesse analisando um texto de dramaturgia, juntamente com um elenco, ao redor de uma mesa. Não estou aqui me arvorando em crítica literária. E como mulher de palco digo que, se eu tivesse tido na minha vida a oportunidade de tentar interpretar Capitu, partiria do ponto de vista de sua clara, profunda e inconfundível brasilidade.

Não estou circunscrevendo Capitu à nossa aldeia. Ela é universal como literatura e como perfil de mulher. Indo além do que já ousei e me arrisquei nestes parágrafos, intuo que, embora o Brasil seja nome masculino, nosso país, por nossa complexidade oblíqua, energética, misteriosa, pela nossa história contada sempre de uma forma tão dissimulada e pelo fascínio tão decantado de nossos trópicos, é, no fundo, uma nação Capitu.


Fernanda Montenegro
em Quem é Capitu?
org. de Alberto Schprejer
Nova Fronteira. Rio de Janeiro.
2008.

sábado, 22 de setembro de 2012

CORDISBURGO


G. RAMOS



Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos — e, antes de começar, digo os motivos por que silenciei e por que me decido. Não conservo notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer do tempo, ia-me parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir esta narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças, esperei que outros mais aptos se ocupassem dela. Não vai aqui falsa modéstia, como adiante se verá. Também me afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente verdadeira? Que diriam ellas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo palavras contestáveis e obliteradas?

Restar-me-ia alegar que o DIP, a polícia, enfim os hábitos de um decênio de arrocho, me impediram o trabalho. Isto, porém, seria injustiça. Nunca tivemos censura prévia em obra de arte. Efetivamente se queimaram alguns livros, mas foram raríssimos esses autos-de-fé. Em geral a reação se limitou a suprimir ataques diretos, palavras de ordem, tiradas demagógicas, e disto escasso prejuízo veio à produção literária. Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas excelentes, por falta de liberdade — talvez ingênuo recurso de justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer. Não será impossível acharmos nas livrarias libelos terríveis contra a república novíssima, às vezes com louvores dos sustentáculos dela, indulgentes ou cegos. Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume, Viagens
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1953.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

ENTRE RIOS DE MINAS


O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM



Aconteceu que estando ele à mesa em casa, vieram muitos publicanos e pecadores e se assentaram à mesa com Jesus e seus discípulos. Os fariseus, vendo isso, perguntaram aos discípulos: “ Por que come o vosso Mestre com os publicanos e os pecadores?” Ele, ao ouvir o que diziam, respondeu: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, e sim os doentes. Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não o sacrifício. Com efeito, eu não vim chamar justos, mas pecadores.”


Mt 9, 10-13

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

SETE LAGOAS


PANEM NOSTRUM



Em que distância de ontem te modulo,
mundo de relativos compromissos?
Novas larvas e germes em casulo,
novos santos e monges e noviços.

Não máscaras nos olhos. Nem simulo.
Eu era pião, já vão evos mortiços
naquele calendário agora nulo,
com seus cerimoniais de escuros viços.

Recordas-te do afim, teu rei colaço?
Lembras-te dele em queda? Céus dos dias
com luzeiros — incêndios, lumes de aço.

E tu, grande Lusbel, guia dos guias
para reinar perdeste-me também
a mim que fui o espelho em que te vias.


Jorge de Lima
Livro de Sonetos.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

RAPOSOS


OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA (Cont.)

João Cristóvão Cardoso
João da Costa Froes
João de Deus Melo
João Doca Filho
João Evangelista da Silva Simões
João Evangelista de Souza
João Ferreira de Souza
João Francisco da Silva Toledo
João Herculino de Souza Lopes
João José de Ribamar Rego
João Kiffer Neto
João Licínio da Silva
João Luiz Duboc Pinaud
João Manoel de Melo
João Maria Cordeiro
João Mendonça Falcão
João Natal Zanuto Filho
João Nélson Sobieray
João Pessoa Rezende
João Ramos
João Ribeiro da Cunha
João Rodrigues de Oliveira
João Severino Gomes
João Silva
João Soares dos Santos
João Stélio Pimentel
João Valentim de Siqueira
Joaquim Alves Costa
Joaquim Arcoverde
Joaquim Belarmino Tine
Joaquim Hilário da Fonseca Júnior
Joaquim José Barcelos Felizardo
Joaquim Laveran Fallerice
Joaquim Marques Teixeira
Joaquim Nobre de Lacerda Neto
Joaquim Vicente Cardoso Neto
Joel Alves Netto
Joel Costa
Joel Domingos Lage
Jomard Muniz de Brito
Jon Andoni Vergareche Maitre-Jean
Jonas Daniel
Jonas Lourenço Soares
Jonas Paes Cavalcanti
Jorge Augusto Lopes Fechner
Jorge Borges
Jorge Carone Filho
Jorge Cheuen
Jorge da Silveira
Jorge de Mattos Valle
Jorge do Nascimento

terça-feira, 18 de setembro de 2012

RAPOSOS


OS INCONFIDENTES



CARTA-DENÚNCIA DE FRANCISCO ANTÔNIO DE OLIVEIRA LOPES; CACHOEIRA DO CAMPO, 19-05-1789.

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Dou parte a Vossa Excelência por escrito do que já manifestei a Vossa Excelência por palavras: Que o Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza me havia dito que ouvira ao Coronel Joaquim Silvério dos Reis, em casa do Capitão José de Resende Costa, em ato de revista que passava o Tenente-Coronel João Carlos Xavier da Silva Ferrão, e mais pessoas que se achavam na dita revista, que o dito Coronel Joaquim Silvério dissera que esta terra podia ser um império, ser um país liberto, e que nesta terra não havia homens, e que, se os houvesse, que em pouco tempo seriam senhores da terra; e que ele, dito sargento-mor, se despedira do Tenente-Coronel João Carlos e que se fora embora; e passados alguns dias, fora o Coronel Joaquim Silvério a Vila de São José e lhe dissera que, se ele queria encarregar-se de ir a fazer gente para as bandas de São Paulo, que ele assistiria com o dinheiro, pois se houvesse um patrício que fosse o libertador dos mais, que estava toda Vila Rica, Sabará, Serro e Minas Novas, que tudo estava pronto; e que ele, dito sargento-mor, se opusera a isso: “Que ele coronel se não metesse nisso que ficava perdido”, e que o despersuadira com razões que, se não deixasse de tal intento, que dava parte; e que o dito coronel lhe pedira com as mãos postas que não falasse o dito sargento-mor, que ele prometia nunca mais falar em tal, o que lhe pedia como amigo; e que, mais, lhe dissera o mesmo Coronel Joaquim Silvério que, vindo do giro em que vinham de passar as revistas com o Tenente-Coronel João Carlos, vindo de S. Tiago, em um alto parara o cavalo e dissera para os que vinham na comitiva, (João Carlos, o Sargento-Mor Pestana, e outros mais): “Que mundo novo não é este! Que país não seria este! O melhor do mundo!”; que o Tenente-Coronel João Carlos picara o cavalo e fora andando, e que ao depois ele, dito tenente-coronel, caíra em si do que havia dito.

E indo eu à Vila de São José a ir depor em uma causa do Coronel Joaquim Silvério, na volta quando nos vínhamos recolhendo, em caminho, me veio dizendo o Sargento-Mor Luís Vaz o que acima relato; e eu disse ao mesmo sargento-mor que logo viesse depor e que estas coisas se não deviam calar; e me respondeu o mesmo sargento-mor que ele, dito coronel, lhe havia pedido com as mãos postas, que semelhantes loucuras ali acabavam. Vi mais a este respeito uma carta de uma senhora, freira de Santa Clara de Coimbra, escrita ao Sargento-Mor Joaquim Pedro da Câmara, em que lhe dizia que se fosse embora para Portugal que esta terra estava para se levantar; e que não quisesse ficar sujeito aos homens, e que não deixasse o governo da Soberana; e esta carta me não mostrou o sargento-mor por querer mostrar a novidade, porque isto tomou como loucura; assim, mostrou-a, porque nela não falava em uma senhora que se achava no mesmo Convento; e eu lhe disse que aquela carta se não devia mostrar a pessoa alguma, à vista do Ajudante Tomás da Costa e do Capitão Antônio Nunes; ao que me respondeu o sargento-mor: “Isto são loucuras de freiras, que os maganões lhe metem quatro petas”; disto não dei logo parte a Vossa Excelência; como alguns passos se passaram na presença do Tenente-Coronel João Carlos Xavier da Silva Ferrão, Ajudante de Ordens de Vossa Excelência, devia capacitar-me que logo desse parte a Vossa Excelência.

Excelentíssimo Senhor, isso ponho na respeitável presença de Vossa Excelência como leal vassalo, fiel e obediente às ordens da Soberana, para que Vossa Excelência dê as providências que forem justas em segurança do Estado, assim como pelo posto que ocupo.

Francisco Antônio de Oliveira Lopes
Coronel de São João del-Rei

Reconheço a letra desta carta e firma abaixo ser tudo do próprio punho do Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes por outras semelhantes. Vila Rica, 15 de junho de 1789.

José Caetano César Manitti

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

OUTROS TEMPOS...


O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM



Vendo Jesus que estava cercado de grandes multidões, ordenou que partissem para a outra margem. Então chegou-se a ele um escriba e disse: “Mestre, eu te seguirei para onde quer que vás”. Ao que Jesus respondeu: “As raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.

Outro dos discípulos lhe disse: Senhor, permite-me ir primeiro enterrar meu pai”. Mas Jesus lhe respondeu: “Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos”.


Mt 8, 18-22

domingo, 16 de setembro de 2012

SÃO JOÃO DEL REI


PANEM NOSTRUM



BRAÇOS

Braços nervosos, brancas opulências,
Brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.

As fascinantes, mórbidas dormências
Dos teus abraços de letais flexuras,
Produzem sensações de agres torturas,
Dos desejos as mornas florescências.

Braços nervosos, tentadoras serpes
Que prendem, tetanizam como os herpes,
Dos delírios na trêmula coorte...

Pompa de carnes tépidas e flóreas,
Braços de estranhas correções marmóreas,
Abertos para o Amor e para a Morte!


Cruz e Sousa
Broquéis

sábado, 15 de setembro de 2012

PRETO & BRANCO


OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA   (Cont.)

Hotelo Telles de Andrade
Hugo Antônio Ronconi
Hugo de Souza Lopes
Hugo de Souza Xavier
Hugo Weiss
Hugolino de Andrade Uflacher
Humberto Ferreira da Silva
Humberto Melo
Humberto Wálter Barroso de Souza
Iara Guimarães Brant Pereira
Ignácio Godoy dos Santos
Ignácio Hansen Barbosa
Iguatemy Jorge de Andrade
Ijalme Leite Gomes
Ildefonso Pereira da Mota Filho
Ildico Maria Erzsebet
Inaldo Faria Mendes
Inard Guimarães de Oliveira
Isaías Raw
Ismael Luiz do Nascimeento
Isnaldo Martins de Lyra
Israel Dias Novaes
Israel Sant’Ana
Itan de Azevedo Pereira
Ivan Guilherme de Oliveira
Ivan Luiz Eggers
Ivo Monteiro
Jacob de Souza Filho
Jadir Silva
Jaime de Araújo Andrade
Jaime Machado
Jaime Ramos da Fonseca Lessa
Jaime Tiomno
Jairo Correa Custódio
Jamil Haddad
Jarbas Lopes
Jarmelino Jorge de Souza
Jatir de Almeida Rodrigues
Jayme Azevedo Rodrigues
Jayme de Araújo Andrade
Jayme Pereira de Vasconcelos
Jean Claude Bernadet
Jenny de Rezende Rubim
Jerônimo Geraldo de Queiroz
Jerônimo Moreira da Rocha
Joacir Correa de Mendonça
João Alfredo Gonçalves da Costa Lima
João Batista Dias
João Batista Telles Soares de Pina
João Batista Vilanova Artigas
João Brusa Neto
João Carlos Brun Torres
Joâo Carlos Guaragna
João Cezário de Faria
João Coelho Leite
João Corsino de Freitas

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

CABO FRIO


EMANUEL E FEDERICO



Sobre que se sabia o mais forte, dava de ombros, entretanto, assoado. Sua animação o levava, crescente. Não que descuidasse, por uma hora sequer, o governo do mundo dali: determinar aos campeiros e agregados a fazeção de cada dia. Mas, desde uns dois meses, quando principiara, media rude impulso, o fervor que o influía era aquele. Primeiro, ter a capelinha pronta — uma ação durável, certa. Daí, gastando um prazerzinho, tomara fôlego. Mas não bastava. Carecia da sagração, a missa. A festa, uma festa! Por si, ele nunca dera uma festa. Talvez mesmo nunca tivesse apreciado uma festa completa. Manuelzão, em sua vida, nunca tinha parado, não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só. Agora, ei, esperava alguma coisa.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º vol.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

sábado, 8 de setembro de 2012

PETRÓPOLIS


OTELO E SANT'IAGO



TIO COSME

Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, como prima Justina; era a casa dos três viúvos.

A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório na antiga rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.


Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.

Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: “Mamãe! mamãe!”. Ela acudiu, pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me , afagou-me, enquanto o irmão perguntava:

— Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?

— Não está acostumado.

— Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, Mana Glória.

— Pois que se queixe; tenho medo.

— Medo! Ora, medo!

A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. “Agora é que ele vai namorar deveras”, disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhérias.    


Machado de Assis
Dom Casmurro

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

BELO HORIZONTE


EMANUEL E FEDERICO



Sobre que se sabia o mais forte, dava de ombros, entretanto, assoado. Sua animação o levava, crescente. Não que descuidasse, por uma hora sequer, o governo do mundo dali: determinar aos campeiros e agregados a fazeção de cada dia. Mas, desde uns dois meses, quando principiara, media rude impulso, o fervor que o influía era aquele. Primeiro, ter a capelinha pronta — uma ação durável, certa. Daí, gastando um prazerzinho, tomara fôlego. Mas não bastava. Carecia da sagração, a missa. A festa, uma festa! Por si, ele nunca dera uma festa. Talvez mesmo nunca tivesse apreciado uma festa completa. Manuelzão, em sua vida, nunca tinha parado, não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só. Agora, ei, esperava alguma coisa.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º vol.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

TIRADENTES


OS INCONFIDENTES



CARTA-DENÚNCIA DE FRANCISCO ANTÔNIO DE OLIVEIRA LOPES; CACHOEIRA DO CAMPO, 19-05-1789.

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Dou parte a Vossa Excelência por escrito do que já manifestei a Vossa Excelência por palavras: Que o Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo Piza me havia dito que ouvira ao Coronel Joaquim Silvério dos Reis, em casa do Capitão José de Resende Costa, em ato de revista que passava o Tenente-Coronel João Carlos Xavier da Silva Ferrão, e mais pessoas que se achavam na dita revista, que o dito Coronel Joaquim Silvério dissera que esta terra podia ser um império, ser um país liberto, e que nesta terra não havia homens, e que, se os houvesse, que em pouco tempo seriam senhores da terra; e que ele, dito sargento-mor, se despedira do Tenente-Coronel João Carlos e que se fora embora; e passados alguns dias, fora o Coronel Joaquim Silvério a Vila de São José e lhe dissera que, se ele queria encarregar-se de ir a fazer gente para as bandas de São Paulo, que ele assistiria com o dinheiro, pois se houvesse um patrício que fosse o libertador dos mais, que estava toda Vila Rica, Sabará, Serro e Minas Novas, que tudo estava pronto; e que ele, dito sargento-mor, se opusera a isso: “Que ele coronel se não metesse nisso que ficava perdido”, e que o despersuadira com razões que, se não deixasse de tal intento, que dava parte; e que o dito coronel lhe pedira com as mãos postas que não falasse o dito sargento-mor, que ele prometia nunca mais falar em tal, o que lhe pedia como amigo; e que, mais, lhe dissera o mesmo Coronel Joaquim Silvério que, vindo do giro em que vinham de passar as revistas com o Tenente-Coronel João Carlos, vindo de S. Tiago, em um alto parara o cavalo e dissera para os que vinham na comitiva, (João Carlos, o Sargento-Mor Pestana, e outros mais): “Que mundo novo não é este! Que país não seria este! O melhor do mundo!”; que o Tenente-Coronel João Carlos picara o cavalo e fora andando, e que ao depois ele, dito tenente-coronel, caíra em si do que havia dito.

E indo eu à Vila de São José a ir depor em uma causa do Coronel Joaquim Silvério, na volta quando nos vínhamos recolhendo, em caminho, me veio dizendo o Sargento-Mor Luís Vaz o que acima relato; e eu disse ao mesmo sargento-mor que logo viesse depor e que estas coisas se não deviam calar; e me respondeu o mesmo sargento-mor que ele, dito coronel, lhe havia pedido com as mãos postas, que semelhantes loucuras ali acabavam. Vi mais a este respeito uma carta de uma senhora, freira de Santa Clara de Coimbra, escrita ao Sargento-Mor Joaquim Pedro da Câmara, em que lhe dizia que se fosse embora para Portugal que esta terra estava para se levantar; e que não quisesse ficar sujeito aos homens, e que não deixasse o governo da Soberana; e esta carta me não mostrou o sargento-mor por querer mostrar a novidade, porque isto tomou como loucura; assim, mostrou-a, porque nela não falava em uma senhora que se achava no mesmo Convento; e eu lhe disse que aquela carta se não devia mostrar a pessoa alguma, à vista do Ajudante Tomás da Costa e do Capitão Antônio Nunes; ao que me respondeu o sargento-mor: “Isto são loucuras de freiras, que os maganões lhe metem quatro petas”; disto não dei logo parte a Vossa Excelência; como alguns passos se passaram na presença do Tenente-Coronel João Carlos Xavier da Silva Ferrão, Ajudante de Ordens de Vossa Excelência, devia capacitar-me que logo desse parte a Vossa Excelência.

Excelentíssimo Senhor, isso ponho na respeitável presença de Vossa Excelência como leal vassalo, fiel e obediente às ordens da Soberana, para que Vossa Excelência dê as providências que forem justas em segurança do Estado, assim como pelo posto que ocupo.

Francisco Antônio de Oliveira Lopes
Coronel de São João del-Rei

Reconheço a letra desta carta e firma abaixo ser tudo do próprio punho do Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes por outras semelhantes. Vila Rica, 15 de junho de 1789.

José Caetano César Manitti