segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

SETE LAGOAS


A BÍBLIA SAGRADA



Jacó, vendo que havia mantimentos à venda no Egito, disse a seus filhos: “Por que estais aí a olhar uns para os outros? Eu soube,” disse-lhes, “que há mantimentos para vender no Egito. Descei e comprai mantimento para nós, a fim de que vivamos e não morramos.” Os dez dos irmãos de José desceram, pois, ao Egito para comprar trigo. Quanto a Benjamim, o irmão de José, Jacó não o enviou com os outros: “Não convém”, disse para consigo, “que lhe suceda alguma desgraça.”

Foram, pois, os filhos de Israel comprar mantimento misturados com outros forasteiros, porque a fome assolava a terra de Canaã. José — ele tinha autoridade na terra— era quem vendia o mantimento a todo o povo da terra. Os irmãos de José chegaram e se prostraram diante dele,  com a face por terra. Logo que José viu seus irmãos ele os reconheceu, mas fingiu ser estrangeiro para eles e lhes falou duramente. Perguntou-lhes: “De onde vindes?” E eles responderam: “Da terra de Canaã, para comprar os víveres.”

Assim José reconheceu seus irmãos, mas eles não o reconheceram. José se lembrou dos sonhos que tivera  seu respeito e lhes disse: “Vós sois espiões! É para reconhecer os pontos fracos da terra que viestes. .” Eles protestaram: “Não, meu senhor! Teus servos vieram para comprar víveres. Somos todos filhos de um mesmo homem, somos sinceros, teus servos não são espiões.” Mas ele lhes disse: “Não! Foi para ver os pontos fracos da terra que viestes.” Eles responderam: “Teus servos eram doze irmãos, nós somos filhos de um mesmo homem, na terra de Canaã: o mais novo está agora com nosso pai ee há um que não mais existe.” José retomou: “É como eu vos disse:  vós sois espiões! Eis como sereis provados: pela vida do Faraó, não partireis daqui sem que primeiro venha o vosso irmão mais novo! Enviai um de vós para buscar vosso irmão; os demais ficam prisioneiros. Provareis vossas palavras e se verá se a verdade está convosco ou não. Se não, pela vida do Faraó, sois espiões.”  E pôs a todos na prisão por três dias.

No terceiro dia, José lhes disse: “Eis o que fareis para ter salva a vida, pois eu temo a Deus: se sois sinceros, que um de vossos irmãos fique detido na vossa prisão; quanto aos demais, parti levando o mantimento de que vossas famílias necessitam. Trazei-me vosso irmão mais novo: assim vossas serão verificadas e não morrereis.” — Assim fizeram eles. — Eles disseram uns aos outros: “Em verdade, expiamos o que fizemos a nosso irmão: vimos a aflição de sua alma, quando ele nos pedia graça, e não o ouvimos. Por isso nos veio esta aflição.” Ruben lhes respondeu: “Não vos disse para cometerdes falta contra o menino? Mas vós não me ouvistes e eis que se nos pede conta de seu sangue.” Eles não sabiam que José os compreendia, porque, entre José e eles estava o intérprete. Então se afastou deles e chorou. Depois voltou para eles e lhes falou; tomou dentre eles a Simeão e o algemou sob seus olhos.


Gn 42, 1-24

FEBEAPÁ




— Falar em “causo” a respeito de G. R., na suposição de que o autor seja um contador de “causos” (que o Altíssimo me perdoe por usar este palavrão).

— Usar a palavra “causo” em qualquer texto sobre G.R., o que embute um equívoco gigantesco sobre a natureza da linguagem do A.  

— Achar que a palavra (?) “causo” é de uso comum em Minas Gerais, fora da boca dos que querem parecer que falam “mineiro”.

sábado, 29 de dezembro de 2012

VITÓRIA / VILA VELHA ES


MINHA TERRA TEM PALMEIRAS



A indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África parece ter sido sempre a mesma em Portugal como em outros trechos da Península. Espéie de bicontinentalidade que correspondesse em população assim vaga e incerta à bissexualidade no indivíduo. E gente mais flutuante que a portuguesa, dificilmente se imagina; o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo o que é seu, dando-lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade, às vezes perturbada por dolorosas hesitações, e ao caráter uma especial riqueza de aptidões , ainda que não raro incoerentes e difíceis de se conciliarem para a expressão útil ou para a iniciativa prática.

Ferraz de Macedo, a quem a sensibilidade patriótica de seus conterrâneos não perdoa o  de algumas conclusões justas, entre muitas de um grosso exagero, procurando definir o tipo normal português, deu logo com a dificuldade fundamental : a falta de um tipo dinâmico determinado. O que encontrou foram hábitos, aspirações, interesses, índoles, vícios, virtudes variadíssimas e com origens diversas —  étnicas, dizia ele; culturais, talvez dissesse mais cientificamente.

Entre outros, verificou Ferraz de Macedo no português os seguintes característicos desencontrados: a “genosia violenta” e o “gosto pelas anedotas de fundo erótico”, o “brio, a franqueza, a lealdade”; a pouca iniciativa individual, o “patriotismo vibrante”; a “imprevidência”, “a inteligência”; “o fatalismo”, “a primorosa aptidão para imitar”.

Mas o luxo de antagonismos no caráter português, surpreendeu-o magnificamente Eça de Queirós. O seu Gonçalo, d’A Ilustre Casa de Ramires, é mais que a síntese do fidalgo — é a síntese do português de não importa que classe ou condição. Que todo ele é e tem sido desde Ceuta, fs Índia, da descoberta e da colonização do Brasil como o Gonçalo Ramires: !cheio de fogachos e entusiasmos que acabam logo em fumo”, mas persistente e duro “quando se fila à sua idéia”; de “uma imaginação que o leva a exagerar até a mentira” e ao mesmo tempo de um “espírito prático sempre atento à realidade útil”;  de uma “vaidade, de “uns escrúpulos de honra”, de “um gosto de se arrebicar, de luzir” que vão quase ao ridículo, mas também de uma grande “simplicidade”; melancólico ao mesmo tempo que “palrador, sociável”, generoso, desleixado, trapalhão nos negócios; vivo e fácil em “compreender as coisas”: sempre à espera de “algum milagre, do velho Ourique que sanará todas as dificuldades”; desconfiado de si mesmo, acovardado, encolhido até que um dia se decide e aparece um herói.” Extremos desencontrados de introversão e extroversão ou alternativas de sintonia e esquizoidia, como se diria em moderna linguagem científica.

Considerando no seu todo, o caráter português dá-nos principalmente a idéia de “vago impreciso”, pensa o crítico e historiador inglês Aubrey Bell; e essa imprecisão é que permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes impossíveis de se ajustarem no duro e anguloso castelhano, de um perfil mais definidamente gótico e europeu. O caráter português —  comparação do mesmo Bell — é como um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água: daí passar do  energia na vida particular e a revoluções na vida pública”; da “docilidade “ a “ímpetos de arrogância e crueldade”; da “indiferença” a “fugitivos entusiasmos”, “amor ao progresso”, “dinamismo”... É um caráter todo de arrojos súbitos que entre um ímpeto e outro se compraz em certa indolência voluptuosa muito oriental, na saudade, no fado, no lausperene. “Místicos e poéticos” —  são ainda os portugueses segundo Bell (o inglês que depois de Beckford melhor tem sentido e compreendido a gente e a vida de Portugal), “com intervalos de intenso utilitarismo [...] caindo dos sonhos vão numa verdadeira volúpia de proveito imediato; das alturas da alegria na tristeza, no desespero, no suicídio; da vaidade no pessimismo [...] alternando a indolência com o amor da aventura e do esporte”.


Gilberto Freyre
Casa Grande & Senzala
em Intérpretes do Brasil, vol II
Coordenação, seleção de livros e prefácio
de Silviano Santiago
Nova Aguilar. Rio de Janeiro. 2002.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

CAPAS


DE DIANTE PRA TRÁS



Como estavam indo abrir aquele quarto, trazendo do corredor a mulher do Hermógenes. Ela visse. — A senhora chegue na janela, dona, espia para a rua... — o que João Concliz falou. Aquela Mulher não era malina. — A senhora conheça, dona, um homem demõiado, que foi: mas que já começou a feder, retalhado na virtude do ferro...” Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse que não, sacudindo só de leve a cabeça, como respeito de seriedade. — Eu tinha ódio dele... — ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda não estava bem de mim, da dor que me nublou, tive de sentar no banco da parede. Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de todos, eu em malmolência. — Tomaram as roupas da mulher nua? Era a Mulher , que falava . Ah, e a Mulher rogava: — Que trouxessem o corpo daquele rapaz moça, vistoso, o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e ordenando: —“Traz Diadorim!”— conforme era. — “Gente, vamos trazer; Esse é  Reinaldo...” — o que o Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. — Ai, Jesus! — foi o que eu ouvi, dessas vozes deles.

Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam  meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim — será que amereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem — como que garças voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...

Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! — para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...

Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...

Diadorim — nu de tudo. E ela disse:

— “A Deus dada. Pobrezinha...”

E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor — e mercê peço: — mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer — mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável, abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:

— “Meu amor!...”

Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.

A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou — ah —  a pedra-de-ametista, tanto trazida... O Quipes veio, com as velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. Como tinham ido abrir a cova, cristãmente. Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: — “enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços, decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.

Ela tinha amor em mim.

E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.

Aqui a estória se acabou.

Aqui, a estória acabada.

Aqui a estória acaba.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª edição. 1956.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

PETRÓPOLIS


MACHADO



Por via das coisas e das pessoas, dissociadas no espaço e no tempo em partículas plurais, na vontade de viver de cada um, pulsa uma força universal, captada num salto metafísico, por obra do sentimento. Para o engano da mascarada do mundo, a criatura supõe perseguir fins, conscientemente autônomos. No fundo, os fins são apenas instrumentos de sua substância que tudo domina, retalhos da vontade que arde na garra do tigre ou na lascívia do homem. A lógica, a ciência, são armadilhas que desviam, sem vencer, da verdade que está em tudo e em todos. Essa metafísica poderia concluir na harmonia do contingente com a ordem superior, na paz com a vida ou na reconciliação com o universo. No dualismo aparente, que culmina no monismo essencial, entre um componente trágico, no momento em que a substância se expressa na vontade, que abriga no seio a cisão, a luta, o anelo insaciável. “Com isso introduziu-se no ponto radical unitário da vida — cuja unidade, só pelo fato de ser unidade, concederia em outro caso à existência e a seu reflexo espiritual a tranqüilidade suprema e a quietude —, a luta pela existência e o fugir dela, a ânsia perpétua sem fim nem objeto, a cisão irreconciliável entre todo presente  e o que nós propriamente queremos. A forma com que todo monismo confere quietude, firmeza e paz  à sua concepção do mundo transforma-se aqui, em razão de seu conteúdo, no seu contrário, na ânsia e inquietude perenes e na contradição interior”. Daí porque a natureza, tradução machadiana, da vontade de Schopenhauer, é mãe e inimiga. Como mãe ela atrai e seduz, convida e arrasta; como inimiga, por influxo da razão, atemoriza o Brás Cubas moribundo e o Bentinho enamorado. A natureza, na ênfase do romancista, como a doutrina do filósofo alemão, se manifesta no fenômeno e na realização da vontade de viver. Mas a natureza vela pelo indivíduo enquanto ele realiza sua missão, que é perpetuar a espécie, só esta eterna, superior ao espaço e ao tempo. A morte — tema freqüente de Machado de Assis, que vê na imortalidade apenas feitiçaria e a perpetuação do nome (lembre-se o emplastro de Brás Cubas) — não passa de um acidente, que só a razão não entende. Recusar-se a ela seria como se o sol se pusesse a bradar, diante da tarde: vou perder-me na noite eterna. Ao cessar a vida orgânica, o sopro que provoca a respiração e o sangue que circula — a força inspiradora continua a arder, “pois a roca, ao parar, não denuncia a morte da fiandeira. Quando um pêndulo, encontrando a força de gravidade, se imobiliza, perdendo a aparência da vida individual, ninguém haveria de crer que a força de gravidade desapareceu senão que todos a compreenderão na contínua atividade dos fenômenos.” “Se nossa mãe comum — prossegue Schopenhauer — entrega seus filhos, indefesos, aos mil perigos que os cercam, é porque sabe perfeitamente que eles volverão ao seu seio, onde se encontram ao abrigo de todos os riscos, sendo a queda somente um incidente sem importância.” Assim é para o homem e para o animal, para a árvore e para a pedra, matéria que alimenta a mó da vida, impiedosamente ativa na sua permanência. Todos os elementos — do homem ao pó — são irmãos, mas irmãos que se digladiam, combatem, ocupam um lugar que, eterno, tem ocupantes sucessivos, conquistado na luta.


Raymundo Faoro
Machado de Assis:
A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro.
3ª edição. 1988.

CONGONHAS


OS NOVOS INCONFIDENTES



Maria Dilma de Baére
Maria do Carmo Araújo de Barros Lima
Maria Helena Trench Villas Boas
Maria Heloísa Villas Boas
Maria José de Oliveira
Maria Laura Mouzinho Leite Lopes
Maria Luiza de Almeida
Maria Nilde Mascellani
Maria Thereza Gomes de Oliveira
Maria Yedda Leite Linhares
Marina São Paulo de Vasconcellos
Marinho  Abrahão da Gama
Mário Alves Dias
Mário Antônio Barata
Mário Batista da Silva
Mário Coelho Dias
Mário Coelho Filho
Mário da Graça Roiter
Mário de Almeida
Mário Gonçalves Neves
Mário Guido
Mário Guilhermelli Scangarelli
Mário Ivo Beheregaray Fittipaldi
Mário Maia
Mário Piva
Mário Ribeiro da Silveira
Mário Schenberg
Mário Silveira
Mariza Coutinho
Martiniano Pereira da Silva
Massao Goto
Maurício Vieira Portugal
Maurílio Cândido Ferreira
Maurílio Filgueira Ferreira Lima
Mauro Pugliese Branco Maximiano e Silva
Mayte Ferreira da Silva
Michel Fernand Etienne Gueriot
Michel Salim Saad
Miguel Antunes Carneiro
Miguel Costa Júnior
Miguel Dumas
Miguel Florêncio da Hora
Miguel Leuzi
Miguel Marques Evangelista
Miguel Pan

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

RAPOSOS


OS INCONFIDENTES



CARTA DO PADRE JOSÉ S. O. ROLIM: TEJUCO, 20-04-1789

Senhor Domingos de Abreu Vieira

Meu prezado amigo do coração. Recebi a última de Vossa Mercê de dois de abril, em que me certifica ter falado ao nosso Mecenas segunda e terceira vez; ele, eficaz e certo no que nos prometeu, assim me devo persuadir como homem de bem; e fico esperando a resolução da parte que levou o meu próprio, para de todo viver em paz, para o nosso amigo Brandão. Eu tenho observado tanto à risca, que ainda té o dia de hoje não saí à rua a  pagar visitas; nem o pretendo fazer sem a resolução que vier, pois não é do meu gênio, nem me está bem aparecer e tornar a esconder-me; eu, confiado na promessa que a Vossa Mercê lhe asseveraram, vivo certificado que tal me não acontecerá; e espero que de Vossa Mercê, pelas suas diligências, me venha o meu sossego.

Este é o condutor do ouro; leva um caixão com doce de mangabas secas que me fará mercê oferecê-lo ao Senhor Gonzaga em meu nome. Amanhã, terça-feira, que se contam 21, saem daqui os dois negros com quatro bestas para a condução de Vossa Mercê; e os deixará estar inté que Vossa Mercê venha; e tenha satisfação para a sua jornada muito à sua vontade; e quando cá chegar, reformará de outras que estarão descansadas à sua espera. Faça-me recomendado a nosso bom amigo Afonso Dias e todos os mais amigos que Vossa Mercê bem os conhece: ao senhor Bernardo, e ao Bento Pereira, e todos os da sua família. Sirva-se da minha vontade que pronta fica para o que for de lhe dar gosto. Deus guarde a Vossa Mercê por muitos anos. Tejuco, 20 de abril de 1789.

De Vossa Mercê

Amigo de coração e obrigadíssimo

José da Silva

CABO FRIO


segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

EMANUEL E FEDERICO



Por que os trouxera? Talvez na ocasião tivesse imaginado que a Samarra ia ser seu esteio de pouso, termo de destino. E ele mesmo, nas entradas, se louvou de ter conseguido reunir para si aquela família de tardezinha. Estivesse, naquela hora, denunciando cabeceira de velhice? Não pensava. Nem agora chegava a mudar de parecer. do que tinha feito não se arrependia. Essas coisas ocorrem nuns escuros, é custoso se saber se a gente deve se aprovar ou confessar um arrependimento: nos caroços daquele angu, tudo tão misturado, o ruim e o bom. Mas ele não punha em pé o pesar. Estavam de bem, só que , em qualquer novidade, nesta vida, se carece de esperar o costume, para o homem e para o boi. Manuelzão era o das forças, não se queixava. Os meninos, bem-criadinhos, bonitos, uma cisma achar que dele não gostavam, pois que sempre estava no estatuto de ser o avô. A mal que não sabia os gestos, nem tinha habituação para a pequenez deles, o rebuliço; mas adiava vagos intentos: aqueles netinhos ainda iam crescer, dar-lhe distintas alegrias. Já o Adelço, esse, se encobria de não se conhecer sua propensão, criatura de guardadas palavras e olhares baixos. Mas não enganava a Manuelzão: era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando para ser ruim. Só punha toda estima em sua mulher e nos filhinhos, das outras pessoas tinha uma raiva surdada. Sempre aquela miúda dureza, sem teta de piedade nenhuma. Por ora, obedecia a Manuelzão — de que outro jeito ia poder proceder?  as obedecia soturno. Um dia ele chegasse a mandar, e ai do mundo. Tinha a maldade dum cão mau? Manuelzão se aborrecia, por fora do assunto. Não queria detestar o filho. Seria, porém, aquele, um saído de seu sangue? Se assustava quase, de ter gerado e estar apurando um sujeito assim, desamigo de todos. Sua culpa. Se então, mais valesse  o rejeitar outra vez e enxotar para os passados — feito a gente está pescando e dá na peneira uma serepente: um cospe um nojo e desiste logo aquilo no movimento das águas, ligeiro, no rio, de donde veio! A vida cobra tudo. Mas a mulher do Adelço, Leonísia, era boa, uma sinhá de exata, só senhora. Aquela tinha sial de um sabido anjo-da-guarda — pelo convívio que ela encorajava, gerência de companhia. Ela e seu irmão dela, de uns dezoito anos, vindo também, o Promitivo. Só que esse Promitivo era declarado em vagabundo. A ser, os desiguais: que o Adelço era mouro trabalhador, de aferro; era, isso. E, Leonísia, Manuelzão mesmo respeitava. Ela ficara sendo a dona-da-casa. Da Casa — de verdade, que ali formava seu conchego firme sertanejo.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile. 1º volume. José Olympio.
Rio de Janeiro, RJ. 1ª edição. 1956.

domingo, 23 de dezembro de 2012

ENTRE RIOS DE MINAS


O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM



Então disse Jesus aos seus discípulos: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, a perderá, mas o que perder sua vida por causa de mim, a encontrará. De fato, que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro  mas arruinar sua vida? Ou que poderá o homem dar em troca de sua vida?

Pois o Filho do Homem há de vir na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com o seu comportamento. Em verdade vos digo que alguns dos que aqui estão não provarão a morte até que vejam o Filho do Homem vindo em seu Reino.”


Mt 16, 24-28

sábado, 22 de dezembro de 2012

SETE LAGOAS


A BÍBLIA SAGRADA


Antes que viesse o ano da fome nasceram a José dois filhos que lhe deu Asenet, filha de Putifar, sacerdote de On. José deu ao mais velho o nome de Manassés, “pois”, disse ele, “Deus me fez esquecer meus trabalhos e toda a família de meu pai.” Quanto ao segundo ele o chamou de Efraim, “porque,” disse ele, “Deus me tornou fecundo na terra de minha infelicidade.”

Chegaram ao fim os sete anos de abundância que houve na terra do Egito e começaram a vir os sete anos de fome, como predissera José. Havia fome em todas as terras, mas havia pão em todas as regiões do Egito. Depois, toda a terra do Egito sofreu fome e o povo, com grandes gritos, pediu pão ao Faraó, mas o Faraó disse a todos os egípcios: “Ide a José e fazei o que ele vos disser.” A fome assolava toda a terra. — Então José abriu todos os armazéns de trigo e vendeu mantimento aos egípcios. Agravou-se ainda mais a fome na terra do Egito. De toda a terra se veio ao Egito para comprar mantimento com José, pois a fome se agravou por toda a terra.


Gn 41, 50-57

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

VITÓRIA / VILA VELHA


MINHA TERRA TEM PALMEIRAS



CARACTERÍSTICAS GERAIS DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL: FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE AGRÁRIA, ESCRAVOCRATA E HÍBRIDA

Quando em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical. Mudado em São Vicente e em Pernambuco o rumo da colonização portuguesa do fácil, mercantil, para o agrícola; organizada a sociedade sobre base mais sólida e em condições mais estáveis que na Índia ou nas feitorias africanas, no Brasil é que se realizaria a prova definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica e social do invasor.

Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio — e mais tarde de negro — na composição. Sociedade que se desenvolveria  defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia  social e política. Menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular. Mas tudo isso subordinado ao espírito político e de realismo econômico e jurídico que aqui, como em Portugal, foi desde o primeiro século elemento decisivo de formação nacional; sendo que entre nós através das grandes famílias proprietárias e autônomas: senhores de engenho com altar e capelão dentro de casa e índios de arco e flecha ou negros armados de arcabuzes às suas ordens; donos de terras  e de escravos que dos senados de Câmara falaram sempre grosso aos representantes d’el-Rei e pela voz liberal dos filhos padres ou doutores clamaram contra toda espécie de abusos da Metrópole e da própria Madre Igreja. Bem diversos dos criollos ricos e dos bacharéis letrados da América Espanhola — por longo tempo inermes à sombra dominadora das catedrais e dos palácios dos vice-reis, ou constituídos em cabildos que em geral só faziam servir de mangação aos reinóis todo-poderosos.

A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem africana fervendo sob a européia  e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica , à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar; governando antes a África.

Corrigindo até certo ponto tão grande influência do clima amolecedor, atuaram sobre o caráter português, entesando-o, as condições sempre tensas e vibráteis de contato humano entre a Europa e a África; o constante estado de guerra (que entretanto não excluiu nunca a miscigenação nem a atração sexual entre as duas raças, muito menos o intercurso entre as duas culturas; a atividade guerreira, que se compensava do intenso esforço militar relaxando-se, após a vitória, sobre o trabalho agrícola e industrial dos cativos de guerra, sobre a escravidão ou a semi-escravidão dos vencidos. Hegemonias e subserviências essas que não se perpetuavam; revezavam-se  tal como no incidente dos sinos de Santiago de Compostela. Os quais teriam sido mandados levar pelos mouros à mesquita de Córdoba às costas dos cristãos e por estes, séculos mais tarde, mandados reconduzir à Galiza, às costas dos mouros.

Quanto ao fundo considerado autóctone de população tão movediça, uma persistente massa de dólicos morenos, cuja cor a África árabe e mesmo negra, alagando de gente sua largos trechos da Península, mais de uma vez veio avivar de pardo ou de preto. Era como se os sentisse intimamente seus por afinidades remotas apenas empalidecidas; e não os quisesse desvanecidos sob as camadas sobrepostas de nórdicos nem de celtas, germanos, romanos, normandos — o anglo-escandinavo, o H. Europaeus  L., o feudalismo, o Cristianismo, o Direito Romano, a monogamia. Que tudo isso sofreu restrição ou refração num Portugal influenciado pela África, condicionado pelo clima africano, solapado pela mística pela mística sensual do Islamismo.

“Em vão se procuraria um tipo físico unificado”, notava há anos em Portugal o conde Hermann de Keyserling. O que ele observou foram elementos os mais diversos e mais opostos, “figuras com ar escandinavo e negróides”, vivendo no que lhe pareceu “união profunda”. “A raça não tem aqui papel decisivo”, concluiu o arguto observador. E já da sociedade moçárabe escrevera Alexandre Herculano: “População indecisa no meio dos dois bandos contendores [nazarenos e maometanos], meia cristã, meia sarracena e que em ambos contava parentes, amigos, simpatias de crenças ou de costumes.”

Esse retrato do Portugal histórico, traçado por Herculano, talvez possa estender-se o pré e pró-histórico; o qual nos vai sendo revelado pela Arqueologia e pela Antropologia tão dúbio e indeciso quanto o histórico. Antes dos árabes e berberes: capsienses, libifenícios, elementos africanos mais remotos. O H. Taganus. Ondas semitas e negras, ou negróides, batendo-se com as do Norte.


Gilberto Freyre
Casa-Grande & Senzala
Formação da Família Brasileira
Sob o Regime da Economia Patriarcal
Intérpretes do Brasil. Coorden. seleção e prefácio
de Silviano Santiago
Nova Aguilar. Rio de Janeiro, RJ. 2002.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

DE DIANTE PRA TRÁS


Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras — aí ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente. Ao que eu ia levar comigo era só o menino, o cego, e os dos catrumanos vivos sobrados: esses eu carecia de repor de volta, na terra deles, nos lugares. E, a Mulher, também dela me despedi, há-de ver que esturdiamente, sem continuação de continuação. Ainda encomendei a João Curiol, que era um baiano bom, na palavra e no caráter, que providenciasse o retorno daquela, para onde quisesse ir outra vez.

Desapoderei.

Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar só: às Veredas Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha tido, repor Diadorim em vida? O que eu pensei, o pobre de mim. Eu queria me abraçar com uma serrania?Mas, nessa parte, de muito mal me lembro, pelo revés em minha saúde. Ao qie eu ia. de repente, me vinha um assombramento de espírito, muita vez tonteei, de ter de me segurar, de cair; e, depois, durante muitos espaços, eu restava esquecido de tudo, de quem eu era, de meu nome. Mas o Alaripe, Pacamã-de-Presas, o Quipes, o Triol, Jesualdo, o Acauã, João Concliz, e o Paspe, me cuidavam; esses tinham, por toda a lei, forçado de me acompanharem, vinham comigo; e o Fafafa, ,aos João Nonato e Compadre Ciril, que vieram depois. Amigos meus. Aí eu vinha.

Chapadão. Morreu o mar, que foi.

Eu vim. Pelejei. Ao deusdar. Como é que eu sabia destornar contra a minha tristeza? O dito, vim, consoante traçado. Num lugar, o Tuim, me alembro: eu tive de mudar para outro cavalo. E um sitiante, no Lambe-Mel, explicou — que o trecho, dos marimbus, aonde íamos, se chamava mais certo não era Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas... Coisa que o compadre meu Quelemém mais tarde me confiou. Daí, mais para adiante, dei para tremer com uma febre. Terçã. Mas o sentido do tempo o senhor entende, resenha duma viagem. Cantar que o senhor fosse. De ai, de mim. Namorei uma palmeira, na quadra do entardecer...

Na morna, baqueei, não podendo mais. Me levaram, por primeiro, de revexo. Depois me botaram para dentro duma casa muito pobre. Desembestei doente. Por último, como perdi meu conhecimento, estavam me deitando num catrei.

Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas sezão forte especial — nas altíssimas! Que a febre que eu tinha era tamanha tanta, como nunca se viu  — o Alaripe depois me disse —; que no decorrer dos acessos eu tresvariava. Do que, no ouvir contado, recordei a estória dum fazendeiro, o mais maldoso, que o demônio por fim salteou, por suas ruindades: e que, endemoninhado, no quarto de sua casa, uivando lobum, suplicava alívio do calorão, e carecia mesmo que os escravos despejassem nele latas e baldes d’água, ao constantemente, até para evitar que, de tudo devorante tão quente, não viesse e desse de pegar fogo no cômodo, de incêndios... Doidice. Em dansa de demônios, que nem não existem. Pois, então, só a doença não bastasse? O tempo que fiquei, deslembrado, detido. O quanto foi? Mas, quando dei acordo de mim, sarando e conferindo o juízo, a luz sem sol, mire e veja, meu senhor, que eu não estava mais no asilo daquela casinha pobre, mas em outra, numa grande fazenda, para onde sem eu saber tinham me levado.

Eu estava na Barbaranha, no Pé-da-Pedra, hóspede de seo Josafá Ornelas. Tomei caldo-de-galinha, deitado em lençóis alvos, recostado. E já parava meio longe aquele pesar, que me quebrantava. Lembro de todos, do dia, da hora. A primeira coisa que eu queria ver, e que me deu prazer, foi a marca dos tempos, numa folhinha de parede. Sosseguei de meu ser. Era feito eu mee esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de pedras. as aquele seo Ornelas era homem de muita bondade, muita honra. Ele me tratou com categoria, fui príncipe naquela casa. Todos — a senhora dele, as filhas, as parentas — me cuidavam. Mas o que mormente me, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem. Fui indo melhor.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro, RJ.

1ª edição. 1956.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

SÃO PAULO


UM APRENDIZ DE FEITICEIRO



PEQUENO MADRIGAL: A ROSA

a rosa intacta,
suspensa no ar,
que fora jogaram,
com amor eu colhi

e em verde fundo
e azul profundo
(carinho e ternura)
com amor a guardei

hoje esta rosa,
que um dia colhi,
(tão verde, tão funda,
azul e profunda)
em meus olhos sorri:
tenho alegria de amar!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

RIO DE JANEIRO


OTELO E SANT'IAGO



ACEITO A TEORIA

Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há duvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos , vamos à primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.


Machado de Assis
Dom Casmurro

BALAIO DE GATOS


HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA


Sob qualquer ponto de vista em que a observássemos, a Amazônia tinha sido até então “uma grande vítima de suas próprias grandezas”; depois do darwinismo implacável de Euclides da Cunha e do realismo dramático de seu discípulo Alberto Rangel (que ele reconhecia e louvava) — superados, idealmente, um e outro, pela mitologia compensatória de Cobra Norato — Alfredo Ladislau retomava o ufanismo suspicaz e inquieto com que tradicionalmente “defendemos” a Amazônia e todas as nossas “riquezas naturais”. Ele foi visto desde logo como um discípulo de Euclides da Cunha, cuja influência, no caso, é de fato inegável. Quem o sagrava cavaleiro dessa falange era ninguém menos que Alberto Rangel, em carta a Fraga de Castro: “A alma brasileira encontra, depois de Euclides, nas mesmas cordas da Amazônia , o grande tangedor da infinita sabedoria (...)”. O Pe. Dubois, na Folha do Norte, não era menos entusiástico: Tem de Euclides da Cunha a pompa da linguagem, os vocábulos grandíloquos, a tecnologia sábia, o rebuscamento no frasear. Brilhante e variado escrínio de pedrarias.” Não ficava atrás o jornalista Carijó Cerejo, em O Brasil: “Comparável simultaneamente a Euclides da Cunha e Graça Aranha, possuindo de um o vigor da análise e a estilística soberba , e do outro, a suavidade e o enlevo panteísta.” A nota discordante vinha, por inesperado, da revista neo-simbolista Terra de Sol, já no segundo número, em fevereiro de 1924 (lembremos que o livro tinha sido originalmente publicado em 1923): “Herdou de Euclides a excessiva pujança da expressão e certo preciosismo de vocabulário que, espontâneos e característicos no épico de Os Sertões, se justificam menos em seus continuadores.”

Tais restrições, perfeitamente apropriadas em 1924, tornaram-se ainda mais oportunas em 1933, quando a terceira edição de Terra Imatura, esse livro mentalmente pré-modernista, coincidia com o aparecimento de Casa Grande & Senzala, livro por tantos aspectos antieuclidiano e, bem entendido e, bem entendido, representativo, embora a contragosto, da ideologia modernista em matéria de estudos brasileiros. Por singularidade, ele parecia mais próximo da Atlântida, não só pelo papel eminente  que reconheceu à “raça de azeviche” nas fontes da civilização brasileira, mas, ainda, na concepção do “tipo sintético” em que terminaria por se resolver a nossa equação racial.

Conforme o título desde logo sugere, Gilberto Freire tomou duas chaves simultâneas para a interpretação do Brasil, ou, mais especificamente, do que mais tarde denominaria a nossa “sociedade patriarcal”: de um lado, as formas arquiteturais como símbolo ou metáfora de status; por outro lado, o papel catalítico representado pela escravidão. O livro se fundava substancialmente na diferença entre raça e cultura, distinção de fato essencial e, àquela altura, praticamente desconhecida em nossa história social; além disso, Gilberto Freire introduzia conceitos extremamente elucidativos, como o de tempo social (paralelo ao tempo cronológico) e o de espaço social, em lugar do espaço geográfico.

Na linha de “deseroicização” da historiografia, postulada e praticada por Oliveira Viana, ele tomou a família como unidade básica na formação, desenvolvimento e transformações da sociedade, família —  e é uma das contribuições mais características do pensamento gilbertiano — estruturada pela forma patriarcal. Assim, a relação patriarcal da família propriamente dita se projeta, em termos perfeitamente idênticos, nas relações entre o senhor e o escravo —  o que significa que, no sistema brasileiro, o escravo, apesar das aparências ou das exterioridades, era mais do que uma simples propriedade: ele pertencia à família do senhor, sentia-se como tal e como tal era sentido. O escravo era um prolongamento da família, ao mesmo título que os protegidos e agregados, sem excluir o capelão; simbolizada no domínio rural, a família era uma “propriedade” como o escravo e as terras, estes últimos sendo, psicologicamente, a “família” do senhor.         

Os termos dessa equação se intercambiam de tal maneira que a sua inversão recíproca torna o processo ainda mais claro: o senhor da. família é o pai do escravo; a família é escrava do senhor, mas o escravo é a sua família. Claro, essa estrutura só é válida para aquele espaço social do Nordeste em que realmente alcançou pleno desenvolvimento; levantada desde logo contra a generalização que o autor a princípio lhe quis atribuir, essa objeção é procedente, não deve ser ignorada e foi, ao que parece, por ele mesmo tacitamente admitida com o correr dos anos


Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960).
Cultrix. Edusp. São Paulo, SP.
1ª edição. 1979.

sábado, 15 de dezembro de 2012

PANEM NOSTRUM



Depois vi o sangue coagular-se em letras
espalhadas nos muros e nas pedras;
e o céu baixar-se para fecundá-las
e fugir outra vez para esquecê-las.

Depois vi o homem pressuroso em lê-las,
transformá-las em signos e arabescos
em palavras, em urros, em apelos
estranhas oceanias e sonetos,

em hálitos de bocas cavilosas,
entrecortando sílabas amargas
engolidas no prato das desgraças,

e a gagueira ser tanta, tanto o fel
que a grande torre de marfim preciosa
era a torre danada de Babel.


Jorge de Lima
Livro de Sonetos

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

CORDISBURGO


G. RAMOS



No começo de 1936, funcionário na instrução pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas, com veladas ameaças, me procuravam o endereço. Desprezei as ameaças: ordinariamente o indivíduo que tenciona ofender outro, não o avisa. Mas os telefonemas continuaram. Mandei responder que me achava na repartição diariamente, das nove horas ao meio-dia, das duas às cinco da tarde. Não era o que pretendiam. Nada de requerimentos: queriam visitar-me em casa. Pedi que não me transmitissem mais essas tolices, com certeza picuinhas de algum inimigo débil, e esqueci-as; nem um minuto supus que tivessem cunho oficial. Algum tempo depois um amigo me procurou com a delicada tarefa de anunciar-me, gastando elogios e panos mornos, que a minha permanência na administração se tornara impossível. Não me surpreendi. Pelo meu cargo haviam passado em dois anos oito sujeitos. Eu conseguira agüentar-me ali mais de três anos, e isto era espantoso. Ocasionara descontentamentos, decerto cometera numerosos erros, não tivera a habilidade necessária de prestar serviços a figurões, havia suprimido nas escolas o hino de Alagoas, uma estupidez com solecismos, e isto se considerava impatriótico. O aviso que me traziam era, pois, razoável, e até devia confessar-me grato por me haverem conservado tanto tempo.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume – Viagens.
José Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª edição. 1953.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

OUTROS TEMPOS...


GR



Zé Bebelo, prisioneiro, submetido a julgamento, arenga como guerreiro medieval: “... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento, esta bizarria... Agradeço sem temor de medo nenhum, nem agências de adulação! Eu, José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô meu Francisco Vizeu Antunes — foi capitão-de-cavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pacheco Antunes e Maria Deolinda Rebelo; e nasci na bondosa vila mateira do Carmo da Confusão...”  (...) “Agradeço os que por mim bem falaram e puniram... Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido, valente, contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem-Bem, Sõ Candelário... e tantos outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que não estão...” E mais para o fim, usa o termo próprio, a expressão
medieval: “Mas, homem sou, de altas cortesias”.


M. Cavalcanti Proença
Trilhas no Grande Sertão
Os Cadernos de Cultura 114.
MEC. Departamento de Imprensa Nacional
Rio de Janeiro, RJ. 1958.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

PETRÓPOLIS


MACHADO



1. PANDORA —DO DEMONÍACO AO DIABÓLICO

Dentro da vida, sobre a morte, além das pessoas e do seu pobre destino, há uma força que comanda, que guia e que impera. Um adolescente, Bentinho, encarou-a, sentiu-lhe a face quente, enquanto um moribundo, Brás Cubas, recolheu-lhe, nas próprias entranhas, o hálito feito de gelo e de morte. Seus olhos são olhos de ressaca, o refluxo do mar que leva para o desconhecido, na aventura em que os seres se perdem no ser único, que uma onda devora e se renova em outra de sal e espuma. Contra sua inelutável sedução, o adolescente e o moribundo se agarram às areias, à precária carne que testemunha a presença do homem individualizado. “Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela força que arrasta para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelo ombro; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me , puxar-me e tragar-me (D.C. XXXII). O namorado resiste e se debate, não quer perder a identidade, ameaçado pelas vagas do eterno, que está em todas as coisas, e, entre as coisas, na sua mais fiel e inconsciente servidora, a mulher, irmã da natureza. Na ressaca, despida a retórica dos namorados, debaixo da palavra frívola, aparentemente frívola, garatujada para enganar sem embair, há atração que vem de dentro e de fora, do alto e da mesquinha condição humana. Sempre a misteriosa atração, recheada de terror e de fascínio, freqüenta a imaginação, desarticula a razão e liberta a fantasia. Ela apavora Bentinho, mas, vestida de loucura, tenta o equilíbrio mental dee Rubião. Agora, uma sombra, cultivada por Shakespeare, compõe pompas matrimoniais, coches, os soberbos coches de outrora, evoca marquesas e embaixadores, rondando a cabeça do modesto mestre-escola de Barbacena. “Que misterioso Próspero transformava assim uma ilha banal em mascarado sublime? “Vai, Ariel, traze aqui os teus companheiros, para que eu mostre a este jovem casal alguns feitiços da minha feitiçaria.” As palavras seriam as mesmas da comédia; a ilha é que era outra, e a ilha e a mascarada (Q.B. LXXXII). A ilha e a mascarada eram outras, como outro era Próspero, não mais o duque de Milão, mas um vulto imenso, que surge do fundo do abismo, decifrando o enigma da vida e devorando a criatura. Brás Cubas, só ele entre tantos que lhe perceberam os passos abafados, o semblante negro de cinzas e de fogo, viu-o de perto e com ele fez a viagem em redor do mundo e dos séculos, no espaço e no tempo, à borda da vida e da morte, acompanhado dos espectros do amor e da loucura. “Caiu do ar? destacou-se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.

“— Chamo-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua . ...
        
“Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.

“Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.

“— Não, respondi: nem quero entender-te: tu és absurda, tu, trazes esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que é só mãe e não inimiga; não fazes da vida um flagelo, nem como tu, trazes esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?

— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens.

— “Sim, o teu olhar fascina-me.

— “Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada” (M.P., VII).

Natureza, Pandora, com a forma de mulher, mãe e inimiga, irmã da morte e da loucura, feita de lascívia e egoísmo, ela cria e devora, ama e consome. Insaciável na sua fome, no mar “espreguiça-se toda em convulsões estranhas”:

“Pois esse criatura está com toda a obra:
Cresta-lhe o seio de flor e corrompe-lhe o peito;
E é nesse destruir que as forças dobra.
Ama de igual o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.
(P.C., Uma Criatura)


Raymundo Faoro
Machado de Assis:
A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro, RJ.
3ª edição. 1988.