Como
estavam indo abrir aquele quarto, trazendo do corredor a mulher do Hermógenes.
Ela visse. — A senhora chegue na janela,
dona, espia para a rua... — o que João Concliz falou. Aquela Mulher não era
malina. — A senhora conheça, dona, um
homem demõiado, que foi: mas que já começou a feder, retalhado na virtude do
ferro...” Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse que não, sacudindo só de
leve a cabeça, como respeito de seriedade. — Eu tinha ódio dele... — ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda não
estava bem de mim, da dor que me nublou, tive de sentar no banco da parede.
Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de todos, eu em malmolência. — Tomaram as roupas da mulher nua? Era a
Mulher , que falava . Ah, e a Mulher rogava: — Que trouxessem o corpo daquele
rapaz moça, vistoso, o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas
lágrimas virem, e ordenando: —“Traz Diadorim!”— conforme era. — “Gente, vamos
trazer; Esse é Reinaldo...” — o que o
Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. — Ai, Jesus! — foi o que eu ouvi, dessas
vozes deles.
Aquela
Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já
frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de
verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de
mesa foi posto. Diadorim, Diadorim — será que amereci só por metade? Com meus
molhados olhos não olhei bem — como que garças voavam... E que fossem campear
velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do
escuro do arraial...
Sufoquei,
numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e
vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces
de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia,
só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de
palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para
a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de
duráveis... Não escrevo, não falo! — para assim não ser: não foi, não é, não
fica sendo! Diadorim...
Eu
dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou
todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante
deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o
corpo. E disse...
Diadorim
— nu de tudo. E ela disse:
—
“A Deus dada. Pobrezinha...”
E
disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor — e mercê
peço: — mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto
segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era
o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a
surpresa. A coice d’arma, de coronha...
Ela
era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão
para me benzer — mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas
maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o
sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.
O
senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.
Eu
estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para
trás, incendiável, abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo
as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os
cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser,
haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu
exclamei me doendo:
—
“Meu amor!...”
Foi
assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.
A
Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da
trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com
o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e
contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou — ah — a pedra-de-ametista, tanto trazida... O
Quipes veio, com as velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam
perto de mim. Como tinham ido abrir a cova, cristãmente. Pelo repugnar e
revoltar, primeiro eu quis: — “enterrem separado dos outros, num aliso de vereda,
adonde ninguém ache, nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar
do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos
extenso. E todos meus jagunços, decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura
deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.
Ela
tinha amor em mim.
E
aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que
narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui
a estória se acabou.
Aqui,
a estória acabada.
Aqui
a estória acaba.
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª
edição. 1956.