segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA


Sob qualquer ponto de vista em que a observássemos, a Amazônia tinha sido até então “uma grande vítima de suas próprias grandezas”; depois do darwinismo implacável de Euclides da Cunha e do realismo dramático de seu discípulo Alberto Rangel (que ele reconhecia e louvava) — superados, idealmente, um e outro, pela mitologia compensatória de Cobra Norato — Alfredo Ladislau retomava o ufanismo suspicaz e inquieto com que tradicionalmente “defendemos” a Amazônia e todas as nossas “riquezas naturais”. Ele foi visto desde logo como um discípulo de Euclides da Cunha, cuja influência, no caso, é de fato inegável. Quem o sagrava cavaleiro dessa falange era ninguém menos que Alberto Rangel, em carta a Fraga de Castro: “A alma brasileira encontra, depois de Euclides, nas mesmas cordas da Amazônia , o grande tangedor da infinita sabedoria (...)”. O Pe. Dubois, na Folha do Norte, não era menos entusiástico: Tem de Euclides da Cunha a pompa da linguagem, os vocábulos grandíloquos, a tecnologia sábia, o rebuscamento no frasear. Brilhante e variado escrínio de pedrarias.” Não ficava atrás o jornalista Carijó Cerejo, em O Brasil: “Comparável simultaneamente a Euclides da Cunha e Graça Aranha, possuindo de um o vigor da análise e a estilística soberba , e do outro, a suavidade e o enlevo panteísta.” A nota discordante vinha, por inesperado, da revista neo-simbolista Terra de Sol, já no segundo número, em fevereiro de 1924 (lembremos que o livro tinha sido originalmente publicado em 1923): “Herdou de Euclides a excessiva pujança da expressão e certo preciosismo de vocabulário que, espontâneos e característicos no épico de Os Sertões, se justificam menos em seus continuadores.”

Tais restrições, perfeitamente apropriadas em 1924, tornaram-se ainda mais oportunas em 1933, quando a terceira edição de Terra Imatura, esse livro mentalmente pré-modernista, coincidia com o aparecimento de Casa Grande & Senzala, livro por tantos aspectos antieuclidiano e, bem entendido e, bem entendido, representativo, embora a contragosto, da ideologia modernista em matéria de estudos brasileiros. Por singularidade, ele parecia mais próximo da Atlântida, não só pelo papel eminente  que reconheceu à “raça de azeviche” nas fontes da civilização brasileira, mas, ainda, na concepção do “tipo sintético” em que terminaria por se resolver a nossa equação racial.

Conforme o título desde logo sugere, Gilberto Freire tomou duas chaves simultâneas para a interpretação do Brasil, ou, mais especificamente, do que mais tarde denominaria a nossa “sociedade patriarcal”: de um lado, as formas arquiteturais como símbolo ou metáfora de status; por outro lado, o papel catalítico representado pela escravidão. O livro se fundava substancialmente na diferença entre raça e cultura, distinção de fato essencial e, àquela altura, praticamente desconhecida em nossa história social; além disso, Gilberto Freire introduzia conceitos extremamente elucidativos, como o de tempo social (paralelo ao tempo cronológico) e o de espaço social, em lugar do espaço geográfico.

Na linha de “deseroicização” da historiografia, postulada e praticada por Oliveira Viana, ele tomou a família como unidade básica na formação, desenvolvimento e transformações da sociedade, família —  e é uma das contribuições mais características do pensamento gilbertiano — estruturada pela forma patriarcal. Assim, a relação patriarcal da família propriamente dita se projeta, em termos perfeitamente idênticos, nas relações entre o senhor e o escravo —  o que significa que, no sistema brasileiro, o escravo, apesar das aparências ou das exterioridades, era mais do que uma simples propriedade: ele pertencia à família do senhor, sentia-se como tal e como tal era sentido. O escravo era um prolongamento da família, ao mesmo título que os protegidos e agregados, sem excluir o capelão; simbolizada no domínio rural, a família era uma “propriedade” como o escravo e as terras, estes últimos sendo, psicologicamente, a “família” do senhor.         

Os termos dessa equação se intercambiam de tal maneira que a sua inversão recíproca torna o processo ainda mais claro: o senhor da. família é o pai do escravo; a família é escrava do senhor, mas o escravo é a sua família. Claro, essa estrutura só é válida para aquele espaço social do Nordeste em que realmente alcançou pleno desenvolvimento; levantada desde logo contra a generalização que o autor a princípio lhe quis atribuir, essa objeção é procedente, não deve ser ignorada e foi, ao que parece, por ele mesmo tacitamente admitida com o correr dos anos


Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960).
Cultrix. Edusp. São Paulo, SP.
1ª edição. 1979.