Exatamente
nesse momento histórico, depois do meado do século XIX, com o atraso de cem
anos sobre a Europa, sentem a ficção e as personagens de Machado de Assis a
decomposição da fé. Na hora de despedida, procura, revivendo o drama
jansenista, reconstruir o mundo dilacerado, no grande mergulho da natureza.
Schopenhauer serve a Pascal, num jogo anacrônico de referências, em que as
sugestões racionalizam a visão do mundo. Não admira que, em lugar de Deus unido
ao povo, à comunidade soldada pelo amor, encontre átomos perdidos e hostis, que
refletem a imagem do Diabo. A mulher e a mãe natureza personificam o mal, o mal
que é a substância da terra, das suas armadilhas e da sua glória. A rota da
divindade se alheou do povo, da comunidade, da igreja, numa viagem inversa ao
mais religioso dos escritores do século XIX, Dostoievsky. Deus, dominado no seu
mistério, depois de imergir no mundo, se dessacraliza, convertendo-se, na ação
do homem, em fragmentos que a velha teologia estigmatizava de pecado. A
comunidade desaparece da consciência do homem, queimada pelas grandes crises do
Renascimento, até que dela, individualizada, não reste senão a sombra do homo economicus. As esferas morais e
religiosas não mais existem como demônios específicos e autônomos, na marcha
batida para o mundo amoral e a-religioso. As personagens de Machado de Assis,
encontrando o mundo transformado, já perderam a saudade da fé, o sentimento das
realidades divergentes e inconciliáveis, que inspirava o pathos da tragédia. Na diferença do universo, apenas ativo por
efeito de sua força intrínseca, Deus não só está mudo, senão que se ausentou do
destino dos homens. Sem saudade da fé, mas, não obstante, com a sombra da
saudade, sombra que se espanca no horizonte, o humorismo está na esteira do
desespero e da tragédia frustrada. Daí a afinidade de Machado de Assis com
Pascal, que ele freqüenta assiduamente, na busca de um fantasma que já se
desintegrou, deixando no ar os vestígios longínquos da face em fragmentos.
Dentro de tais condicionamentos, afastado do Deus de Abraão, do Deus de Isaac e
do Deus de Jacó, a religião, longe de ser um porto, seria um extravio, indigno
da razão e da sabedoria do tempo. Seria engano supor que a elocubração racional
tenha levado o homem do século XIX tão longe. Para a escalada, o equipamento
essencial seria a cegueira ao ato religioso e a dessacralização do culto.
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis: a Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro. 3ª edição. 1988.