sábado, 29 de dezembro de 2012

MINHA TERRA TEM PALMEIRAS



A indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África parece ter sido sempre a mesma em Portugal como em outros trechos da Península. Espéie de bicontinentalidade que correspondesse em população assim vaga e incerta à bissexualidade no indivíduo. E gente mais flutuante que a portuguesa, dificilmente se imagina; o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo o que é seu, dando-lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade, às vezes perturbada por dolorosas hesitações, e ao caráter uma especial riqueza de aptidões , ainda que não raro incoerentes e difíceis de se conciliarem para a expressão útil ou para a iniciativa prática.

Ferraz de Macedo, a quem a sensibilidade patriótica de seus conterrâneos não perdoa o  de algumas conclusões justas, entre muitas de um grosso exagero, procurando definir o tipo normal português, deu logo com a dificuldade fundamental : a falta de um tipo dinâmico determinado. O que encontrou foram hábitos, aspirações, interesses, índoles, vícios, virtudes variadíssimas e com origens diversas —  étnicas, dizia ele; culturais, talvez dissesse mais cientificamente.

Entre outros, verificou Ferraz de Macedo no português os seguintes característicos desencontrados: a “genosia violenta” e o “gosto pelas anedotas de fundo erótico”, o “brio, a franqueza, a lealdade”; a pouca iniciativa individual, o “patriotismo vibrante”; a “imprevidência”, “a inteligência”; “o fatalismo”, “a primorosa aptidão para imitar”.

Mas o luxo de antagonismos no caráter português, surpreendeu-o magnificamente Eça de Queirós. O seu Gonçalo, d’A Ilustre Casa de Ramires, é mais que a síntese do fidalgo — é a síntese do português de não importa que classe ou condição. Que todo ele é e tem sido desde Ceuta, fs Índia, da descoberta e da colonização do Brasil como o Gonçalo Ramires: !cheio de fogachos e entusiasmos que acabam logo em fumo”, mas persistente e duro “quando se fila à sua idéia”; de “uma imaginação que o leva a exagerar até a mentira” e ao mesmo tempo de um “espírito prático sempre atento à realidade útil”;  de uma “vaidade, de “uns escrúpulos de honra”, de “um gosto de se arrebicar, de luzir” que vão quase ao ridículo, mas também de uma grande “simplicidade”; melancólico ao mesmo tempo que “palrador, sociável”, generoso, desleixado, trapalhão nos negócios; vivo e fácil em “compreender as coisas”: sempre à espera de “algum milagre, do velho Ourique que sanará todas as dificuldades”; desconfiado de si mesmo, acovardado, encolhido até que um dia se decide e aparece um herói.” Extremos desencontrados de introversão e extroversão ou alternativas de sintonia e esquizoidia, como se diria em moderna linguagem científica.

Considerando no seu todo, o caráter português dá-nos principalmente a idéia de “vago impreciso”, pensa o crítico e historiador inglês Aubrey Bell; e essa imprecisão é que permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes impossíveis de se ajustarem no duro e anguloso castelhano, de um perfil mais definidamente gótico e europeu. O caráter português —  comparação do mesmo Bell — é como um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água: daí passar do  energia na vida particular e a revoluções na vida pública”; da “docilidade “ a “ímpetos de arrogância e crueldade”; da “indiferença” a “fugitivos entusiasmos”, “amor ao progresso”, “dinamismo”... É um caráter todo de arrojos súbitos que entre um ímpeto e outro se compraz em certa indolência voluptuosa muito oriental, na saudade, no fado, no lausperene. “Místicos e poéticos” —  são ainda os portugueses segundo Bell (o inglês que depois de Beckford melhor tem sentido e compreendido a gente e a vida de Portugal), “com intervalos de intenso utilitarismo [...] caindo dos sonhos vão numa verdadeira volúpia de proveito imediato; das alturas da alegria na tristeza, no desespero, no suicídio; da vaidade no pessimismo [...] alternando a indolência com o amor da aventura e do esporte”.


Gilberto Freyre
Casa Grande & Senzala
em Intérpretes do Brasil, vol II
Coordenação, seleção de livros e prefácio
de Silviano Santiago
Nova Aguilar. Rio de Janeiro. 2002.