Por
via das coisas e das pessoas, dissociadas no espaço e no tempo em partículas
plurais, na vontade de viver de cada um, pulsa uma força universal, captada num
salto metafísico, por obra do sentimento. Para o engano da mascarada do mundo,
a criatura supõe perseguir fins, conscientemente autônomos. No fundo, os fins
são apenas instrumentos de sua substância que tudo domina, retalhos da vontade
que arde na garra do tigre ou na lascívia do homem. A lógica, a ciência, são
armadilhas que desviam, sem vencer, da verdade que está em tudo e em todos.
Essa metafísica poderia concluir na harmonia do contingente com a ordem
superior, na paz com a vida ou na reconciliação com o universo. No dualismo
aparente, que culmina no monismo essencial, entre um componente trágico, no
momento em que a substância se expressa na vontade, que abriga no seio a cisão,
a luta, o anelo insaciável. “Com isso introduziu-se no ponto radical unitário
da vida — cuja unidade, só pelo fato de ser unidade, concederia em outro caso à
existência e a seu reflexo espiritual a tranqüilidade suprema e a quietude —, a
luta pela existência e o fugir dela, a ânsia perpétua sem fim nem objeto, a
cisão irreconciliável entre todo presente
e o que nós propriamente queremos. A forma com que todo monismo confere
quietude, firmeza e paz à sua concepção
do mundo transforma-se aqui, em razão de seu conteúdo, no seu contrário, na
ânsia e inquietude perenes e na contradição interior”. Daí porque a natureza,
tradução machadiana, da vontade de Schopenhauer, é mãe e inimiga. Como mãe ela
atrai e seduz, convida e arrasta; como inimiga, por influxo da razão, atemoriza
o Brás Cubas moribundo e o Bentinho enamorado. A natureza, na ênfase do
romancista, como a doutrina do filósofo alemão, se manifesta no fenômeno e na
realização da vontade de viver. Mas a natureza vela pelo indivíduo enquanto ele
realiza sua missão, que é perpetuar a espécie, só esta eterna, superior ao
espaço e ao tempo. A morte — tema freqüente de Machado de Assis, que vê na imortalidade
apenas feitiçaria e a perpetuação do nome (lembre-se o emplastro de Brás Cubas)
— não passa de um acidente, que só a razão não entende. Recusar-se a ela seria
como se o sol se pusesse a bradar, diante da tarde: vou perder-me na noite
eterna. Ao cessar a vida orgânica, o sopro que provoca a respiração e o sangue
que circula — a força inspiradora continua a arder, “pois a roca, ao parar, não
denuncia a morte da fiandeira. Quando um pêndulo, encontrando a força de
gravidade, se imobiliza, perdendo a aparência da vida individual, ninguém
haveria de crer que a força de gravidade desapareceu senão que todos a
compreenderão na contínua atividade dos fenômenos.” “Se nossa mãe comum —
prossegue Schopenhauer — entrega seus filhos, indefesos, aos mil perigos que os
cercam, é porque sabe perfeitamente que eles volverão ao seu seio, onde se
encontram ao abrigo de todos os riscos, sendo a queda somente um incidente sem
importância.” Assim é para o homem e para o animal, para a árvore e para a
pedra, matéria que alimenta a mó da vida, impiedosamente ativa na sua
permanência. Todos os elementos — do homem ao pó — são irmãos, mas irmãos que
se digladiam, combatem, ocupam um lugar que, eterno, tem ocupantes sucessivos,
conquistado na luta.
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis:
A
Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro.
3ª
edição. 1988.