terça-feira, 23 de abril de 2013

MACHADO



Exatamente nesse momento histórico, depois do meado do século XIX, com o atraso de cem anos sobre a Europa, sentem a ficção e as personagens de Machado de Assis a decomposição da fé. Na hora de despedida, procura, revivendo o drama jansenista, reconstruir o mundo dilacerado, no grande mergulho da natureza. Schopenhauer serve a Pascal, num jogo anacrônico de referências, em que as sugestões racionalizam a visão do mundo. Não admira que, em lugar de Deus unido ao povo, à comunidade soldada pelo amor, encontre átomos perdidos e hostis, que refletem a imagem do Diabo. A mulher e a mãe natureza personificam o mal, o mal que é a substância da terra, das suas armadilhas e da sua glória. A rota da divindade se alheou do povo, da comunidade, da igreja, numa viagem inversa ao mais religioso dos escritores do século XIX, Dostoievsky. Deus, dominado no seu mistério, depois de imergir no mundo, se dessacraliza, convertendo-se, na ação do homem, em fragmentos que a velha teologia estigmatizava de pecado. A comunidade desaparece da consciência do homem, queimada pelas grandes crises do Renascimento, até que dela, individualizada, não reste senão a sombra do homo economicus. As esferas morais e religiosas não mais existem como demônios específicos e autônomos, na marcha batida para o mundo amoral e a-religioso. As personagens de Machado de Assis, encontrando o mundo transformado, já perderam a saudade da fé, o sentimento das realidades divergentes e inconciliáveis, que inspirava o pathos da tragédia. Na diferença do universo, apenas ativo por efeito de sua força intrínseca, Deus não só está mudo, senão que se ausentou do destino dos homens. Sem saudade da fé, mas, não obstante, com a sombra da saudade, sombra que se espanca no horizonte, o humorismo está na esteira do desespero e da tragédia frustrada. Daí a afinidade de Machado de Assis com Pascal, que ele freqüenta assiduamente, na busca de um fantasma que já se desintegrou, deixando no ar os vestígios longínquos da face em fragmentos. Dentro de tais condicionamentos, afastado do Deus de Abraão, do Deus de Isaac e do Deus de Jacó, a religião, longe de ser um porto, seria um extravio, indigno da razão e da sabedoria do tempo. Seria engano supor que a elocubração racional tenha levado o homem do século XIX tão longe. Para a escalada, o equipamento essencial seria a cegueira ao ato religioso e a dessacralização do culto.   


Raymundo Faoro
Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio     
Globo. Rio de Janeiro. 3ª edição. 1988.