1.
PANDORA —DO DEMONÍACO AO DIABÓLICO
Dentro
da vida, sobre a morte, além das pessoas e do seu pobre destino, há uma força
que comanda, que guia e que impera. Um adolescente, Bentinho, encarou-a,
sentiu-lhe a face quente, enquanto um moribundo, Brás Cubas, recolheu-lhe, nas
próprias entranhas, o hálito feito de gelo e de morte. Seus olhos são olhos de ressaca, o refluxo do mar que
leva para o desconhecido, na aventura em que os seres se perdem no ser único,
que uma onda devora e se renova em outra de sal e espuma. Contra sua inelutável
sedução, o adolescente e o moribundo se agarram às areias, à precária carne que
testemunha a presença do homem individualizado. “Olhos de ressaca? Vá, de
ressaca. É o que me dá idéia daquela força que arrasta para dentro, como a vaga
que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me
às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelo
ombro; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me , puxar-me e tragar-me (D.C.
XXXII). O namorado resiste e se debate, não quer perder a identidade, ameaçado
pelas vagas do eterno, que está em todas as coisas, e, entre as coisas, na sua
mais fiel e inconsciente servidora, a mulher, irmã da natureza. Na ressaca,
despida a retórica dos namorados,
debaixo da palavra frívola, aparentemente frívola, garatujada para enganar sem
embair, há atração que vem de dentro e de fora, do alto e da mesquinha condição
humana. Sempre a misteriosa atração, recheada de terror e de fascínio,
freqüenta a imaginação, desarticula a razão e liberta a fantasia. Ela apavora
Bentinho, mas, vestida de loucura, tenta o equilíbrio mental dee Rubião. Agora,
uma sombra, cultivada por Shakespeare, compõe pompas matrimoniais, coches, os
soberbos coches de outrora, evoca marquesas e embaixadores, rondando a cabeça
do modesto mestre-escola de Barbacena. “Que misterioso Próspero transformava
assim uma ilha banal em mascarado sublime? “Vai, Ariel, traze aqui os teus
companheiros, para que eu mostre a este jovem casal alguns feitiços da minha
feitiçaria.” As palavras seriam as mesmas da comédia; a ilha é que era outra, e
a ilha e a mascarada (Q.B. LXXXII). A ilha e a mascarada eram outras, como
outro era Próspero, não mais o duque de Milão, mas um vulto imenso, que surge
do fundo do abismo, decifrando o enigma da vida e devorando a criatura. Brás
Cubas, só ele entre tantos que lhe perceberam os passos abafados, o semblante
negro de cinzas e de fogo, viu-o de perto e com ele fez a viagem em redor do
mundo e dos séculos, no espaço e no tempo, à borda da vida e da morte,
acompanhado dos espectros do amor e da loucura. “Caiu do ar? destacou-se da
terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu
então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a
vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano,
porque os contornos perdiam-se no ambiente e o que parecia espesso era muita
vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito;
mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se
chamava: curiosidade de delírio.
“—
Chamo-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua . ...
“Não
te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se
afirma. Vives: não quero outro flagelo.
“Entendeste-me?
disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
“—
Não, respondi: nem quero entender-te: tu és absurda, tu, trazes esse rosto
indiferente, como o sepulcro. E por que é só mãe e não inimiga; não fazes da
vida um flagelo, nem como tu, trazes esse rosto indiferente, como o sepulcro. E
por que Pandora?
—
Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança,
consolação dos homens.
—
“Sim, o teu olhar fascina-me.
—
“Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a
devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do
nada” (M.P., VII).
Natureza,
Pandora, com a forma de mulher, mãe e inimiga, irmã da morte e da loucura,
feita de lascívia e egoísmo, ela cria e devora, ama e consome. Insaciável na
sua fome, no mar “espreguiça-se toda em convulsões estranhas”:
“Pois
esse criatura está com toda a obra:
Cresta-lhe
o seio de flor e corrompe-lhe o peito;
E
é nesse destruir que as forças dobra.
Ama
de igual o poluto e o impoluto;
Começa
e recomeça uma perpétua lida,
E
sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu
dirás que é a morte; eu direi que é a vida.
(P.C.,
Uma Criatura)
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis:
A
Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro, RJ.
3ª
edição. 1988.