segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

DE DIANTE PRA TRÁS



Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo uma moça. Otacília.

Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava mais linda, me salvou com o salvável carinho, adianto de amor. Ela tinha vindo com a mãe. E a mãe dela, os parentes, todos s praziam, me davam Otacília, como minha pretendida.

Mas eu disse tudo. Declarei muito verdadeiro e grande o amor que eu tinha a ela; mas que, por destino anterior, outro amor, necessário também, fazia pouco eu tinha perdido. O que confessei. E eu, para nojo e emenda, carecia de uns tempos. Otacília me entendeu, aprovou o que eu quisesse. Uns dias ela ainda passou lá, me pagando companhia, formosamente.

Ela tinha certeza de que eu ia retornar à Santa Catarina, renovar; e trajar terno de sarjão, flor no peito, sendo o da festa de casamento. Eu fui, com o coração feliz, por Otacília eu estava apaixonado. Conforme me casei, não podia ter feito coisa melhor, como até hoje ela é minha muito companheira — o senhor conhece, o senhor sabe. Mas isto foi tantos meses depois, quando deu o verde nos campos.

Eu já estava de todo bom, firme para as arremessadas, quando ali na Barbaranha se surgiu para mim igualmente a visita de seô Habão — ele com o seo Ornelas se tivessem entre tempos pacificado. Homem baseado. Demonstrou que tinha muita satisfação em me ver, assim como para mim vinha trazendo outro cavalo de presente — o qual era ruço-rodado, ordem de valor e estampa. Ali agraciado aceitei, meu sinceramente. Mas ele portava causa maior — a que tinha ido confirmar e saber, e agenciar, por seus bons préstimos. E era que meu padrinho Selorico Mendes  acabara falecido, me abençoando e se honrando, orgulhoso de meus atos; e as duas maiores fazendas ele tinha deixado para mim, em cédula de testamento. Seô Habão queria logo me levar lá, no Curralim, no Corinto, para eu entrar em paz de poses. Rejeitei; adiei, isto é. Porquanto, de fato, fui, e tudo recebi em limpo, sem precisão de tocar demandas, por falta de outros mais legítimos herdeiros, e o que também devido dou ao advogado meu que zelou a sucessão — Dr. Meigo de Lima.

Só que isso foi mais tarde.

Pois, primeiro, eu tinha outra andada que cumprir, conforme a ordem que meu coração mandava. Tudo agradeci, dei a despedida, ao seo Ornelas e os dele — gente-do-evangelho. Saí comente com o Alaripe e o Quipes, os outros deixei à espera de minha volta, que, por muita companhia numerosa, de nós não cobrassem duvidado. Mas, antes de sair, pedi à dona Brazilina uma tira de pano preto, que pus de funo no meu braço..

Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos. Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati; triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: alguma velha, ou um velho, que da história soubessem — dela lembrados quando tinha sido menina — e então a razão rastraz de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento, O Peixe-Cru, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-Chumbo. Só um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe — batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da era de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins —  que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?

Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é?

E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ele tinha me negado. Para que eu ia conseguir viver? Mas o amor de minha Otacília, também se aumentava, aos berços primeiro, esboço de devagar. Era;

Passado esse tempo, conforme foi, pouca tardança.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.