Manuelzão
instava o povo para rezarem o terço, a mando do padre. As mulheres começavam.
As mulheres sempre iam se acrescentar todas de uma banda do pátio, se
desmisturando dos homens. A reza era mais delas. Houve um declarado de
respeito, os outros abrindo espaço para caminho, quando chegou o senhor do
Vilamão, de barba andó, o cabelo total embranquecido, trajado de vestimenta que
não se usava mais em parte nenhuma, o cavour
― sobretudo preto, com sobre-capinha que batia no cotovelo. Manuelzão sabia
quem era ele, homem de muitas posses, de longes distâncias dentro de suas
terras. Manuelzão o veio receber, levar pra entrar. O senhor do Vilamão já
estava quase cego, tão velhinho para andar, parecia todo de vidro, pensava que
os que falavam com ele estavam era pedindo esmola: respondia que Deus desse,
que ele na hora não tinha. Manuelzão explicava que isso não era, convidava,
pronunciava palavreado de mais escolha, mais bem lembrado. Mas aquele se
inteirara mesmo ancião, reperdido na palha de uma velhice. Assim mal enxergava
as pessoas, só supunha. Mas representava os altos gestos, talento de sucintos,
o estado mor de fidalguia. Tão esvaziado de si, de ser homem, não tinha mais os
temperos do corpo, o que ainda persistia nele era o molde do muito aprendido. E
Manuelzão, que o acompanhara adentro da casa, alçantes estandartes, de repente
sentia a dor de uma ferroada no machucado no pé, esbarrava no instante, sem
querer se abaixar nem soltar meio-gemido. Avistava o Adelço, perpassante no
fundo do corredor ― ah esse não dava préstimo de vir acomodar os hóspedes, nas
coisas da festa nem ajudava em nada; por certo, o Adelço tinha sofismado sempre
a idéia da festa, mesmo sem disso palavra dizer!
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
Corpo
de Baile, volume I
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.