terça-feira, 30 de abril de 2013

APARTAMENTO EM VILA VELHA


MINHA TERRA TEM PALMEIRAS



Tudo era aqui desequilíbrio. Grandes excessos e grandes deficiências, as da nova terra. O solo, excetuadas as manchas de terra preta ou roxa, de excepcional fertilidade, estava longe de ser o bom de se plantar nele tudo o que quisesse, do entusiasmo do primeiro cronista. Em grande parte rebelde à disciplina agrícola. Áspero, intratável, impermeável. Os rios, outros inimigos da regularidade do esforço agrícola e da estabilidade da vida de família. Enchentes mortíferas e secas esterilizantes ― tal o regime de suas águas. E pelas terras e matagais de tão difícil cultura como pelos rios quase impossíveis de ser aproveitados economicamente na lavoura, na indústria ou no transporte regular de produtos agrícolas ― viveiros de larvas, multidões de insetos e de vermes nocivos ao homem.

Particularmente ao homem agrícola, a quem por toda parte afligem mal ele inicia as plantações, as “formigas que “fazem muito dano” à lavoura; a “lagarta das roças; as pragas que os feiticeiros índios desafiam os padres que destruam com os seus sinais e suas rezas.

Contrastem-se essas condições com as encontradas pelos ingleses na América do Norte, a começar pela temperatura: substancialmente a mesma que a da Europa que a da Europa ocidental (média anual de 56ºF), considerada a mais favorável ao progresso econômico e à civilização à européia. De modo que não parece tocar ao caso brasileiro a generalização do professor Bogart sobre o povo por ele vagamente chamado de “raça latino-americana”. O qual nem por se achar rodeado de grandes “riquezas naturais se teria elevado às mesmas condições de progresso agrícola e industrial que os anglo-americanos. Essa incapacidade atribui o economista a ser a tal “raça latino-americana” “a weak, ease loving race” e não “a virile, energetic people” como os anglo-americanos. Estes, sim, souberam desenvolver os recursos naturais à sua disposição: “devoted themselves to the exploitation of the natural resources with wonderful success”. Mas foi esse mesmo povo tão viril e enérgico que fracassou em Old Providence e nas Bahamas.


Gilberto Freyre
Casa-Grande & Senzala

segunda-feira, 29 de abril de 2013

CAPAS


DE DIANTE PRA TRÁS



Deixado João Curiol no meu lugar, e esse tinha muita valia. Rastejei, tomei saída, conforme tinha de ir: pelos quintais das casas. Ainda virei, relanceando. Sempre queria ver Diadorim. O querer-bem da gente se despedindo feito um riso e soluço, nesse meio de vida.

Avancei, furando os terreiros e as hortas das casas, eu debaixo de armas, nos arreios. Toda a parte ali tinha gente nossa, que com brados me saudavam: conforme vale, quando um chefe mostra mor valentia. Gente como o Jõe Bexiguento, sobrechamado o “Alpercatas”. E estava lá o João Nonato ― que dava boa-sorte, com o bom ar. Avancei, rompi uma cerquinha de taquara, contornei um pano de muro, onde o Paspe tinha furado os adobes, cavando torneiras. E dei fé: que o Jiribibe vinha me acompanhando. O menino bom. Os olhinhos dele a gente só via era porque eram inventados de pretos. ― “Será, da banda de lá, estão bem governando, os clavinoteiros?” ― ele me disse. Aí, por que me dizia? Soubesse não que o brinquedo agora era mortal? Sobre o que, se riu, me apresentando: o que era, no fofo da terra, debaixo duma roseira, um gatinho preto-e-branco, dormindo seu completo sossego, fosse surdo, refestelado: ele estava até de mãos postas... Mas, perto de mim, veio grão d’aço ― que varou cheiamente um pé de mamoeiro. ― “Vigia, te abaixa!” ― eu ralhei com o Jiribibe. A gente ouvia a narração, ou cita seja, destemperada, dos inimigos, e um desentoar de cantiga, que toda pessoa era filho-da, segundo a qual. Aos canalhas! Mas mais xingava o Jiribibe, ripostando. Daí, depressa, ganhamos trincheiras, atrás dum forno de assar biscoitos: e berraram punhadão de disparos, para nosso lado, chega semelhava rajada de chuva-e-pedra. Lugar danoso! Aguardamos, deitados ― “Te foge, Jibibe, que figuro eles têm gente atirando de cima de árvores...” ― eu total aconselhei. Assim rastejávamos. E pouco faltava para o quintal do sobrado: só uma cerca miúda, com um xuxuzeiro dependurado com xuxus grandes; eram uns xuxus enormes. ― “Vam” bora, Chefe!” ― que o Jiribibe  gritou. E caiu morto, para pra cá ― acertado na testa. Não gritei, e rastejei. Ao quando dar o derradeiro lance, na porta da cozinha do sobrado, derrubei uma bacia grande, que lá em-pé encostada estava. Aí entrei. Aquela bacia atrás de mim levou uma carga de tirázios, com a qual retiniu toda, lata velha... No eu entrar, os que ali vi me saudaram: ― “Epa, Chefe!” Respondi: ― “Eh, epa!” E, naquele instante, pensei: aquela guerra já estava ficando adoidada. E medo não tive. Subi a escada.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

domingo, 28 de abril de 2013

SÃO PAULO


UM APRENDIZ DE FEITICEIRO



ROMÃNTICO

quando pensando pressinto
que estes olhos tão lindos
pó e cinza hão de virar,
ah, que saudades que sinto
do bom cálice de absinto
que tomei naquele bar...


1958

RIO DE JANEIRO


OTELO E SANT'IAGO



OS VERMES

“Ele fere e cura!” Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto  e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.

― Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos  absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.

Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído.


Machado de Assis
Dom Casmurro

BALAIO DE GATOS


HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA



Escritores e artistas, substituindo a ação pelas palavras, acreditavam poder fazer mais, e era o projeto do Teatro de Experiência, criado em São Paulo por Flávio de Carvalho e logo fechado pela polícia, o que motivou o protesto do deputado Zoroastro de Gouveia, a 19 de dezembro, na Assembléia Nacional Constituinte:

O teatro da (sic) Experiência, ali, acaba de ser brutalmente fechado pela Polícia. Um grupo de literatos, conhecidos homens de reputação artística em todo o Brasil, lançou-se a esse trabalho, verdadeiramente inóspito em momentos de paixão política, de organizar um teatro completamente independente.

Ao que se diz, a intervenção policial resultou de desordens irrompidas no recinto, mais do que pelo conteúdo subversivo do Bailado do Deus Morto, as máscaras de alumínio, bem como a capa do mesmo metal com que mais tarde circulou o único número da RASM Revista Anual do Salão de Maio), explicam-se pela indústria metalúrgica de que Flávio de Carvalho era então proprietário.

Mais revolucionárias, embora cercadas de menos sensacionalismo, eram algumas obras publicadas nesse mesmo ano de 1933, como por exemplo, juntamente com Psiquiatria e Psicanálise, de Artur Ramos, os seus “ensaios de psicanálise ortodoxa e herética”, Freud, Adler, Jung, com prefácio, aliás pouco inteligente, de Afrânio Peixoto, e O Direito de Morrer sem Dor, no qual Royo-Villanova y Morales discutia o problema da eutanásia (tradução de J. Catoira e C. Barbosa), além de Uma Definição Biológica do Crime, de Dionélio Machado, impresso em Porto Alegre. Acrescentem-se os incontáveis volumes que continuavam a ser escritos sobre os últimos movimentos armados, e que iam de A Verdade sobre a Revolução de Outubro, de Barbosa Lima Sobrinho, ao Acuso!, de João Neves da Fontoura, passando pelos Sucessos Militares de Julho de 1922, de Mário Tibúrcio Gomes Carneiro; O Despertar de São Paulo, de Menotti del Picchia (juntamente com um volume de Poesias); A Sala da Capela, de Vivaldo Coaraci; Ilha Grande, de Orígenes Lessa; Minas na Aliança Liberal e na Revolução, de Aurino de Morais, e 1930: História da Revolução na Paraíba, de Ademar Vidal.

Tudo isso já era, ou já começava a ser, História: O Brasil Continua, dizia o título irônico de Álvaro Moreira, a que podemos juntar na estante historiográfica propriamente dita: História da Civilização Brasileira; O Marquês de Abrantes; Gomes Carneiro, o General da República, e Vida e Amores de Castro Alves, todos do prolífico Pedro Calmon; O Conde d’Eu, de Luís da Câmara Cascudo; À Margem da História do Brasil, de Vicente Licínio Cardoso; Ementário da História de Minas: Felipe dos Santos Freire e A Sedição de Vila Rica em 1720, empresa antimitológica de Feu de Carvalho; O Doutor Blumenau, de J. Ferreira da Silva; O Condestável do Império, de Osvaldo Orico; O Senador José Bento, de Amadeu de Queirós; Os Amores de Canabarro, de Otelo Rosa; Minha Vida, de Medeiros e Albuquerque, em terceira edição (juntamente com Laura), e Romance de Meu Pai, de Jaime Balão Júnior.


Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960)
Cultrix. Editora da Universidade de São Paulo.
São Paulo, SP. 1ª edição. 1979.

sábado, 27 de abril de 2013

OUTROS TEMPOS...


PANEM NOSTRUM



Torva Babel das lágrimas, dos gritos,
Dos soluços, dos ais, dos longos brados,
A Dor galgou os mundos ignorados,
Os mais remotos, vagos infinitos.

Lembrando as religiões, lembrando os ritos,
Avassalara os povos condenados,
Pela treva, no horror, desesperados,
Na convulsão de Tântalos aflitos.

Por buzinas e trompas assoprando
As gerações vão todas proclamando
A grande Dor aos frígidos espaços...

E assim parecem, pelos tempos mudos,
Raças de Prometeus titâneos, rudos,
Brutos e colossais, torcendo os braços!


Cruz e Sousa
Broquéis

quinta-feira, 25 de abril de 2013

CORDISBURGO


G. RAMOS



Na fronte calma de d. Irene esboçava-se uma ligeira ruga, e eu admirava-lhe a dignidade simples, a decisão rigorosa de abelha-mestra. Apesar de sentir prazer em ouvi-la, desejava que ela se retirasse: inquietava-me saber que a qualquer momento viriam buscar-me, e isto a perturbaria. Depois a notícia daquela visita com certeza lhe ocasionaria prejuízo. Levantava-me, procurava um meio de afastá-la, os ouvidos abertos aos rumores da rua. Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia, deteve-se à porta — e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuz ou mulato, entrou na sala.

― Que demora, tenente! Desde meio-dia estou à sua espera.

― Não é possível, objetou o rapaz empertigando-se.

―Como não? Está aqui a valise pronta, não falta nada.

O sujeitinho deu um passo à retaguarda, fez meia-volta, aprumou-see, encarou-me. Tinha-lhe observado esse curioso sestro um mês antes, na repartição, onde me surgira pleiteando a aprovação de uma sobrinha reprovada. Eu lhe mostrara um ofício em que a diretora do grupo escolar de Penedo contava direito aquele negócio: a absurda pretensão de se nomear para uma banca especial fora de tempo.

― Impossível, tenente. Isso é anti-regulamentar. Demais, se a garota não conseguiu aprender num ano, certamente não foi recuperar em dias o tempo perdido. Sua sobrinha não é nenhum gênio, suponho.

O tenente recuara, rodara sobre os calcanhares, perfilara-se em atitude perfeitamente militar e replicara com absoluta impudência:

― É o que ela é. Um gênio. Posso afirmar-lhe que é gênio.

E voltara a repetir o mesmo pedido, usando as mesmas palavras. Depois de  meia hora de marchas e contramarchas cansativas, fizera a saudação, a última reviravolta, abrira a portinhola e deixara o gabinete em passos rítmicos. No dia seguinte regressara com uma carta de recomendação, repisara a exigência, lera impenetrável o regulamento e o ofício, ouvira a  recusa fatal ― e, no fim do resumo do caso enfadonho, o recuo, o movimento circular, o aprumo, a solicitação invariável, o obtuso louvor da sobrinha:

― Um gênio, eu garanto. Admita que ela seja realmente um gênio.

Gastara-me a paciência e irritara-me. Agora, finda a pirueta, olhando a valise, prova de que não haviam sabido guardar segredo, encolheu os ombros, sorriu, excessivamente gentil:

― Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer: acho bom levar mais roupa. É um conselho.

― Obrigado, tenente.

Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de pequeno burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros chegados na véspera, pelo correio. Despedi-me, D. Irene se espantava, talvez sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos, agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na cara de minha mulher sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização da ameaça. Diante da cabriola e do sorriso do mulato, pareceu despertar, mas não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: por que vinha prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências desarrazoadas?

― Quando quiser, tenente.

Saímos da sala e entramos no automóvel , um grande carro oficial.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere

quarta-feira, 24 de abril de 2013

OUTROS TEMPOS...


GR



Espalham-se por todo o livro as deixas para que se descubra o sexo de Diadorim; colhemos apenas as mais características, pois coleta mais copiosa destoaria da importância do pormenor em relação ao romance.

Os traços físicos delineiam-se em pinceladas dispersas pelo livro, num puzzle cujas peças se vão ordenando na memória do leitor e atenuam, até certo ponto, o choque da revelação final. São as mãos que seguram as rédeas “tão brancamente”, os braços bem feitos que mostrava ao lavar a roupa, a cintura fina, o passo curto, as “pestanas compridas, oss moços olhos”, “a boca melhor bem feita, o nariz fino, afiladinho”. Numa vereda, ele se vira para Riobaldo “com um ar quase de meninozinho em suas miúdas feições”; e quando ambos conhecem Otacília, Riobaldo se admira de que ela não se tenha encantado por Diadorim “sendo tão galante moço, as feições caprichadas”.

Diadorim guarda tesoura de prata e navalha em “capanga com lavores (...) toda historienta”. Corta os cabelos de Riobaldo e empresta-lhe a navalha para que se barbeie; ele próprio, apenas apara os cabelos diante do espelhinho dependurado num galho de árvore.

E há o segredo que ele fazia do próprio corpo que “era um escondido”. Segredo entremostrado em vários trechos do livro: o banho de madrugada ― sozinho no escuro das matas ― que Riobaldo atribui a superstição de caborjudo; a fuga de Reinaldo, ferido; os desaparecimentos inexplicáveis que tanto intrigavam o companheiro; o jaleco que ele não tirava nunca, escondendo as formas, como a filha de D. Martinho.

O pudor feminil já está naquela ordem do Menino, na beira do rio: ―”Longe de mim isso faz! ―. Moços, manda Riobaldo tomar banho e o deixa sozinho na beira do rio. E quando desmaia, ao saber da morte de Joca Ramiro e os companheiros tentam desapertar-lhe o colete, a vigilância do subconsciente o faz tornar em si, “em mais vermelho o rosto, numa fúria de pancada”.


M. Cavalcanti Proença
Trilhas no Grande Sertão
Os Cadernos de Cultura ― 114.
Ministério da Educação e Cultura. 
Departamento de Imprensa Nacional.
Rio de Janeiro. 1958.

terça-feira, 23 de abril de 2013

CONHECENDO PETRÓPOLIS


MACHADO



Exatamente nesse momento histórico, depois do meado do século XIX, com o atraso de cem anos sobre a Europa, sentem a ficção e as personagens de Machado de Assis a decomposição da fé. Na hora de despedida, procura, revivendo o drama jansenista, reconstruir o mundo dilacerado, no grande mergulho da natureza. Schopenhauer serve a Pascal, num jogo anacrônico de referências, em que as sugestões racionalizam a visão do mundo. Não admira que, em lugar de Deus unido ao povo, à comunidade soldada pelo amor, encontre átomos perdidos e hostis, que refletem a imagem do Diabo. A mulher e a mãe natureza personificam o mal, o mal que é a substância da terra, das suas armadilhas e da sua glória. A rota da divindade se alheou do povo, da comunidade, da igreja, numa viagem inversa ao mais religioso dos escritores do século XIX, Dostoievsky. Deus, dominado no seu mistério, depois de imergir no mundo, se dessacraliza, convertendo-se, na ação do homem, em fragmentos que a velha teologia estigmatizava de pecado. A comunidade desaparece da consciência do homem, queimada pelas grandes crises do Renascimento, até que dela, individualizada, não reste senão a sombra do homo economicus. As esferas morais e religiosas não mais existem como demônios específicos e autônomos, na marcha batida para o mundo amoral e a-religioso. As personagens de Machado de Assis, encontrando o mundo transformado, já perderam a saudade da fé, o sentimento das realidades divergentes e inconciliáveis, que inspirava o pathos da tragédia. Na diferença do universo, apenas ativo por efeito de sua força intrínseca, Deus não só está mudo, senão que se ausentou do destino dos homens. Sem saudade da fé, mas, não obstante, com a sombra da saudade, sombra que se espanca no horizonte, o humorismo está na esteira do desespero e da tragédia frustrada. Daí a afinidade de Machado de Assis com Pascal, que ele freqüenta assiduamente, na busca de um fantasma que já se desintegrou, deixando no ar os vestígios longínquos da face em fragmentos. Dentro de tais condicionamentos, afastado do Deus de Abraão, do Deus de Isaac e do Deus de Jacó, a religião, longe de ser um porto, seria um extravio, indigno da razão e da sabedoria do tempo. Seria engano supor que a elocubração racional tenha levado o homem do século XIX tão longe. Para a escalada, o equipamento essencial seria a cegueira ao ato religioso e a dessacralização do culto.   


Raymundo Faoro
Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio     
Globo. Rio de Janeiro. 3ª edição. 1988.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

CONGONHAS


OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA   (cont.)

Waldemar Alberto Borges Rodrigues Filho
Waldemar Amaro Ferreira
Waldemar Cresto
Waldemar de Souza
Waldemiro de Souza
Waldir de Almeida Lentz
Waldir Reis
Waldomiro Vitalino Souza
Waldir Gil
Walfrido Lucas Eviolanto
Walmir Barbosa de Menezes Britto
Walmir Ventura Rego
Walmy de Miranda Doyle
Waltênio Ferreira Garcia
Walter Batista de Andrade
Walter Cavalcante Nogueira
Walter da Silva
Walter de Almeida
Walter Dias de Oliveira
Walter Jacob de Souza
Walter Pedrosa de Amorim
Walter Pereira dos Santos
Walter Vianna
Wanderley Guilherme dos Santos
Wanderval Dias Luna
Washington Aires
Washington de Oliveira Souza
William Fadel Sahione
William Maksond
William Salem
Wilmo Trindade de Oliveira
Wilson Barbosa Martins
Wilson Cardoso
Wilson da Silva Mendes
Wilson Ferreira Lima
Wilson Ferreto
Wilson Juvenato Reis
Wilson Modesto Ribeiro
Wilson Sidney Lobato
Yadir Barros Tavares
Yara Lopes Vargas
Yvone Dias Avelino
Zeno Nascimento Costa
Zoroasto Ferreira Braz


Fonte:
Câmara dos Deputados

domingo, 21 de abril de 2013

RAPOSOS


OS INCONFIDENTES



CARTA DO S. M. (AUX.) JOAQUIM PEDRO DA CÂMARA AO VISCONDE DE BARBACENA; SÃO JOÃO DEL REI, 7-06-1789. (TRASLADO).

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor −− Em cumprimento do que Vossa Excelência é servido mandar-me em ofício de trinta de maio passado, ponho na presença de Vossa Excelência a carta de minha prima Dona Joana de Meneses e Valadares, de que na mesma se faz menção, inclusa nesta, de que é portador o Furriel José de Deus, Deus guarde a Vossa Excelência. São João del Rei, sete de junho de mil e setecentos e oitenta e nove ─ Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena, Governador e Capitão General desta Capitania. Joaquim Pedro da Câmara, Sargento-Mor de Auxiliares. ─ E não se continha mais na dita carta, que sem coisa que dúvida faça, aqui bem e fielmente trasladei da própria, que fica em poder do Desembargador Pedro José Araújo de Saldanha, Juiz desta Devassa, à qual me reporto; e com o mesmo Ministro esta conferi com o original; nesta Vila Rica, aos quinze dias do mês de junho de 1789; e eu o Bacharel José Caetano César Manitti, Escrivão nomeado que o escrevi, conferi e assinei.

Saldanha ─ José Caetano CésarManitti

CABO FRIO


EMANUEL E FEDERICO



Manuelzão instava o povo para rezarem o terço, a mando do padre. As mulheres começavam. As mulheres sempre iam se acrescentar todas de uma banda do pátio, se desmisturando dos homens. A reza era mais delas. Houve um declarado de respeito, os outros abrindo espaço para caminho, quando chegou o senhor do Vilamão, de barba andó, o cabelo total embranquecido, trajado de vestimenta que não se usava mais em parte nenhuma, o cavour ― sobretudo preto, com sobre-capinha que batia no cotovelo. Manuelzão sabia quem era ele, homem de muitas posses, de longes distâncias dentro de suas terras. Manuelzão o veio receber, levar pra entrar. O senhor do Vilamão já estava quase cego, tão velhinho para andar, parecia todo de vidro, pensava que os que falavam com ele estavam era pedindo esmola: respondia que Deus desse, que ele na hora não tinha. Manuelzão explicava que isso não era, convidava, pronunciava palavreado de mais escolha, mais bem lembrado. Mas aquele se inteirara mesmo ancião, reperdido na palha de uma velhice. Assim mal enxergava as pessoas, só supunha. Mas representava os altos gestos, talento de sucintos, o estado mor de fidalguia. Tão esvaziado de si, de ser homem, não tinha mais os temperos do corpo, o que ainda persistia nele era o molde do muito aprendido. E Manuelzão, que o acompanhara adentro da casa, alçantes estandartes, de repente sentia a dor de uma ferroada no machucado no pé, esbarrava no instante, sem querer se abaixar nem soltar meio-gemido. Avistava o Adelço, perpassante no fundo do corredor ― ah esse não dava préstimo de vir acomodar os hóspedes, nas coisas da festa nem ajudava em nada; por certo, o Adelço tinha sofismado sempre a idéia da festa, mesmo sem disso palavra dizer!


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
Corpo de Baile, volume I
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

ENTRE RIOS DE MINAS


O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM



Então Jesus entrou no Templo e expulsou todos os vendedores e compradores que lá estavam. Virou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. E disse-lhes: “Está escrito: Minha casa será chamada casa de oração. Vós, porém, fazeis dela um covil de ladrões!


Mt 21, 12-13

quinta-feira, 18 de abril de 2013

SETE LAGOAS


A BÍBLIA SAGRADA



Então Judá, aproximando-se dele, disse: “Rogo-te, meu senhor, permite que teu servo faça ouvir uma palavra aos ouvidos de meu senhor, sem que tua cólera se inflame contra teu servo, pois tu és como o próprio Faraó! Meu senhor havia feito esta pergunta a seus servos: ‘Tendes ainda pai ou um irmão?’E respondemos a meu senhor: ‘Nós temos o velho pai e um irmão mais novo, que lhe nasceu na velhice; morreu o irmão deste, ele ficou sendo o único filho de sua mãe e nosso pai o ama!’ Então disseste a teus servos: ‘Trazei-mo, para que ponha meus olhos sobre ele; se ele deixar .’ Nós respondemos a meu senhor: ‘O menino não pode deixar seu pai;ele deixar seu pai, este morrerá.’ Mas insististe junto a teus servos: ‘Se vosso irmão mais novo não descer convosco, não sereis mais admitidos em minha presença.’ Quando, pois, retornamos à casa de teu servo, meu pai, nós lhe relatamos , nós lhe relatamos as palavras de meu senhor. E quando nosso pai disse: ‘Voltai para comprar um pouco de víveres para nós,’ respondemos: ‘Não podemos descer. Não desceremos, a não ser que venha conosco nosso irmão mais novo, porque não será possível sermos admitidos à presença daquele homem sem que nosso irmão mais novo esteja conosco.’ Então teu servo, meu pai, nos disse: ‘Vós bem sabeis que minha mulher só me deu dois filhos: um me deixou e eu disse: foi despedaçado! E não o vi mais até hoje. Se tirardes ainda este de junto de mim, e lhe suceder alguma desgraça, na aflição faríeis descer minhas cãs ao Xeol.’ Agora, se eu chego à casa de teu servo, meu pai sem que esteja comigo o rapaz cuja alma está ligada à alma dele, logo que vir que o rapaz não esteja conosco ele morrerá, e teus servos na aflição terão feito descer ao Xeol as cãs de teu servo, nosso pai. E teu servo se tornou responsável pelo rapaz pelo rapaz junto de meu pai, nestes termos: ‘Se eu não to restituir, serei culpado para com meu pai durante toda a minha vida.’ Agora, que teu servo fique como escravo de meu senhor no lugar do rapaz, e que este volte com seus irmãos. Como poderia eu retornar à casa de meu pai sem ter comigo o rapaz? Não quero ver a infelicidade que se abaterá sobre meu pai.”


Gn 44, 18-34

quarta-feira, 17 de abril de 2013

ÁLBUM 7


GENTE MUITO APTA PARA O REINO-DO-CÉU



PRÓLOGO

Escrevi estas Confissões urgido por duas lanças. Meu medo-pânico de morrer antes de dizer a que vim. Meu medo ainda maior de que sobreviessem as dores terminais e as drogas heróicas trazendo com elas as bobeiras do barato. Bobo não sabe de nada. Não se lembra de nada. Tinha que escrever ligeiro, ao correr da pena. Hoje, o medo é menor, e a aflição também. Melhorei. Vou durar mais do que pensava.

De nada de irremediável suceder, terei tempo para revisões. Não ouso pensar que me reste vida para escrever mais um livro. Nem preciso, já escrevi livros demais. Mas admito que tirar mais suco de mim nesta porta terminal é o que quisera. Impossível?
        
Este livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e precisões, é um mero reconto espontâneo. Recapitulo aqui, como me vem à cabeça, o que me sucedeu pela vida afora, desde o começo, sob o olhar de Fininha, até agora, sozinho neste mundo.

Muito relato será, talvez, equivocado em alguma coisa. Acho melhor que seja assim, para que meu retrato do que fui e sou me saia me saia tal como me lembro. Neguei-me, por isso, a castigar o texto com revisões críticas e pesquisas. Isso é tarefa de biógrafo. Se eu tiver algum, ele que se vire, sem me querer mal por isso.

Quero muito que estas minhas Confissões comovam. Para isso as escrevi, dia a dia, recordando meus dias. Sem nada tirar por vexame ou mesquinhez nem nada acrescentar por tolo orgulho. Meu propósito, nesta recapitulação, era saber e sentir como é que cheguei a ser o que sou.

Quero também que sejam compreendidas. Não por todos, seria demasia; mas por aqueles poucos que viveram vidas paralelas e delas deram ou querem dar notícia. Nos confessamos é uns aos outros, os de nossa iguala, não aos que não tiveram nem terão vidas de viver, nem de confessar. Menos ainda aos pródigos de palavras de fineza, cortesãos.

Quero inclusive o leitor anônimo, que ainda não viveu nem deu fala. Mas tem coração que pulsa, compassado com o meu. Talvez até me ache engraçado, se alegre e ria de mim, se tiver peito. Não me quer julgar, mas entender, conviver.

Não quero mesmo é o leitor adverso, que confunde sua vida com a minha, exigindo de mim recordos amorosos e gentis, apagando os dolorosos, conforme sua pobre noção do bem e da dignidade. O preço da vida se paga é vivendo, impávido, e recordando fiel o que dela foi dor ou foi contentamento.

Termino esta minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: “Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes ou de gozos. Apagados, minerais. Para sempre mortos”.


Darcy Ribeiro
Confissões
Companhia das Letras. São Paulo.
1997.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

FESTA DO COLONO ALEMÃO


ONDE CANTA O SABIÁ



O PORTO DE MINHA INFÂNCIA

Minha cidade, Cachoeiro de Itapemirim, tem uma origem fluvial. Os colonizadores que subiam o rio em canoas, lutando com os índios, encontraram ali, a umas sete léguas do mar, um outro embaraço ao seu avanço: um “encachoeirado” ou “cachoeiro” que impedia a navegação. Para continuar, era preciso carregar as embarcações por terra até em cima. E mesmo isso não valia muito a pena, porque, dali para a frente, volta e meia iriam encontrar outras pedras e corredeiras para atrapalhar.

Há outra cidade no Espírito Santo que também se chamou Cachoeiro, pelo mesmo motivo: ali terminava a navegação do rio Santa Maria. Assim nasceu Porto do Cachoeiro, depois Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina em homenagem a uma das princesas; hoje é apenas Santa Leopoldina.

Mas voltemos a Itapemirim; junto à barra do rio, do lado direito, ainda se ergue o belo sobradão do porto. Não promete durar muito: se não for logo restaurado e receber um destino diferente ― escola, centro de artesanato, turismo, clube, colônia de férias, albergue, qualquer coisa ― não demora a desabar. Foi nesse porto que pensei quando uma pediram uma crônica sobre um porto qualquer. Mas não como porto marítimo entre o Rio e Vitória; o que me interessa, como me interessava na infância, era a navegação entre a Barra e Cachoeiro de Itapemirim.

Houve um capitão Deslandes, que hoje é nome de rua importante de Cachoeiro. Nascido em Paranaguá, lutou na guerra do Paraguai e depois se mudou para o Espírito Santo; para Vitória, a princípio, depois para Itapemirim; ali exerceu suas profissões, que eram duas: fotógrafo e dentista. Esse homem habilidoso requereu e conseguiu, em 1872, concessão para explorar a navegação a vapor do rio Itapemirim. A 3 de abril de 1876 inaugurou-se a linha. O barco levava umas oito horas para descer o rio, e dez a doze para subir. Chegou a haver seis vapores nesse serviço, além de uma barca de passageiros. As informações que tenho, de cronistas locais, nem sempre combinam muito bem, a não ser numa coisa: navegar no Itapemirim sempre foi trabalho complicado e inseguro, principalmente na época da seca, quando havia encalhes aborrecidos.


Rubem Braga
As Boas Coisas da Vida

domingo, 14 de abril de 2013

CASA E CIDADE DE PETRÓPOLIS


IMPERADOR DA LÍNGUA PORTUGUESA



Agora torna a minha pergunta. E que faria n’este caso, ou que devia fazer o semeador evangélico vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque  tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a casa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel, com que argüístes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto que aqueles animais da carroça de Deus, quando iam não tornavam: Nec revertebantur , cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz, o mesmo texto, que aqueles animais tornavam, à semelhança de um raio ou corisco: Ibant, et revertebantur in similitudinem fulguris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam, à semelhança de um raio, como diz o texto, que quando iam não tornavam? Porque quem vai, e volta  como um raio, não torna. Ir, e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou, nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira perda: continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que n’esta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.


Padre Antônio Vieira
Sermão da Sexagésima 

sábado, 13 de abril de 2013

BELO HORIZONTE


NÃO É MOTOR DE TUDO E NOSSA ÚNICA / FONTE DE LUZ, NA LUZ DE SUA TÚNICA?



Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos,
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!


Luís de Camões  

sexta-feira, 12 de abril de 2013

APARTAMENTO EM VILA VELHA


MINHA TERRA TEM PALMEIRAS



A importância do clima vai sendo reduzida à proporção que dele se desassociam elementos de algum modo sensíveis ao domínio ou à influência modificadora do homem. Parece demonstrado, por experiências recentes que nos é possível modificar pela drenagem a natureza de certos solos, influenciando assim as fontes de umidade para a atmosfera; alterar a temperatura pela irrigação de terras secas; quebrar a força dos ventos ou mudar-lhes a direção por meio de grandes massas de arvoredos convenientemente plantadas. Isso sem falar nas sucessivas vitórias que vêm sendo obtidas sobre as doenças tropicais, amansadas quando não subjugadas pela higiene ou pela engenharia sanitária.

De modo que o homem já não é o antigo mané-gostoso de carne abrindo os braços ou deixando-os cair, ao aperto do calor ou do frio. Sua capacidade de trabalho, sua eficiência econômica, seu metabolismo alteram-se menos onde a higiene e a engenharia sanitária, a dieta, a adaptação do vestuário e da habitação às novas circunstâncias criam-lhe condições de vida de acordo com o físico e a temperatura da região. Os próprios sistemas de comunicação moderna ― fáceis, rápidos e higiênicos ― fazem mudar de ãosolo e de clima: o da qualidade e até certo ponto o da quantidade de recursos de alimentação ao dispor de cada povo. Ward salienta a importância do desenvolvimento da navegação a vapor, mais rápida e regular que a navegação à vela: veio beneficiar grandemente as populações tropicais. O mesmo pode dizer-se com relação aos processos de preservação e refrigeração dos alimentos. Por meio desses processos e da moderna técnica de transporte, o homem vem triunfando sobre a dependência absoluta das fontes de nutrição regionais a que estavam outrora sujeitas as populações coloniais dos trópicos.

Neste ensaio, entretanto, o clima a considerar é o cru e quase que todo-poderoso aqui encontrado pelo português em 1500: clima irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo; clima na sua relação com o solo desfavorável ao homem agrícola e particularmente ao europeu, por não permitir nem a prática de sua lavoura tradicional regulada pelas quatro estações do ano nem a cultura vantajosa daquelas plantas alimentares a que ele estava desde há muitos séculos habituado.

O português no Brasil teve de mudar quase radicalmente o seu sistema de alimentação, cuja base se deslocou, com sensível déficit, do trigo para a mandioca; e o seu sistema de lavoura, que as condições físicas e químicas de solo, tanto quanto as de temperatura ou de clima, não permitiram fosse o mesmo doce trabalho das terras portuguesas. A esse respeito o colonizador inglês dos Estados Unidos levou sobre o português do Brasil decidida vantagem, ali encontrando condições de vida física  e fontes de nutrição semelhantes às da mãe-pátria. No Brasil verificaram-se necessariamente no povoador europeu desequilíbrios de morfologia tanto quanto de eficiência pela falta em que se encontrou de súbito dos mesmos recursos químicos de alimentação do seu país de origem. A falta desses recursos como a diferença nas condições meteorológicas e geológicas em que teve de processar-se o trabalho agrícola realizado pelo negro mas dirigido pelo europeu dá à obra de colonização dos portugueses um caráter de obra criadora, original, a que não pode aspirar nem a dos ingleses na América do Norte nem a dos espanhóis na Argentina.

Embora mais aproximado o português que qualquer colonizador europeu da América do clima e das condições tropicais, foi, ainda assim, uma rude mudança a que ele sofreu transportando-se ao Brasil. Dentro das novas circunstâncias de vida física, comprometeu-se a sua vida econômica e social.


Gilberto Freyre
Casa-Grande & Senzala

CAPAS


DE DIANTE PRA TRÁS



O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver ― não é? ― é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?

Subi aquela escada-de-redor, escutando a madeira nos meus passos, e avisando: ― “Quem evém sou eu, minha gente!” ― repetido. Aquilo meio sombrio. Aquilo meio sombrio, o ar que dava era como de ser antigo dia-de-domingo. Aí, notei que eu mesmo arfava um pouco, e estava com uma sede. Por lá devia de ter algum pote fresco ― imaginei. ― “É eu! minha gente...” ― eu disse; mesmo assim eles se assustaram primeiro, depois tomaram satisfação por me ver. Os que na sala que dava para  a frente da rua estavam, os quais eram: que o Araruta e o José Gervásio, nas armas; e o menino Guirigó e o cego Borromeu, assentados no banco, encostado na parede para o interno. Esses dois, muito juntos, como que tremiam um tanto; deviam de estar rezando.

― Que e a mulher?” ― eu indaguei.

O menino Guirigó queria mostrar: ela estava presa num quarto. Ela também estivesse rezando? Corredor velho, para ele davam tantas portas, por detrás duma delas tinham fechado a mulher, num cômodo. A chave estava na mão do cego Borromeu. Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de me entregar; rejeitei. ― Tem talha d’água, por aqui?” ― eu disse; eu tinha uma pressa desordenada, de certo. ― “Diz que lá em baixo tem... ― foi o que o menino Guirigó me deu resposta. Entendi que ele curtia sede, igualmente, e querendo comigo ir ― por seguro temia descer sozinho a escada. E o cego Borromeu, também, que não respondeu, mas que mexeu a boca, mole, mole, fazendo desse rumor de quem termina de mastigar rapadura. Me enjoou. Mas ele não tinha comido alguma coisa. Não tive comigo: ― “Tu me ouve, xixilado, tu me ouve? Assim tu me dá respeito e agradece interesses de ter tomado conta de você, e trazido em companhia minha, por todas as partes?!” Eu disse. Ele disse: ― “Deus vos proteja, Chefe, dê ademão por nós todos... E de tudo peço perdão...” Ele se ajoelhou. Ouvir e ver isso me embaraçasse, eu já pegava ponta de remorso. Porque esse homem, sem visão carnal, de valia nenhuma, maldade minha era que tinha sido a trazida dele, de em desde o começo de lugar onde ele cumpria sua vida. E agora ele devia de padecer o redobrado medo, concebendo que vai ou vai a gente fugisse dali, e ele para trás parasse, para as unhas dos outros. Mas a cena desses todos pensamentos em mim foi ligeira demais, conforme não tinham geração. A meio me lembro, e conto, é só para firmar minha capacidade. Como o reslumbre, que, no tento da hora, eu prezei em Otacília , juízo vago. Como para a janela eu fui, quase que na imaginação de botar meu olhar e haver de ver, no longe tal, o lugar aonde ela andava. Conto, para o senhor conhecer quanta espécie de causa, no mover da mente, no mero da tragagem de guerra. E o José Gervásio e o Araruta, cada um em beira duma janela, agachados, carabinas em mãos, as cheias cartucheiras. Para mim era que olhavam, estudados, querendo algum qualquer sinal. E aí uma bala alta abelhou, se seguindo sozinha, muito rente, com cujo barulho de música que fez eu conheci que era de comblém. Eu tinha de dar mais espertação ainda àqueles dois. Tenência. Para uma janela me cheguei. E endureci no rifle. Em volta relanceei. Eu ―  o bedegas!


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

terça-feira, 9 de abril de 2013

BELO HORIZONTE


NÃO É MOTOR DE TUDO E NOSSA ÚNICA / FONTE DE LUZ, NA LUZ DE SUA TÚNICA?




HISTÓRIA ANTIGA

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então, transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...


Raul de Leoni
Luz Mediterrânea

segunda-feira, 8 de abril de 2013

SÃO PAULO


UM APRENDIZ DE FEITICEIRO



MADRIGAL

Companheira, a noite é longa, muito longa,
e temos de pisá-la, passo a passo.

Companheira, largo, muito largo é o oceano,
e temos de cruzá-lo em verdes naus.

Companheira, profundo, mui profundo é o pranto,
e temos de cantar com os marinheiros.

Companheira, um dia, um dia belo
de sol, de muito sol, de rosas
vermelhas e amarelas,
nos fará navegar por um largo
oceano de águas e flores.

Azul, vermelho, amarelo.



1959
Suplemento Cultural de “O Diário”, 13/6/59