sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

DE DIANTE PRA TRÁS



Como estavam indo abrir aquele quarto, trazendo do corredor a mulher do Hermógenes. Ela visse. — A senhora chegue na janela, dona, espia para a rua... — o que João Concliz falou. Aquela Mulher não era malina. — A senhora conheça, dona, um homem demõiado, que foi: mas que já começou a feder, retalhado na virtude do ferro...” Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse que não, sacudindo só de leve a cabeça, como respeito de seriedade. — Eu tinha ódio dele... — ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda não estava bem de mim, da dor que me nublou, tive de sentar no banco da parede. Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de todos, eu em malmolência. — Tomaram as roupas da mulher nua? Era a Mulher , que falava . Ah, e a Mulher rogava: — Que trouxessem o corpo daquele rapaz moça, vistoso, o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e ordenando: —“Traz Diadorim!”— conforme era. — “Gente, vamos trazer; Esse é  Reinaldo...” — o que o Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. — Ai, Jesus! — foi o que eu ouvi, dessas vozes deles.

Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam  meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim — será que amereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem — como que garças voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...

Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! — para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...

Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...

Diadorim — nu de tudo. E ela disse:

— “A Deus dada. Pobrezinha...”

E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor — e mercê peço: — mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer — mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável, abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:

— “Meu amor!...”

Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.

A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou — ah —  a pedra-de-ametista, tanto trazida... O Quipes veio, com as velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. Como tinham ido abrir a cova, cristãmente. Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: — “enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços, decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.

Ela tinha amor em mim.

E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.

Aqui a estória se acabou.

Aqui, a estória acabada.

Aqui a estória acaba.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª edição. 1956.