quinta-feira, 29 de novembro de 2012

HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA



Ao Brasil profano e histórico dessas obras correspondia o Brasil místico e mítico da Atlântida, epopéia cósmica de Dario Veloso, concluída em 1933, embora só cinco anos mais tarde fosse postumamente publicada. Trata-se da nossa epopéia nacional, e faltou-lhe apenas a espessura de um cabelo, escrevia eu a 5 de setembro de 1970 para situar-se no mesmo plano de tantos outros poemas legendários de que se orgulham escandinavos e hindus, hispano-americanos ou poloneses — e mesmo franceses. A Atlântida deve ser lida nas perspectivas das demais epopéias românticas que, segundo a bela síntese de Léon Celeiro, são humanitárias e religiosas. Otimistas, crêem no futuro da Humanidade; sabem que, se os deuses morrem, acabam sempre por ressuscitar; anunciam, como Victor Hugo, o fim de Satã. O épico para uma epopéia moderna é a evolução do progresso humano; nisso, os simbolistas, como Dario Veloso, confundiam-se paradoxalmente com os Enciclopedistas nas mesmas aspirações e ideais; a recíproca, aliás, é verdadeira, porque a idade da Enciclopédia, na aguda observação de Herbert J. Hunt, “é a idade dos curandeiros, profetas, convulsionários —  e charlatães. É também a idade dos maçons, da teosofia e do iluminismo” — tudo confluindo paradigmaticamente na obra de Dario Veloso. De fato, Herbert J. Hunt reportava-se ao juízo de Chateaubriand, no Gênio do Cristianismo, só restavam aos tempos modernos dois belos assuntos de epopéia, as Cruzadas e a Descoberta do Novo Mundo. Lembremos, a propósito do poema brasileiro, que, desd 1812, Népomucène Lemercier (1771-1840) havia feito da destruição do continente mítico o tema do poema Atlantide ou la Théogonie newtonienne.

Em Dario Veloso, a concepção central do poema consistiu em substituir, seja a mitologia clássica, sejam as lendas nacionais, pelas concepções iniciáticas, assim inscrevendo as origens do Brasil não no plano humano e histórico em que afinal todas as epopéias convencionais desembocam, mas no plano mais alto do universo estelar. No glossário do poema, ele classificava desta maneira a noção do “Ciclo brasileiro”:

Com a chegada dos Lusos (1500) a cadeia da Atlântida interrompida desde a submersão de Poseidonis, toca seus últimos elos, impercebidamente. Volve ao Brasil bruxuleante vestígio da Tradição atlante-ibera. — O Brasil tem por missão histórica espargir no Orbe ensinamentos pacifistas, homogeneizando as Raças humanas, formando o tipo sintético da Espécie. No próximo século iniciar-se-á o Ciclo do Brasil.

Na sua cosmogonia, Dario Veloso adota a idéia de A. Sergipe quanto às origens do Homem na raça negra:

A Raça de azeviche que, primeira
Da espécie humana, o Globo dominou (...)

a concepção do poema sendo que, com o desaparecimento de Poseidonis, última ilha da Atlântida, salvam-se um sábio e dois discípulos; aportando no Brasil aliam-se ao Tamoio da Guanabara e levam finalmente a palavra sagrada até aos Incas do Peru. Eis a chegada ao Brasil, elo predestinado na obra civilizadora da Atlântida:

Mais perto a terra do Brasil verdeja...
Antes da noite chegaria à plaga
O frágil lenho que no mar veleja.

Há no ambiente aroma que embriaga,
A carícia da terra donairosa,
A canção das palmeiras sobre a vaga.

— Que te pode igualar, Terra ditosa?!
(.............................................................)
Acentua-se a curva da baía...

— Guanabara! — a mais linda do Universo!
Perene a primavera, a noite um dia;
Estelário do Eterno em linfa imerso.

Os peregrinos partem, afinal, para o Peru através da Amazônia, “Canaã que ainda espera seu povo”, dizia Alfredo Ladislau em Terra Imatura, em linguagem não menos carregada de misticismo. Foi ele que lançou a idéia da “cobiça internacional”, destinada a popularidade que se conhece:

Diante desta grande milionária, permanecemos como usurários desprezíveis, sem o ânimo de usufruí-la, consentindo, todavia, na espoliação dos seus tesouros nativos, mau grado o constante receio de que ela nos seja, um dia, arrebatada por uma raça qualquer, mais poderosa e apta a dar-lhe todo o progresso que ela merece.


Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960)
Cultrix. Editora da Universidade de São Paulo.
São Paulo, SP.
1978.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

PRETO & BRANCO


PANEM NOSTRUM



SONHO BRANCO

De linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho virgem que cantas em meu peito!...
És do Luar o claro deus eleito,
Das Estrelas puríssimas nascido.

Por caminho aromal, enflorescido,
Alvo, sereno, límpido, direito,
Segues, radiante, no esplendor perfeito,
No perfeito esplendor indefinido...

As aves sonorizam-te o caminho...
E as vestes frescas, do mais puro linho
E as rosas brancas dão-te um ar nevado...

No entanto, ó Sonho branco de quermesse!
Nessa alegria em que tu vais, parece
Que vais infantilmente amortalhado!


Cruz e Sousa
Broquéis

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

CORDISBURGO


G. RAMOS


E aqui chego à última objeção que me impus. Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los. Certamente me irão fazer falta, mas terá sido uma perda irreparável? Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor das folhas que tombavam das árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade. Em conversa ouvida na rua, a ausência de algumas sílabas me levou a conclusão falsa — e involuntariamente criei um boato. Estarei mentindo? Julgo que não. Enquanto não se reconstituírem as sílabas perdidas, o meu boato, se não for absurdo, permanece. e é possível que esses sons tenham sido eliminados por brigarem com o resto do discurso. Quem sabe se eles aí não se encaixaram com intuito de logro? Nesse caso havia conveniência em suprimi-los, distinguir além deles uma verdade superior a outra verdade convencional e aparente , uma verdade expressa de relance nas fisionomias. Um sentido recusou a percepção de outro, substituiu-a. Onde estará o erro? Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e não dão hoje impressão de realidade. Formamos um grupo muito complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de recompô-lo. Define-se o ambiente, as figuras se delineiam, vacilantes, ganham relevo, a ação começa. Com esforço desesperado arrancamos de cenas confusas alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos assaltam. De que modo reagiram os caracteres em determinadas circunstâncias? O ato que nos ocorre, nítido, irrecusável, terá sido realmente praticado? não será incongruência? Certo a vida é cheia de incongruências, mas estaremos seguros de não nos havermos enganado?  Nessas vacilações dolorosas, às vezes necessitamos confirmação, apelamos para reminiscências alheias, convencemo-nos de que a minúcia discrepante não é ilusão. Difícil é sabermos a causa dela, desenterrarmos pacientemente as condições que a determinaram. Como isso variava em excesso, era natural que variássemos também, apresentássemos falhas. Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma, sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos as sombras dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo ter-me revelado com freqüência egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam infligir naquele ano terrível.

Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem; fala um sujeito mais ou menos imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele me facilita a narração. Além disso não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. Viagens.
(obra póstuma).
José Olympio. Rio de Janeiro, 1953.

sábado, 24 de novembro de 2012

OUTROS TEMPOS


GR


DOM RIOBALDO DO URUCUIA, CAVALEIRO DOS CAMPOS GERAIS

“...Este havia dar cima aas maravilhosas aventuras do regno de Logres.”

(Demanda do Santo Graal II, 18)

Se há necessidade de classificação literária para Grande Sertão: Veredas, não há dúvida que se trata de uma epopéia. Preferimos não gastar palavras com argumentação que nos levaria longe, embora com margem dadivosa para demonstrações comparativistas. Algumas anotações de natureza didática, somente para não afirmar sob palavra, podem justificar desde logo a classificação. Deixando de lado as qualidades orgânicas de unidade de ação e de interesse, comuns a qualquer obra literária, Riobaldo é um verdadeiro protagonista, até no sentido etimológico do termo, sempre o primeiro nos combates, como homem que atira bem. “Senhor atira bem, porque atira com o espírito. Sempre o espírito é que acerta...” como dizia Alemão Vupes.

A intercalação de episódios convergentes com a ação principal, mas de função adjuntiva, podendo adquirir independência formal, aparece freqüentemente; desde logo, podem ser enumerados o do Aleixo, com os três filhos cegos, o do Joé Cazuzo, com visões sobrenaturais em pleno combate, o de Andalécio e Antônio Dó atacando o porto de São Francisco.

Aliás, por esta característica, os próprios contos e novelas de Guimarães Rosa, entremeados de episódios, são épicos em grande número. O do touro Calundu, o do negrinho cujo canto fez estourar a boiada, em “O Burrinho Pedrês”; o do sapo e do cágado na “Volta do Marido Pródigo”; do Bento Porfírio, em “Minha Gente”; o do “Quem Será”, em “São Marcos”, todos em Sagarana, e ficando apenas numa parte do livro, o episódio de Maria Mutema, este no Grande Sertão: Veredas, é um verdadeiro conto incrustado no corpo do romance, como processo de reter o desenvolvimento da ação, prolongando o interesse da narrativa.

Voltemos ao fio da classificação. O ponto nodal é o julgamento de Zé Bebelo, quando, conseguido o equilíbrio das forças adversárias (jagunços contra governo) deveria findar totalmente o interesse do enredo. Entretanto, a morte de Joca Ramiro, herói secundário, desata novamente a ação que, daí por diante, se desencadeia, em plano diferente até a morte de Diadorim, com a justificação do sentido etimológico do nome do herói: Rio-Baldo.

Pelas características que tentaremos pôr em evidência, o tema é, evidentemente, material de filiação popular. Jean Superville, falando da epopéia erudita, diz que ela “nasce completa do cérebro de um poeta, como Minerva, armada, do cérebro de Júpiter”. Aparte o pedantismo da imagem e o risco de pensarem que ameaço fazer de Guimarães Rosa um novo Tonante, quero aproveitar o símile, como ajutório do que vou expor:

O cangaceiro, como herói de poesia narrativa sertaneja, é assunto pacífico entre folcloristas, e o paralelismo com as epopéias medievais e seu sucedâneo — o romance de cavalaria, já tem sido apontado, inclusive, pelo autor deste ensaio.

Pois bem, esse Riobaldo é uma estilização da imagem convencional que o povo estabeleceu para seus heróis.

Que não houve, apenas, paráfrase de uma lenda, é evidente. Mas o tipo cavalheiresco de Riobaldo despertou, associativamente, no acervo de impressões de leitura do autor, ressonâncias que acabaram por sintonizar até os componentes do romance, onde se pode rastrear uma propensão arcaizante de efabulação, com reflexos no próprio vocabulário.

Riobaldo começa menino sem pai, tímido, mas com vários embriões de virtudes heróicas, que se irão acentuando, até elevá-lo, meio inconscientemente, a chefe indiscutido,embora não pressentido pelos que o cercam. ( Exceto por Diadorim, que logo adivinha).

Cangaceiro cortês, se não se repelem os vocábulos, Riobaldo não comete barbaridades, não consegue cometê-las, apesar da tentação de fazê-lo, com o pobre sertanejo da égua e da cachorrinha, ou com o leproso trepado na árvore (tal e qual aquela moura, filha de leproso do “comance-velho” da Enfeitiçada — “homem que a mim se chegasse, malato se tornaria”). Riobaldo não tolera a deslealdade e os desleais lhe são inimigos de morte, os “judas”. Muito folcloricamente, procura o equilíbrio social e tem rasgos de bandido romântico, favorecendo com esmola grande a mulher que dá à luz no casebre miserável.



Como nos “romances-velhos”, Diadorim propõe, e ele jura cumprir, voto de castidade, porque “senvergonhice e airado avejo servem só para tirar da gente o poder da coragem”. Era a “regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem”, o jagunço, mas o fora, antes, de Nun’Álvares Pereira que já imitava nesse ponto o patrono Dom Galaaz.

Os chefes sertanejos guardam traços medievais

“Medeiro Vaz, retratal, barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto, com todas as velhices, sem nem velho ser”, era “homem sobre o sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele decidia a confiança da obediência. Ossoso, com a nuca enorme, cabeçona meia baixa, ele era dono do dia e da noite — que quase não dormia mais: sempre se levantava no meio das estrelas, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas boas botas de caitetu, tão antigas. Se ele em honrado Juízo achasse que estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas”. “Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor não mais não vê. Ele tinha conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Tenente nos gerais —ele era.” Não é Carlos Magno em gibão de couro?

Talvez a figura de Rolando se ajuste em Joca Ramiro, montado em cavalo branco feito um São Jorge. Vale a pena transcrever o trecho em que Riobaldo o apresenta: “E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco — cavalo que me olha de todos os altos. Numa sela bordada de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava.” E, em outro passo, evocando o chefe morto: “Joca Ramiro, tão diverso e reinante que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já estivesse constando de falecido.”


M. Cavalcanti Proença
Trilhas no Grande Sertão
Os Cadernos de Cultura   114
Ministério da Educação e Cultura.
Rio de Janeiro. 1958.  

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

PETRÓPOLIS


MACHADO



DOM CASMURRO E O LEITOR LACUNAR

Em Dom Casmurro, a figura do leitor passa a incluir também o risco da interpretação inerente ao processo de leitura, e o lugar que lhe é prescrito torna-se mais ambíguo do que em qualquer dos romances anteriores . Desta vez o leitor é explicitamente convocado a participar do processo literário na condição de intérprete, completando lacunas, tirando conclusões e fazendo julgamentos do que lhe é relatado. Enquanto em Brás Cubas e Quincas Borba o tom jocoso da narração convida ao distanciamento em relação aos fatos narrados, em Dom Casmurro a nostalgia melancólica apela à empatia do leitor. Ao mesmo tempo em que o narrador Bento Santiago procura convencer-nos da sua versão do ocorrido, ele vai deixando pelo caminho falsas pistas que possibilitam explicações divergentes das suas, constituindo-se em iscas para enredar o leitor no campo ficcional. Para isso, como bem observou Silviano Santiago em “Retórica da Verossimilhança” o leitor é colocado no centro da arena de discussão, já que persuadir é um dos principais interesses da prosa de Dom Casmurro. Mas o processo de convencimento e persuasão não quer fazer com que o leitor evolua no seu modo de pensar ou de encarar os problemas, mas sim fornecer-lhe matéria para que ele se convença a si próprio, a partir dos seus próprios conceitos e preconceitos. Daí a centralização do motivo do discurso estar não no discernimento do orador casmurro, mas no de quem escuta, em última análise responsável por completar e dar sentido à narração.

Ao apelo por uma identificação negativa com Brás Cubas e, em certa medida, com Rubião, sucede a procura não de identificação, mas de uma espécie de adesão do interlocutor ao processo da narração. O narrador procura seduzi-lo de modo a torná-lo não apenas cúmplice, mas co-autor da narração, forçando-se a aproximação entre as instâncias da narração e da interlocução. Diferentemente do que ocorre nos dois romances anteriores, as objeções ao leitor desta vez não se manifestam pelo confronto direto, mas aparecem incorporadas ao modo ambíguo do relato. É como se a tessitura do texto se alargasse e as fissuras — contradições, omissões, emendas, lacunas — construíssem um espaço, digamos, interno, capaz de abrigar leituras discordantes entre si, variáveis em função das projeções que o leitor empírico faz dos seus próprios valores e crenças sobre o texto radicalmente ambíguo do romance.


Hélio de Seixas Guimarães
Os Leitores de Machado de Assis
o romance machadiano e o público de literatura
no século 19
Nankin Editorial. Edusp (Editora da Universidade
de São Paulo). São Paulo, SP. 2004.

CONGONHAS


OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA  (cont.)

José Torquato da Silva
José Vieira Netto
José Yapony Galvão
Josezito Moura do Amaral Padilha
Joviano Rincon Segóvia
Júlia Vaena Steinbruch
Júlio Barbosa
Júlio de Almeida Pimentel
Júlio Furquim Sambaquy
Júlio Puddles
Jurandir Ferreira Alves
Justiniano da Silva Neves Neto
Lacides Vanderley da Silveira Cáurio
Laércio Wilson Barbalho
Laerte José de Paiva
Laís Loureiro Alves
Lauro de Almeida Aparício
Lauro de Oliveira Lima
Lauro Hagemann
Lenito Câncio de França
Léo de Almeida Neves
Leo Rodrigues de Almeida
Leon Naves Barcelos
Leôncio Carolino de Jesus
Leonel Jarto Severo
Leonel Júlio
Leônidas Rangel Xausa
Leopoldo Virtude Bogea
Lincoln Bicalho Roque
Lits da Silva Amaral
Lizandro Vieira da Paixão Loureiro de Moraes
Lourival Vilela Viana
Lucas Buzeti
Luciano Costa Reis
Luciano José Moriva
Lucila Santos Sasso
Luiz Alves Silva
Luiz Antônio Florambel Pinto Peixoto
Luiz Belo Soares
Luiz Bica de Alencastro
Luiz Canani Pereira
Luiz Carlos de Oliveira Júnior
Luiz Carlos Dias
Luiz Carlos Fiber do Nascimento
Luiz Carlos Gama
Luiz Carlos Pinheiro Machado
Luiz Carlos Vitor Pujol
Luiz Correia de Souza
Luiz Cruz
Luiz da Costa Fonseca
Luiz da Costa Leal
Luiz da França Costa Lima Filho
Luiz de Andrade Lima
Luiz Fernando Corona
Luiz Fernando Gomes da Silva

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

RAPOSOS


OS INCONFIDENTES



Auto de exame, achada, e separação feita nos papéis apreendidos ao Tenente-Coronel Domingos de Abreu Vieira.

Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e setecentos e oitenta e nove, aos vinte e seis dias do mês de maio do dito ano, nesta Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto e casas de morada do Tenente-Coronel Domingos de Abreu Vieira, onde foi vindo o Doutor Desembargador Pedro José Araújo de Saldanha, Ouvidor Geral de Corregedor desta Comarca, Juiz nomeado para a presente diligência, comigo o Bacharel José Caetano César Manitti, Ouvidor e Corregedor da do Sabará, também nomeado Escrivão da mesma, ambos por Portaria do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena, Governador e Capitão General desta Capitania, e sendo aí, por ele dito Ministro, foram miúda e exatamente examinados todos os papéis e correspondências que se encontraram que se acharam do referido tenente-coronel, a fim de se averiguar se entre eles aparecia algum que fosse suspeitoso, ou que direta ou indiretamente respeitasse ao fim por que se mandou proceder a presente diligência, tudo por ordem do dito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor constante da Portaria junta; e praticado efetivamente o mencionado exame, entre os ditos papéis e correspondências se encontraram as duas cartas ao diante juntas e aqui autuadas, escritas ambas do Arraial do Tejuco, Comarca do Serro do Frio, ao dito tenente-coronel pelo Padre José da Silva e Oliveira Rolim; a primeira datada de trinta de março; e a segunda de vinte de abril do corrente ano; achando-se nas costas das mesmas lembrança escrita do tempo do seu recebimento e respostas, cujas cartas vão por mim rubricadas, e porque as mesmas se fazem pelo seu conteúdo muito suspeitosas, para sobre elas se proceder às averiguações competentes, mandou o dito Ministro separá-las  e de tudo, para assim constar, fazer este auto de exame, achada e separação, em que assinou comigo, Escrivão nomeado; e eu, o Bacharel José Caetano César Manitti, o escrevi e assinei.

Saldanha   — José Caetano César Manitti      

terça-feira, 20 de novembro de 2012

CABO FRIO


EMANUEL E FEDERICO



Aqui era umas araraquaras. A Terra do Boi Solto. Chegaram, em mês de maio, acharam, na barriga serrã, o sítio apropriado, e assentaram a sede. O que aquilo não lhes tirara, de coragens de suor! Os currais, primeiro; e a Casa. Ao passo que faziam, sempre cada um deles recordava o modo de feitio de alguma jeitosa fazenda, de sua terra ou de suas melhores estradas, e o queria remedar, com o pobre capricho que o trabalho muito duro dá desejo de se conceber; mas, quando tudo ficou pronto, não se parecia com nenhuma outra, nas feições, tanto as paragens do chão e o desuso do espaço sozinho têm seu ser e poder. Daí, esperaram as grossas chuvas. Era a Casa, grada, com muitos cômodos de chão batido e só um quarto de assoalho; em dado não passava, bem dizer, de uma casa-rancho, mas com teto complexo, de madeiras, por sobrecima as talas e palmas de buriti. A rebaixa — um alpendre cercado — ; o rancho de carros-de-boi; outros ranchos; outras casinhas; outros rústicos pavilhões. Contiguavam-se os currais, ante esse conjunto, dele distanciados por um pátio e pelo eirado, largoso, limpo de vegetação, porque o gado nele malhava, seu pisoteio impedindo-a. Ali e no pátio, onde os homens e animais formavam convivência, algumas árvores mansas foram deixadas — gameleiras, tinguis com frutas partas maiores que laranjas, e cagaiteiras, ora em flor. Os longos cochos, nodosos, cavados em irregulares troncos, ficavam à sombra delas. Enquanto os bois comiam, as florinhas e as folhas verdes caíam no sal.


João Guimarães Rosa
Corpo de Baile – 1º volume
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

domingo, 18 de novembro de 2012

ENTRE RIOS DE MINAS


O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM



Nesse tempo, chegaram-se a Jesus fariseus e escribas vindos de Jerusalém e disseram: “Por que os teus discípulos violam a tradição dos antigos? Pois que não lavam as mãos quando comem”. Ele respondeu-lhes: “E vós, por que violais o mandamento de Deus por causa de vossa tradição? Com efeito Deus disse: Honra pai e mãe e Aquele que maldisser pai ou mãe certamente deve morrer. Vos, porém, dizeis: Aquele que disser ao pai ou à mãe: Aquilo que de mim poderias receber foi consagrado a Deus, esse não está obrigado a honrar pai ou mãe. E assim invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradição. Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, quando disse.

Este povo me honra com os lábios,
mas o coração está longe de mim.
Em vão me prestam culto,
pois o que ensinam são apenas mandamentos humanos.”


Mt 15, 1-9 

sábado, 17 de novembro de 2012

SETE LAGOAS


A BÍBLIA SAGRADA



Então o Faraó falou assim a José: “Em meu sonho, parecia-me que estava de pé na margem do Nilo. Eis que subiram do Nilo sete vacas bem cevadas e de bela aparência, que pastavam nos juncos. Mas eis que outras sete subiram depois delas, extenuadas, de aparência feia e mal alimentadas, jamais vi tão feias em toda terra do Egito. As vacas magras e feias devoraram as sete primeiras, as vacas gordas. E depois que as devoraram, não demonstravam tê-las devorado, porque sua aparência permanecia  feia quanto no início. Então acordei. Depois vi em sonho sete espigas subindo de uma mesma haste, cheias e belas. Mas eis que sete espigas secas, mirradas e queimadas pelo vento oriental, nasceram depois delas. E as espigas mirradas devoravam as sete espigas belas. Eu narrei isso aos magos, mas não há ninguém que me dê a resposta.

José disse ao Faraó: “O Faraó teve apenas um sonho: Deus anunciou  ao Faraó o que  vai realizar. As sete vacas belas representam sete anos , é um só e mesmo sonho. As sete vacas magras e feias que sobem em seguida representam sete anos e também as sete espigas mirradas e queimadas pelo vento oriental: é que haverá sete anos de fome. É como eu disse ao Faraó; Deus mostrou ao faraó o que vai realizar: eis que vêm sete anos em que haverá grande abundância em toda a terra do Egito; depois lhes sucederão sete anos de fome, e se esquecerá toda a abundância na terra do Egito; a fome esgotará a terra, e não mais se saberá o que era a abundância na terra, em face dessa fome que se seguirá, pois ela será duríssima. E se o sonho do Faraó se repetiu duas vezes, é porque o fato está bem decidido da parte de Deus e Deus tem pressa em realizá-lo.

Agora, que o Faraó escolha um homem inteligente e sábio e o estabeleça sobre a terra do Egito. Que o Faraó aja e institua funcionários na terra, tome a quinta parte dos produtos da terra do Egito durante os sete anos de abundância, e eles reúnam todos os víveres desses bons anos que vêm, armazenem o trigo sob a autoridade do Faraó, coloquem todos os víveres nas cidades e os guardem. Esses víveres servirão de reserva à terra para os sete anos de fome que se abaterão sobre a terra do Egito, e a terra não será exterminada pela fome.


Gn, 41, 17-36

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

GSV: CAPAS


DE DIANTE PRA TRÁS



Mas, então, quando se estava de volta m’embora vindo, peguei uma inesperada informação, na Barra do Abaeté. De Zé Bebelo! Tinha mesmo de ser. Não sei por que foi, que com aquilo me renasci. Que Zé Bebelo estava demorando légua para cima, perto do São Gonçalo do Abaeté, no Porto-Passarinho. Me fiz para lá. E como era, que, antes e antes, eu não tivesse pensado em Zé Bebelo? Trote tocamos, viemos, beirando aquele rio. O senhor sabe — o rio Abaeté, que é entristecedor audaz de belo: largo tanto, de morro a morro. E em minha vida eu já pensava.

Zé Bebelo gritou — Safa! Safas!...” — e me abraçou como amigo cordial, contente de muito me ver, constante se nada tivesse destruído o nosso costume. Conto que estava o mesmo, aposto e condizente

— “Tudo viva!, Riobaldo, Tatarana , Professor...” — ele concisou. — “Tu quis paz?”

Sagaz assim me olhava, chega me cheirar só faltasse, de tornados a encontrar no curral, como boi a boi. Disse que eu estava feliz, mas emagrecido, e que encovava mais os olhos.

— “Estais p’ra trás... Sabe? Negociei um gado... Mudei meus termos! A ganhar o muito dinheiro — é o que vale... Pó d’ouro em pó...” — o que ele me disse.

E era a pura mentira. Mas podia ser verdade.

Porque ele, para se viver, carecia daquela bazófia, forte mestreava. Como logo ele pregou:

— “Há-te! Acabou com o Hermógenes? A bem. Tu foi o meu discípulo... Foi não foi?”

Deixei: ele dizer, como essas glórias não me invocavam. Mas, então, ele não me entendendo, esbarrou e se pôs. Cujo:

— “A bom, eu não te ensinei; mais bem te aprendi a saber a saber certa a vida...”

Eu ri, de nós dois.

Três dias falhei com ele, lá, no Porto-Passarinho.

E Zé Bebelo corrigiu, para eu ouvir, os projetos que ele tinha. Aí, ai, fanfarrices. Não queria saber do sertão, agora ia para capital, grande cidade. Mover com comércio, estudar para advogado. — “Lá eu quero deduzir meus feitos em jornal, com retratos... A gente descreve as passagens de nossas guerras, fama devida...” “— Da minha, não senhor!” — eu fechei. Distrair gente com o meu nome... Então ele desconversou. Mas, naqueles três dias, não descansou de querer me aliviar, e de formar outros planejamentos para encaminhar minha vida. Nem indenizar completa a minha dor maior ele não pudesse. Só que Zé Bebelo não era homem de não prosseguir. Do que a Deus dou graças!

Porque, por fim, ele exigiu minha atenção toda, e disse:

—“Riobaldo, eu sei a amizade de que agora tu precisa. Vai lá. Mas, me promete: não adia, não desdenha! Daqui, e reto, tu sai e vai lá.. Diz que é de minha parte... Ele é diverso de todo o mundo.”

Mesmo  escreveu um bilhete, que eu levasse. Ao quando despedi, e ele me abraçou, senti o afeto em ser de pensar. Será que ainda tinha aquele apito, na algibeira? E gritou: — “Safas!” —; maximé.

Tinha de ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo, mesmo, para meu destino começar de salvar. Porque o bilhete era para o Compadre meu Quelemém de Góis, na Jijujã — Vereda do Buriti Pardo. Mais digo? O senhor vá lá. No tempo de maio, quando o algodão lãla. Tudo o branquinho. Algodão é o que ele mais planta, de todas as modernas qualidades: o rasga-letras, bibol, e mussulim. O senhor vai ver pessoa de tal rareza, como perto dele todo-o-mundo pára sossegado, e sorridente, bondoso... Até com o Vupes lá topei.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

SÃO PAULO


UM APRENDIZ DE FEITICEIRO


Nunca gostei de ti, nunca te amei,
cidade sem graça e sem horizontes,
ou quase, se a graça, se o teu horizonte
é só a parede, muralha sem fim,
o azul infinito, que melhor se desdobra
da banda de lá, país do das-Velhas,
que escorrega seu barro, sem pressa, feliz.

Já faz tanto tempo que a gente convive,
são anos e anos, cinqüenta talvez,
fiéis um ao outro, pesar do que sinto,
e, assim como assim, então nos juntamos
num abraço mortal  que o tempo sem fim
vai fazer perdurar no teu ventre deserto,
sem flores, jasmins, sem estrelas, de ferro.


3/10/98.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

RIO DE JANEIRO


OTELO E SANT'IAGO



É  TEMPO

Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida ; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma ópera”, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo.


Machado de Assis
Dom Casmurro    

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

BALAIO DE GATOS


HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA



Tendo superado sem maiores crises de consciência a tentação totalitária, a “verdade” de Afonso Arinos parecia consistir no processo de reconversão ao catolicismo, cujas posições defende e cuja nostalgia percorre todo o volume. No plano político, ele se declarava igualmente contrário ao comunismo e ao fascismo, assinalando embora a aspiração então generalizada pelos governos fortes e a “moda” marxista que grassava entre os intelectuais brasileiros. O seu programa era nacionalista: “o intelectual brasileiro deve, portanto (...) adotar o sadio nacionalismo construtor”; o momento já não comportava o ceticismo elegante das primeiras gerações republicanas: era um momento de fé, em todos os sentidos da palavra. Protestando não alimentar sentimentos anti-semitas, não se pode negar, contudo, que um bafio de surda hostilidade contra os judeus é uma de suas tônicas intelectuais, o que, de resto constituía outro lugar-comum da época, mesmo para um escritor que considerava Mussolini “um homem de gênio” e Hitler um simples “caixeiro-viajante”. O tema vai desabrochar plenamente na Preparação ao Nacionalismo do ano seguinte. Por enquanto, o anti-semitismo latente manifesta-se na forma depreciativa, mas insistente, com que repete o adjetivo “judeu” com referência as pessoas ou às idéias: “o sutil israelita Julien Benda”; Graça Aranha, judeu inquieto; “um judeu genial, S. Paulo”, e assim por diante. Propondo um nacionalismo ardente mas vago (não se sabe, afinal de contas, em que consistiria o “nacionalismo construtor”), Afonso Arinos não poupava sarcasmos ao modernismo literário e artístico, parte integrante do que ele encarava como a “desordem brasileira”:

A desordem literária é também inegável e da origem desta sou testemunha pessoal. Começou há menos de dez anos quando alguns escritores novos, ansiando pela derrubada do dogma estético, investiam desabridamente contra o passado, iconoclastas de pouco discernimento, que pretendiam destruir o que era mau (...) mas que atingiam também, sob os golpes incertos, o pouco que tínhamos de bom (...) O intelectual brasileiro que deixe, pois, o modernismo para a basbaquice intolerante e verbosa, e fique com a atualidade, isto é, com a eternidade.

Percebe-se que a sua hostilidade ao Modernismo decorria de encará-lo como um movimento internacionalista, ou seja, por implicação, marxista e judaico; ele imaginava que a civilização técnica tocava ao fim, com o declínio da influência norte-americana; afirmava que, no Brasil, eram pequenas “as probabilidades de implantação de uma ditadura militar ou civil, de tendência fascista” e pregava um regime de liberdade, com os intelectuais, e não os tecnocratas, no poder.


Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960)
Cultrix. São Paulo, SP.
Editora da Universidade de São Paulo.
São Paulo, SP. 1977-78.

sábado, 10 de novembro de 2012

PRETO & BRANCO


PANEM NOSTRUM



Sinto-me salivado pelo Verbo,
rodeado de presença e mensagens,
de santuários falhados e de quedas,
de obstáculos, de limbos e de muros.

Furo as noites e vejo-te, Solstício,
ou recolho-me ao âmago das coisas,
renovo um sacrifício expiatório,
lavo as palavras como lavo as mãos.

Esta é a zona sem mar e sem distância,
solidão-sumidouro, barro-vivo,
barro em que reconstruo sangues e vozes.

Não quero interromper-me nem findar-me.
Desejo respirar-me no Teu sopro,
aparecer-me em Ti, continuado.


Jorge de Lima
Livro de Sonetos

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

CORDISBURGO


G. RAMOS



O receio de cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram comigo convivência forçada já não me apoquenta. Muitos desses antigos companheiros distanciaram-se, apagaram-se. Outros permaneceram junto a mim, ou vão reaparecendo ao cabo de longa ausência, alteram-se, completam-se, avivam recordações meio confusas — e não vejo inconveniência em mostrá-los. Alguns reclamam a tarefa, consideram-na dever, oferecem-me dados, relembram figuras desaparecidas, espicaçam-me por todos os meios. Acho que estão certos: a exigência se fixa, domina-me. Há entre eles homens de várias classes, das profissões mais diversas, muito altas e muito baixas, apertados nelas como em estojos. Procurei observá-los onde se acham, nessas bainhas em que a sociedade os prendeu. A limitação impediu embaraços e atritos, levou-me a compreendê-los, senti-los, estimá-los, não arriscar julgamentos precipitados. E quando isto não foi possível, às vezes me acusei. Ser-me-ia desagradável ofender alguém com esta exumação. Não ofenderei, suponho. E, refletindo, digo a mim mesmo que, se isto acontecer, não experimentarei o desagrado. Estou a  descer para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão — e provavelmente isto será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias. Realmente há entre os meus companheiros sujeitos de mérito, capazes de fazer sobre os sucessos a que vou referir-me obras valiosas. Mas são especialistas, eruditos, inteligências confinadas à escrupulosa análise do pormenor, olhos afeitos a investigações em profundidade. Há também narradores, e um já nos deu há tempo excelente reportagem, dessas em que é preciso dizer tudo com rapidez. Em relação a eles, acho-me por acaso em situação vantajosa. Tendo exercido vários ofícios, esqueci todos, e assim posso mover-me sem nenhum constrangimento. Não me agarram métodos, nada me força a exames vagarosos. Por outro lado, não me obrigo a reduzir um panorama, sujeitá-lo a dimensões regulares, atender ao paginador e ao horário do passageiro do bonde. Posso andar para a direita e para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos. Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se os  enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume –Viagens
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1953.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

OUTROS TEMPOS...


GR



José Rebelo Adro Antunes, vulgo Zé Bebelo: O Símbolo de um Novo Ciclo; A Urbanização / Industrialização

Como já foi visto anteriormente, o fenômeno do cangaço ocorre em um determinado espaço geográfico, num tempo histórico preciso. No Brasil, existiu no interior do país, no Nordeste semi-árido, num momento em que a sociedade brasileira vai modificando sua estrutura pré-industrial no sentido de uma maior mecanização, de um capitalismo agrário.O fenômeno cangaço, na forma em que foi estudado, existiu entre 1840 e 1940, não antes e não depois. O último grande Chefe foi Corisco, o Diabo Louro, morto em 1940.

Os processos de modificação econômica são lentos, e talvez ainda não estejam consolidados hoje no interior do sertão nordestino, mas foram suficientemente fortes para mudar as relações pessoais do sertanejo com seu senhor, trazendo uma relação do tipo patrão/empregado assalariado.

A conseqüência dessa situação, acrescido o fenômeno paralelo da urbanização, é que se criou um canal drenador para a mão-de-obra excedente do nordestino. Ela volta a migrar, agora para a grande cidade, tentando conseguir emprego nas indústrias e um melhor nível de vida, com acesso à escola para seus filhos e uma vida mais digna de um modo geral;

“a penetração do capitalismo no campo, com desenvolvimento acentuado no Sul, o surto de industrialização que atrai imigrantes, a urbanização intensiva é que foram arrancar o semi-servo da estagnação do meio rural e dar-lhe outros caminhos que não os do bando do cangaço, ou os místicos itinerários dos beatos e conselheiros” (Facó, p. 43).


A narração de Riobaldo dá-se provavelmente, como o intuiu bem José Hildebrando Dacanal, após o início do processo de industrialização que se fixou no país a partir de 1930, grosso modo. No momento histórico da narração, não há mais jagunços e as pessoas estão modificadas, diferentes. Esse “programa” é iniciado com Zé Bebelo; é ele quem lança a semente que germinará anos depois, tendo já crescido no momento da narração.

Antes, porém — e o republicanismo no Brasil será também um movimento progressista —  o dinheiro começa a circular de fato nos grandes centros, mudando o eixo do poder da zona rural para a zona urbana. O capital do comércio negreiro havia sido investido nas cidades e estas começaram a —Concomitantemente, as “descobertas” do século começam a chegar ao país, que se moderniza:

“ampliou-se a rede bancária, construíram-se as primeiras estradas de ferro, inaugurou-se o telégrafo, introduziu-se a navegação a vapor nos nossos rios e a iluminação a gás substituiu, nos centros urbanos de maior importância, a velha iluminação a azeite” (Luz).

Por outro lado, a intelligentzia nacional, formada por jovens bacharéis do meio rural — os pais de mais posse mandam –nos para as grandes capitais — mandam seus filhos para a Europa, os de menos posses mandam-nos para as grandes capitais — tende a não voltar para o campo, fixando-se nas cidades, e trazendo para elas a efervescência das novas idéias de civilização e progresso:

“em conseqüência, começou a surgir nas cidades e vilas uma nova função — a de distribuidor desses gêneros (rurais). Modificaram-se assim as relações entre cidade e campo: não mais de simples dependência, mas de interdependência. Com estas modificações os centros urbanos passaram a adquirir maior importância, e as decisões políticas, principalmente nas grandes cidade, já não se enfeixam exclusivamente nas mãos do senhor rural. Outros interesses, particularmente os financeiros e posteriormente os industriais começam a pesar na balança” (Luz, 3).

É a partir das cidades, então, que já no fim do Segundo Império têm grande independência com relação ao campo, que os jovens bacharéis e políticos começam a querer modificá-lo, começando por subordiná-lo à cidade/capital, através da idéia do federalismo. Um corolário dessa situação é que a cidade passa a ter olhos de superior para com o campo, reacionário e atrasado. Os republicanos tinham um programa altamente “civilizador”, embora não pretendessem mudar as estruturas sócio-econômicas da zona rural, de onde são egressos, e que representam na Câmara e no Senado.

A República, quando de fato instaurada, embora efetivando o programa de federalismo, não tocará nas estruturas sócio-econômicas mais profundas do país. Os grandes senhores rurais continuam a ditar, embora já não com tanto fôlego — outras classes entraram em cena, como os militares e a classe média urbana — as regras do jogo.

São mudanças na conjuntura internacional que, a partir da Primeira Guerra Mundial, farão com que se modifiquem realmente essas regras do jogo. O país sofre o primeiro choque nas suas relações de importação e exportação. Os preços de nossos produtos (café, açúcar) caem, e tem-se dificuldade em importar os insumos básicos necessários ao desenvolvimento do país.

A industrialização e a urbanização já são um processo irreversível na década de vinte, e não necessitam mais que uma Grande Recessão para instalarem-se definitivamente na estrutura sócio-econômica do país... O que se assiste, então, é à perda de poder efetivo por parte das oligarquias rurais tradicionais, e à penetração do capitalismo no campo.

É esse processo que está simbolizado no antagonismo entre os dois chefes Joca Ramiro e Zé Bebelo. No entanto, este “perde a parada”, e é com Riobaldo que veremos sua consolidação.


Tania Rebelo Costa Serra
Riobaldo Rosa.
A Vereda Junguiana do Grande Sertão.
Thesaurus. Brasília. l990.