quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

MACHADO



Por via das coisas e das pessoas, dissociadas no espaço e no tempo em partículas plurais, na vontade de viver de cada um, pulsa uma força universal, captada num salto metafísico, por obra do sentimento. Para o engano da mascarada do mundo, a criatura supõe perseguir fins, conscientemente autônomos. No fundo, os fins são apenas instrumentos de sua substância que tudo domina, retalhos da vontade que arde na garra do tigre ou na lascívia do homem. A lógica, a ciência, são armadilhas que desviam, sem vencer, da verdade que está em tudo e em todos. Essa metafísica poderia concluir na harmonia do contingente com a ordem superior, na paz com a vida ou na reconciliação com o universo. No dualismo aparente, que culmina no monismo essencial, entre um componente trágico, no momento em que a substância se expressa na vontade, que abriga no seio a cisão, a luta, o anelo insaciável. “Com isso introduziu-se no ponto radical unitário da vida — cuja unidade, só pelo fato de ser unidade, concederia em outro caso à existência e a seu reflexo espiritual a tranqüilidade suprema e a quietude —, a luta pela existência e o fugir dela, a ânsia perpétua sem fim nem objeto, a cisão irreconciliável entre todo presente  e o que nós propriamente queremos. A forma com que todo monismo confere quietude, firmeza e paz  à sua concepção do mundo transforma-se aqui, em razão de seu conteúdo, no seu contrário, na ânsia e inquietude perenes e na contradição interior”. Daí porque a natureza, tradução machadiana, da vontade de Schopenhauer, é mãe e inimiga. Como mãe ela atrai e seduz, convida e arrasta; como inimiga, por influxo da razão, atemoriza o Brás Cubas moribundo e o Bentinho enamorado. A natureza, na ênfase do romancista, como a doutrina do filósofo alemão, se manifesta no fenômeno e na realização da vontade de viver. Mas a natureza vela pelo indivíduo enquanto ele realiza sua missão, que é perpetuar a espécie, só esta eterna, superior ao espaço e ao tempo. A morte — tema freqüente de Machado de Assis, que vê na imortalidade apenas feitiçaria e a perpetuação do nome (lembre-se o emplastro de Brás Cubas) — não passa de um acidente, que só a razão não entende. Recusar-se a ela seria como se o sol se pusesse a bradar, diante da tarde: vou perder-me na noite eterna. Ao cessar a vida orgânica, o sopro que provoca a respiração e o sangue que circula — a força inspiradora continua a arder, “pois a roca, ao parar, não denuncia a morte da fiandeira. Quando um pêndulo, encontrando a força de gravidade, se imobiliza, perdendo a aparência da vida individual, ninguém haveria de crer que a força de gravidade desapareceu senão que todos a compreenderão na contínua atividade dos fenômenos.” “Se nossa mãe comum — prossegue Schopenhauer — entrega seus filhos, indefesos, aos mil perigos que os cercam, é porque sabe perfeitamente que eles volverão ao seu seio, onde se encontram ao abrigo de todos os riscos, sendo a queda somente um incidente sem importância.” Assim é para o homem e para o animal, para a árvore e para a pedra, matéria que alimenta a mó da vida, impiedosamente ativa na sua permanência. Todos os elementos — do homem ao pó — são irmãos, mas irmãos que se digladiam, combatem, ocupam um lugar que, eterno, tem ocupantes sucessivos, conquistado na luta.


Raymundo Faoro
Machado de Assis:
A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro.
3ª edição. 1988.