A
indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África parece ter sido sempre a
mesma em Portugal como em outros trechos da Península. Espéie de
bicontinentalidade que correspondesse em população assim vaga e incerta à
bissexualidade no indivíduo. E gente mais flutuante que a portuguesa,
dificilmente se imagina; o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo
o que é seu, dando-lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade, às
vezes perturbada por dolorosas hesitações, e ao caráter uma especial riqueza de
aptidões , ainda que não raro incoerentes e difíceis de se conciliarem para a
expressão útil ou para a iniciativa prática.
Ferraz
de Macedo, a quem a sensibilidade patriótica de seus conterrâneos não perdoa
o de algumas conclusões justas, entre
muitas de um grosso exagero, procurando definir o tipo normal português, deu
logo com a dificuldade fundamental : a falta de um tipo dinâmico determinado. O
que encontrou foram hábitos, aspirações, interesses, índoles, vícios, virtudes
variadíssimas e com origens diversas —
étnicas, dizia ele; culturais, talvez dissesse mais cientificamente.
Entre
outros, verificou Ferraz de Macedo no português os seguintes característicos
desencontrados: a “genosia violenta” e o “gosto pelas anedotas de fundo
erótico”, o “brio, a franqueza, a lealdade”; a pouca iniciativa individual, o
“patriotismo vibrante”; a “imprevidência”, “a inteligência”; “o fatalismo”, “a
primorosa aptidão para imitar”.
Mas
o luxo de antagonismos no caráter português, surpreendeu-o magnificamente Eça
de Queirós. O seu Gonçalo, d’A Ilustre
Casa de Ramires, é mais que a síntese do fidalgo — é a síntese do português
de não importa que classe ou condição. Que todo ele é e tem sido desde Ceuta,
fs Índia, da descoberta e da colonização do Brasil como o Gonçalo Ramires: !cheio
de fogachos e entusiasmos que acabam logo em fumo”, mas persistente e duro
“quando se fila à sua idéia”; de “uma imaginação que o leva a exagerar até a
mentira” e ao mesmo tempo de um “espírito prático sempre atento à realidade
útil”; de uma “vaidade, de “uns
escrúpulos de honra”, de “um gosto de se arrebicar, de luzir” que vão quase ao
ridículo, mas também de uma grande “simplicidade”; melancólico ao mesmo tempo
que “palrador, sociável”, generoso, desleixado, trapalhão nos negócios; vivo e
fácil em “compreender as coisas”: sempre à espera de “algum milagre, do velho
Ourique que sanará todas as dificuldades”; desconfiado de si mesmo, acovardado,
encolhido até que um dia se decide e aparece um herói.” Extremos desencontrados
de introversão e extroversão ou alternativas de sintonia e esquizoidia, como se
diria em moderna linguagem científica.
Considerando
no seu todo, o caráter português dá-nos principalmente a idéia de “vago impreciso”,
pensa o crítico e historiador inglês Aubrey Bell; e essa imprecisão é que
permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes impossíveis de se
ajustarem no duro e anguloso castelhano, de um perfil mais definidamente gótico
e europeu. O caráter português —
comparação do mesmo Bell — é como um rio que vai correndo muito calmo e
de repente se precipita em quedas de água: daí passar do energia na vida particular e a revoluções na
vida pública”; da “docilidade “ a “ímpetos de arrogância e crueldade”; da
“indiferença” a “fugitivos entusiasmos”, “amor ao progresso”, “dinamismo”... É
um caráter todo de arrojos súbitos que entre um ímpeto e outro se compraz em
certa indolência voluptuosa muito oriental, na saudade, no fado, no lausperene.
“Místicos e poéticos” — são ainda os portugueses
segundo Bell (o inglês que depois de Beckford melhor tem sentido e compreendido
a gente e a vida de Portugal), “com intervalos de intenso utilitarismo [...]
caindo dos sonhos vão numa verdadeira volúpia de proveito imediato; das alturas
da alegria na tristeza, no desespero, no suicídio; da vaidade no pessimismo
[...] alternando a indolência com o amor da aventura e do esporte”.
Gilberto
Freyre
Casa
Grande & Senzala
em
Intérpretes do Brasil, vol II
Coordenação,
seleção de livros e prefácio
de
Silviano Santiago
Nova
Aguilar. Rio de Janeiro. 2002.