segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

EMANUEL E FEDERICO



Por que os trouxera? Talvez na ocasião tivesse imaginado que a Samarra ia ser seu esteio de pouso, termo de destino. E ele mesmo, nas entradas, se louvou de ter conseguido reunir para si aquela família de tardezinha. Estivesse, naquela hora, denunciando cabeceira de velhice? Não pensava. Nem agora chegava a mudar de parecer. do que tinha feito não se arrependia. Essas coisas ocorrem nuns escuros, é custoso se saber se a gente deve se aprovar ou confessar um arrependimento: nos caroços daquele angu, tudo tão misturado, o ruim e o bom. Mas ele não punha em pé o pesar. Estavam de bem, só que , em qualquer novidade, nesta vida, se carece de esperar o costume, para o homem e para o boi. Manuelzão era o das forças, não se queixava. Os meninos, bem-criadinhos, bonitos, uma cisma achar que dele não gostavam, pois que sempre estava no estatuto de ser o avô. A mal que não sabia os gestos, nem tinha habituação para a pequenez deles, o rebuliço; mas adiava vagos intentos: aqueles netinhos ainda iam crescer, dar-lhe distintas alegrias. Já o Adelço, esse, se encobria de não se conhecer sua propensão, criatura de guardadas palavras e olhares baixos. Mas não enganava a Manuelzão: era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando para ser ruim. Só punha toda estima em sua mulher e nos filhinhos, das outras pessoas tinha uma raiva surdada. Sempre aquela miúda dureza, sem teta de piedade nenhuma. Por ora, obedecia a Manuelzão — de que outro jeito ia poder proceder?  as obedecia soturno. Um dia ele chegasse a mandar, e ai do mundo. Tinha a maldade dum cão mau? Manuelzão se aborrecia, por fora do assunto. Não queria detestar o filho. Seria, porém, aquele, um saído de seu sangue? Se assustava quase, de ter gerado e estar apurando um sujeito assim, desamigo de todos. Sua culpa. Se então, mais valesse  o rejeitar outra vez e enxotar para os passados — feito a gente está pescando e dá na peneira uma serepente: um cospe um nojo e desiste logo aquilo no movimento das águas, ligeiro, no rio, de donde veio! A vida cobra tudo. Mas a mulher do Adelço, Leonísia, era boa, uma sinhá de exata, só senhora. Aquela tinha sial de um sabido anjo-da-guarda — pelo convívio que ela encorajava, gerência de companhia. Ela e seu irmão dela, de uns dezoito anos, vindo também, o Promitivo. Só que esse Promitivo era declarado em vagabundo. A ser, os desiguais: que o Adelço era mouro trabalhador, de aferro; era, isso. E, Leonísia, Manuelzão mesmo respeitava. Ela ficara sendo a dona-da-casa. Da Casa — de verdade, que ali formava seu conchego firme sertanejo.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile. 1º volume. José Olympio.
Rio de Janeiro, RJ. 1ª edição. 1956.