CARACTERÍSTICAS
GERAIS DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL: FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE AGRÁRIA,
ESCRAVOCRATA E HÍBRIDA
Quando
em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi
depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de
demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical. Mudado em
São Vicente e em Pernambuco o rumo da colonização portuguesa do fácil,
mercantil, para o agrícola; organizada a sociedade sobre base mais sólida e em
condições mais estáveis que na Índia ou nas feitorias africanas, no Brasil é
que se realizaria a prova definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as
condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por
meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim
à cultura econômica e social do invasor.
Formou-se
na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica
de exploração econômica, híbrida de índio — e mais tarde de negro — na
composição. Sociedade que se desenvolveria
defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português
cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em
sistema de profilaxia social e política.
Menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular. Mas tudo
isso subordinado ao espírito político e de realismo econômico e jurídico que
aqui, como em Portugal, foi desde o primeiro século elemento decisivo de
formação nacional; sendo que entre nós através das grandes famílias
proprietárias e autônomas: senhores de engenho com altar e capelão dentro de
casa e índios de arco e flecha ou negros armados de arcabuzes às suas ordens;
donos de terras e de escravos que dos
senados de Câmara falaram sempre grosso aos representantes d’el-Rei e pela voz
liberal dos filhos padres ou doutores clamaram contra toda espécie de abusos da
Metrópole e da própria Madre Igreja. Bem diversos dos criollos ricos e dos bacharéis letrados da América Espanhola — por
longo tempo inermes à sombra dominadora das catedrais e dos palácios dos
vice-reis, ou constituídos em cabildos que
em geral só faziam servir de mangação aos reinóis todo-poderosos.
A
singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata
dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes,
cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem africana fervendo
sob a européia e dando um acre requeime
à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por
uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje
de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas
instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a
rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao
Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica , à disciplina canônica, ao
direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas
sem governar; governando antes a África.
Corrigindo
até certo ponto tão grande influência do clima amolecedor, atuaram sobre o
caráter português, entesando-o, as condições sempre tensas e vibráteis de
contato humano entre a Europa e a África; o constante estado de guerra (que
entretanto não excluiu nunca a miscigenação nem a atração sexual entre as duas
raças, muito menos o intercurso entre as duas culturas; a atividade guerreira,
que se compensava do intenso esforço militar relaxando-se, após a vitória,
sobre o trabalho agrícola e industrial dos cativos de guerra, sobre a
escravidão ou a semi-escravidão dos vencidos. Hegemonias e subserviências essas
que não se perpetuavam; revezavam-se tal
como no incidente dos sinos de Santiago de Compostela. Os quais teriam sido
mandados levar pelos mouros à mesquita de Córdoba às costas dos cristãos e por
estes, séculos mais tarde, mandados reconduzir à Galiza, às costas dos mouros.
Quanto
ao fundo considerado autóctone de população tão movediça, uma persistente massa
de dólicos morenos, cuja cor a África árabe e mesmo negra, alagando de gente
sua largos trechos da Península, mais de uma vez veio avivar de pardo ou de
preto. Era como se os sentisse intimamente seus por afinidades remotas apenas
empalidecidas; e não os quisesse desvanecidos sob as camadas sobrepostas de
nórdicos nem de celtas, germanos, romanos, normandos — o anglo-escandinavo, o
H. Europaeus L., o feudalismo, o
Cristianismo, o Direito Romano, a monogamia. Que tudo isso sofreu restrição ou
refração num Portugal influenciado pela África, condicionado pelo clima
africano, solapado pela mística pela mística sensual do Islamismo.
“Em
vão se procuraria um tipo físico unificado”, notava há anos em Portugal o conde
Hermann de Keyserling. O que ele observou foram elementos os mais diversos e
mais opostos, “figuras com ar escandinavo e negróides”, vivendo no que lhe
pareceu “união profunda”. “A raça não tem aqui papel decisivo”, concluiu o
arguto observador. E já da sociedade moçárabe escrevera Alexandre Herculano:
“População indecisa no meio dos dois bandos contendores [nazarenos e
maometanos], meia cristã, meia sarracena e que em ambos contava parentes,
amigos, simpatias de crenças ou de costumes.”
Esse
retrato do Portugal histórico, traçado por Herculano, talvez possa estender-se
o pré e pró-histórico; o qual nos vai sendo revelado pela Arqueologia e pela
Antropologia tão dúbio e indeciso quanto o histórico. Antes dos árabes e
berberes: capsienses, libifenícios, elementos africanos mais remotos. O H. Taganus. Ondas semitas e negras, ou
negróides, batendo-se com as do Norte.
Gilberto
Freyre
Casa-Grande
& Senzala
Formação
da Família Brasileira
Sob
o Regime da Economia Patriarcal
Intérpretes
do Brasil. Coorden. seleção e prefácio
de
Silviano Santiago
Nova
Aguilar. Rio de Janeiro, RJ. 2002.