sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

MINHA TERRA TEM PALMEIRAS



CARACTERÍSTICAS GERAIS DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL: FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE AGRÁRIA, ESCRAVOCRATA E HÍBRIDA

Quando em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical. Mudado em São Vicente e em Pernambuco o rumo da colonização portuguesa do fácil, mercantil, para o agrícola; organizada a sociedade sobre base mais sólida e em condições mais estáveis que na Índia ou nas feitorias africanas, no Brasil é que se realizaria a prova definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica e social do invasor.

Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio — e mais tarde de negro — na composição. Sociedade que se desenvolveria  defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia  social e política. Menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular. Mas tudo isso subordinado ao espírito político e de realismo econômico e jurídico que aqui, como em Portugal, foi desde o primeiro século elemento decisivo de formação nacional; sendo que entre nós através das grandes famílias proprietárias e autônomas: senhores de engenho com altar e capelão dentro de casa e índios de arco e flecha ou negros armados de arcabuzes às suas ordens; donos de terras  e de escravos que dos senados de Câmara falaram sempre grosso aos representantes d’el-Rei e pela voz liberal dos filhos padres ou doutores clamaram contra toda espécie de abusos da Metrópole e da própria Madre Igreja. Bem diversos dos criollos ricos e dos bacharéis letrados da América Espanhola — por longo tempo inermes à sombra dominadora das catedrais e dos palácios dos vice-reis, ou constituídos em cabildos que em geral só faziam servir de mangação aos reinóis todo-poderosos.

A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem africana fervendo sob a européia  e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica , à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar; governando antes a África.

Corrigindo até certo ponto tão grande influência do clima amolecedor, atuaram sobre o caráter português, entesando-o, as condições sempre tensas e vibráteis de contato humano entre a Europa e a África; o constante estado de guerra (que entretanto não excluiu nunca a miscigenação nem a atração sexual entre as duas raças, muito menos o intercurso entre as duas culturas; a atividade guerreira, que se compensava do intenso esforço militar relaxando-se, após a vitória, sobre o trabalho agrícola e industrial dos cativos de guerra, sobre a escravidão ou a semi-escravidão dos vencidos. Hegemonias e subserviências essas que não se perpetuavam; revezavam-se  tal como no incidente dos sinos de Santiago de Compostela. Os quais teriam sido mandados levar pelos mouros à mesquita de Córdoba às costas dos cristãos e por estes, séculos mais tarde, mandados reconduzir à Galiza, às costas dos mouros.

Quanto ao fundo considerado autóctone de população tão movediça, uma persistente massa de dólicos morenos, cuja cor a África árabe e mesmo negra, alagando de gente sua largos trechos da Península, mais de uma vez veio avivar de pardo ou de preto. Era como se os sentisse intimamente seus por afinidades remotas apenas empalidecidas; e não os quisesse desvanecidos sob as camadas sobrepostas de nórdicos nem de celtas, germanos, romanos, normandos — o anglo-escandinavo, o H. Europaeus  L., o feudalismo, o Cristianismo, o Direito Romano, a monogamia. Que tudo isso sofreu restrição ou refração num Portugal influenciado pela África, condicionado pelo clima africano, solapado pela mística pela mística sensual do Islamismo.

“Em vão se procuraria um tipo físico unificado”, notava há anos em Portugal o conde Hermann de Keyserling. O que ele observou foram elementos os mais diversos e mais opostos, “figuras com ar escandinavo e negróides”, vivendo no que lhe pareceu “união profunda”. “A raça não tem aqui papel decisivo”, concluiu o arguto observador. E já da sociedade moçárabe escrevera Alexandre Herculano: “População indecisa no meio dos dois bandos contendores [nazarenos e maometanos], meia cristã, meia sarracena e que em ambos contava parentes, amigos, simpatias de crenças ou de costumes.”

Esse retrato do Portugal histórico, traçado por Herculano, talvez possa estender-se o pré e pró-histórico; o qual nos vai sendo revelado pela Arqueologia e pela Antropologia tão dúbio e indeciso quanto o histórico. Antes dos árabes e berberes: capsienses, libifenícios, elementos africanos mais remotos. O H. Taganus. Ondas semitas e negras, ou negróides, batendo-se com as do Norte.


Gilberto Freyre
Casa-Grande & Senzala
Formação da Família Brasileira
Sob o Regime da Economia Patriarcal
Intérpretes do Brasil. Coorden. seleção e prefácio
de Silviano Santiago
Nova Aguilar. Rio de Janeiro, RJ. 2002.