terça-feira, 11 de dezembro de 2012

MACHADO



1. PANDORA —DO DEMONÍACO AO DIABÓLICO

Dentro da vida, sobre a morte, além das pessoas e do seu pobre destino, há uma força que comanda, que guia e que impera. Um adolescente, Bentinho, encarou-a, sentiu-lhe a face quente, enquanto um moribundo, Brás Cubas, recolheu-lhe, nas próprias entranhas, o hálito feito de gelo e de morte. Seus olhos são olhos de ressaca, o refluxo do mar que leva para o desconhecido, na aventura em que os seres se perdem no ser único, que uma onda devora e se renova em outra de sal e espuma. Contra sua inelutável sedução, o adolescente e o moribundo se agarram às areias, à precária carne que testemunha a presença do homem individualizado. “Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela força que arrasta para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelo ombro; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me , puxar-me e tragar-me (D.C. XXXII). O namorado resiste e se debate, não quer perder a identidade, ameaçado pelas vagas do eterno, que está em todas as coisas, e, entre as coisas, na sua mais fiel e inconsciente servidora, a mulher, irmã da natureza. Na ressaca, despida a retórica dos namorados, debaixo da palavra frívola, aparentemente frívola, garatujada para enganar sem embair, há atração que vem de dentro e de fora, do alto e da mesquinha condição humana. Sempre a misteriosa atração, recheada de terror e de fascínio, freqüenta a imaginação, desarticula a razão e liberta a fantasia. Ela apavora Bentinho, mas, vestida de loucura, tenta o equilíbrio mental dee Rubião. Agora, uma sombra, cultivada por Shakespeare, compõe pompas matrimoniais, coches, os soberbos coches de outrora, evoca marquesas e embaixadores, rondando a cabeça do modesto mestre-escola de Barbacena. “Que misterioso Próspero transformava assim uma ilha banal em mascarado sublime? “Vai, Ariel, traze aqui os teus companheiros, para que eu mostre a este jovem casal alguns feitiços da minha feitiçaria.” As palavras seriam as mesmas da comédia; a ilha é que era outra, e a ilha e a mascarada (Q.B. LXXXII). A ilha e a mascarada eram outras, como outro era Próspero, não mais o duque de Milão, mas um vulto imenso, que surge do fundo do abismo, decifrando o enigma da vida e devorando a criatura. Brás Cubas, só ele entre tantos que lhe perceberam os passos abafados, o semblante negro de cinzas e de fogo, viu-o de perto e com ele fez a viagem em redor do mundo e dos séculos, no espaço e no tempo, à borda da vida e da morte, acompanhado dos espectros do amor e da loucura. “Caiu do ar? destacou-se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.

“— Chamo-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua . ...
        
“Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.

“Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.

“— Não, respondi: nem quero entender-te: tu és absurda, tu, trazes esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que é só mãe e não inimiga; não fazes da vida um flagelo, nem como tu, trazes esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?

— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens.

— “Sim, o teu olhar fascina-me.

— “Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada” (M.P., VII).

Natureza, Pandora, com a forma de mulher, mãe e inimiga, irmã da morte e da loucura, feita de lascívia e egoísmo, ela cria e devora, ama e consome. Insaciável na sua fome, no mar “espreguiça-se toda em convulsões estranhas”:

“Pois esse criatura está com toda a obra:
Cresta-lhe o seio de flor e corrompe-lhe o peito;
E é nesse destruir que as forças dobra.
Ama de igual o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.
(P.C., Uma Criatura)


Raymundo Faoro
Machado de Assis:
A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro, RJ.
3ª edição. 1988.