Sob
qualquer ponto de vista em que a observássemos, a Amazônia tinha sido até então
“uma grande vítima de suas próprias grandezas”; depois do darwinismo implacável
de Euclides da Cunha e do realismo dramático de seu discípulo Alberto Rangel
(que ele reconhecia e louvava) — superados, idealmente, um e outro, pela
mitologia compensatória de Cobra Norato
— Alfredo Ladislau retomava o ufanismo suspicaz e inquieto com que
tradicionalmente “defendemos” a Amazônia e todas as nossas “riquezas naturais”.
Ele foi visto desde logo como um discípulo de Euclides da Cunha, cuja
influência, no caso, é de fato inegável. Quem o sagrava cavaleiro dessa falange
era ninguém menos que Alberto Rangel, em carta a Fraga de Castro: “A alma
brasileira encontra, depois de Euclides, nas mesmas cordas da Amazônia , o
grande tangedor da infinita sabedoria (...)”. O Pe. Dubois, na Folha do Norte, não era menos entusiástico:
Tem de Euclides da Cunha a pompa da linguagem, os vocábulos grandíloquos, a
tecnologia sábia, o rebuscamento no frasear. Brilhante e variado escrínio de
pedrarias.” Não ficava atrás o jornalista Carijó Cerejo, em O Brasil: “Comparável simultaneamente a
Euclides da Cunha e Graça Aranha, possuindo de um o vigor da análise e a
estilística soberba , e do outro, a suavidade e o enlevo panteísta.” A nota
discordante vinha, por inesperado, da revista neo-simbolista Terra de Sol, já no segundo número, em fevereiro
de 1924 (lembremos que o livro tinha sido originalmente publicado em 1923):
“Herdou de Euclides a excessiva pujança da expressão e certo preciosismo de
vocabulário que, espontâneos e característicos no épico de Os Sertões, se justificam menos em seus continuadores.”
Tais
restrições, perfeitamente apropriadas em 1924, tornaram-se ainda mais oportunas
em 1933, quando a terceira edição de Terra
Imatura, esse livro mentalmente pré-modernista, coincidia com o
aparecimento de Casa Grande & Senzala,
livro por tantos aspectos antieuclidiano e, bem entendido e, bem entendido,
representativo, embora a contragosto, da ideologia modernista em matéria de
estudos brasileiros. Por singularidade, ele parecia mais próximo da Atlântida, não só pelo papel
eminente que reconheceu à “raça de
azeviche” nas fontes da civilização brasileira, mas, ainda, na concepção do
“tipo sintético” em que terminaria por se resolver a nossa equação racial.
Conforme
o título desde logo sugere, Gilberto Freire tomou duas chaves simultâneas para
a interpretação do Brasil, ou, mais especificamente, do que mais tarde
denominaria a nossa “sociedade patriarcal”: de um lado, as formas arquiteturais
como símbolo ou metáfora de status; por
outro lado, o papel catalítico representado pela escravidão. O livro se fundava
substancialmente na diferença entre raça e
cultura, distinção de fato essencial
e, àquela altura, praticamente desconhecida em nossa história social; além
disso, Gilberto Freire introduzia conceitos extremamente elucidativos, como o
de tempo social (paralelo ao tempo
cronológico) e o de espaço social, em
lugar do espaço geográfico.
Na
linha de “deseroicização” da historiografia, postulada e praticada por Oliveira
Viana, ele tomou a família como unidade básica na formação, desenvolvimento e
transformações da sociedade, família — e
é uma das contribuições mais características do pensamento gilbertiano —
estruturada pela forma patriarcal. Assim, a relação patriarcal da família
propriamente dita se projeta, em termos perfeitamente idênticos, nas relações
entre o senhor e o escravo — o que
significa que, no sistema brasileiro, o escravo, apesar das aparências ou das
exterioridades, era mais do que uma simples propriedade: ele pertencia à
família do senhor, sentia-se como tal e como tal era sentido. O escravo era um
prolongamento da família, ao mesmo título que os protegidos e agregados, sem
excluir o capelão; simbolizada no domínio rural, a família era uma
“propriedade” como o escravo e as terras, estes últimos sendo,
psicologicamente, a “família” do senhor.
Os
termos dessa equação se intercambiam de tal maneira que a sua inversão
recíproca torna o processo ainda mais claro: o senhor da. família é o pai do
escravo; a família é escrava do senhor, mas o escravo é a sua família. Claro,
essa estrutura só é válida para aquele espaço social do Nordeste em que
realmente alcançou pleno desenvolvimento; levantada desde logo contra a
generalização que o autor a princípio lhe quis atribuir, essa objeção é
procedente, não deve ser ignorada e foi, ao que parece, por ele mesmo
tacitamente admitida com o correr dos anos
Wilson
Martins
História
da Inteligência Brasileira
vol.
VII (1933-1960).
Cultrix.
Edusp. São Paulo, SP.
1ª
edição. 1979.