DOM
RIOBALDO DO URUCUIA, CAVALEIRO DOS CAMPOS GERAIS
“...Este havia dar cima aas maravilhosas
aventuras do regno de Logres.”
(Demanda do Santo Graal II, 18)
Se
há necessidade de classificação literária para Grande Sertão: Veredas, não há dúvida que se trata de uma epopéia.
Preferimos não gastar palavras com argumentação que nos levaria longe, embora
com margem dadivosa para demonstrações comparativistas. Algumas anotações de
natureza didática, somente para não afirmar sob palavra, podem justificar desde
logo a classificação. Deixando de lado as qualidades orgânicas de unidade de
ação e de interesse, comuns a qualquer obra literária, Riobaldo é um verdadeiro
protagonista, até no sentido etimológico do termo, sempre o primeiro nos
combates, como homem que atira bem. “Senhor atira bem, porque atira com o
espírito. Sempre o espírito é que acerta...” como dizia Alemão Vupes.
A
intercalação de episódios convergentes com a ação principal, mas de função
adjuntiva, podendo adquirir independência formal, aparece freqüentemente; desde
logo, podem ser enumerados o do Aleixo, com os três filhos cegos, o do Joé
Cazuzo, com visões sobrenaturais em pleno combate, o de Andalécio e Antônio Dó
atacando o porto de São Francisco.
Aliás,
por esta característica, os próprios contos e novelas de Guimarães Rosa,
entremeados de episódios, são épicos em grande número. O do touro Calundu, o do
negrinho cujo canto fez estourar a boiada, em “O Burrinho Pedrês”; o do sapo e
do cágado na “Volta do Marido Pródigo”; do Bento Porfírio, em “Minha Gente”; o
do “Quem Será”, em “São Marcos”, todos em Sagarana,
e ficando apenas numa parte do livro, o episódio de Maria Mutema, este no Grande Sertão: Veredas, é um verdadeiro
conto incrustado no corpo do romance, como processo de reter o desenvolvimento
da ação, prolongando o interesse da narrativa.
Voltemos
ao fio da classificação. O ponto nodal é o julgamento de Zé Bebelo, quando,
conseguido o equilíbrio das forças adversárias (jagunços contra governo)
deveria findar totalmente o interesse do enredo. Entretanto, a morte de Joca
Ramiro, herói secundário, desata novamente a ação que, daí por diante, se
desencadeia, em plano diferente até a morte de Diadorim, com a justificação do
sentido etimológico do nome do herói: Rio-Baldo.
Pelas
características que tentaremos pôr em evidência, o tema é, evidentemente, material
de filiação popular. Jean Superville, falando da epopéia erudita, diz que ela
“nasce completa do cérebro de um poeta, como Minerva, armada, do cérebro de
Júpiter”. Aparte o pedantismo da imagem e o risco de pensarem que ameaço fazer
de Guimarães Rosa um novo Tonante, quero aproveitar o símile, como ajutório do
que vou expor:
O
cangaceiro, como herói de poesia narrativa sertaneja, é assunto pacífico entre
folcloristas, e o paralelismo com as epopéias medievais e seu sucedâneo — o
romance de cavalaria, já tem sido apontado, inclusive, pelo autor deste ensaio.
Pois
bem, esse Riobaldo é uma estilização da imagem convencional que o povo
estabeleceu para seus heróis.
Que
não houve, apenas, paráfrase de uma lenda, é evidente. Mas o tipo cavalheiresco
de Riobaldo despertou, associativamente, no acervo de impressões de leitura do
autor, ressonâncias que acabaram por sintonizar até os componentes do romance,
onde se pode rastrear uma propensão arcaizante de efabulação, com reflexos no
próprio vocabulário.
Riobaldo
começa menino sem pai, tímido, mas com vários embriões de virtudes heróicas,
que se irão acentuando, até elevá-lo, meio inconscientemente, a chefe
indiscutido,embora não pressentido pelos que o cercam. ( Exceto por Diadorim,
que logo adivinha).
Cangaceiro
cortês, se não se repelem os vocábulos, Riobaldo não comete barbaridades, não
consegue cometê-las, apesar da tentação de fazê-lo, com o pobre sertanejo da
égua e da cachorrinha, ou com o leproso trepado na árvore (tal e qual aquela
moura, filha de leproso do “comance-velho” da Enfeitiçada — “homem que a mim se chegasse, malato se tornaria”).
Riobaldo não tolera a deslealdade e os desleais lhe são inimigos de morte, os
“judas”. Muito folcloricamente, procura o equilíbrio social e tem rasgos de
bandido romântico, favorecendo com esmola grande a mulher que dá à luz no
casebre miserável.
Como
nos “romances-velhos”, Diadorim propõe, e ele jura cumprir, voto de castidade,
porque “senvergonhice e airado avejo servem só para tirar da gente o poder da
coragem”. Era a “regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem”, o jagunço, mas o fora,
antes, de Nun’Álvares Pereira que já imitava nesse ponto o patrono Dom Galaaz.
Os
chefes sertanejos guardam traços medievais
“Medeiro
Vaz, retratal, barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda,
circunspecto, com todas as velhices, sem nem velho ser”, era “homem sobre o
sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o
projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele decidia
a confiança da obediência. Ossoso, com a nuca enorme, cabeçona meia baixa, ele
era dono do dia e da noite — que quase não dormia mais: sempre se levantava no
meio das estrelas, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas
boas botas de caitetu, tão antigas. Se ele em honrado Juízo achasse que estava
certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o
sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas”.
“Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor não mais não vê. Ele tinha
conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se
compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que
fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Tenente nos gerais —ele era.” Não é
Carlos Magno em gibão de couro?
Talvez
a figura de Rolando se ajuste em Joca Ramiro, montado em cavalo branco feito um
São Jorge. Vale a pena transcrever o trecho em que Riobaldo o apresenta: “E
Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco — cavalo que me olha de
todos os altos. Numa sela bordada de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As
rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de largos
ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor?
Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito.
Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. A gente tinha até medo de que,
com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse,
cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em
lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que
continuava.” E, em outro passo, evocando o chefe morto: “Joca Ramiro, tão
diverso e reinante que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já
estivesse constando de falecido.”
M.
Cavalcanti Proença
Trilhas
no Grande Sertão
Os
Cadernos de Cultura 114
Ministério
da Educação e Cultura.
Rio
de Janeiro. 1958.