terça-feira, 31 de julho de 2012

SETE LAGOAS


A BÍBLIA SAGRADA



Seus irmãos foram apascentar o rebanho de seu pai em Siquém. Israel disse a Jose: “Não apascentam teus irmãos o rebanho em Siquém? Vem, vou enviar-te a eles.” E ele respondeu: “Eis-me aqui.”  Ele lhe disse: “Vai então ver como estão teus irmãos e o rebanho e traze-me notícias.” Ele o enviou do vale de Hebron e José chegou a Siquém.

Um homem o encontrou andando errante pelos campos e este homem lhe perguntou: “Que procuras?” Ele respondeu: “Procuro meus irmãos. Indica-me, por favor, onde apascentam seus rebanhos.” O homem disse: “Eles levantaram acampamento daqui; ; eu os ouvi dizer Vamos a Dotain.” José partiu à procura de seus irmãos e os encontrou em Dotain.

Eles o viram de longe e, antes que chegasse perto, tramaram sua morte. Disseram entre si: “Eis que chega o tal sonhador! Vinde, matemo-lo, joguemo-lo numa cisterna qualquer; diremos que um animal feroz o devorou. Veremos o que acontecerá com seus sonhos!”

Mas Rúben, ouvindo isso, salvou-o de suas mãos. Ele disse: “Não lhe tiremos a vida!” Disse-lhes Rúben:”Não derrameis o sangue! Lançai-o nesta cisterna do deserto, mas não ponhais a mão sobre ele!” Era para salvá-lo das mãos deles e restituí-lo a seu pai. Assim, quando José chegou junto deles, despojaram-no de sua túnica, a túnica adornada que eles vestia. Arremessaram-se contra ele e o lançaram na cisterna; era uma cisterna vazia, onde não havia água. Depois sentaram-se para comer.

Erguendo os olhos, eis que viram uma caravana de ismaelitas que vinha de Galaad. Seus camelos estavam carregados de alcatira, de bálsamo e ládano que levavam para o Egito. Então disse Judá a seus irmãos: “De que nos aproveita matar nosso irmão e cobrir seu sangue? Vinde, vendamo-lo aos ismaelitas, mas não ponhamos a mão sobre ele: é nosso irmão, da mesma carne que nós.” E seus irmãos o ouviram.

Quando passaram os mercadores madianitas, eles retiraram José da cisterna. Venderam José aos ismaelitas por vinte siclos de prata e eles o conduziram ao Egito. Quando Rúben voltou à cisterna, eis que José não estava mais ali! Ele rasgou suas vestes e, voltando a seus irmãos, disse: “O rapaz não está mais lá! E eu, aonde irei?”

Eles tomaram a túnica de José e, degolando um bode, molharam a túnica no sangue. Enviaram a túnica adornada, fizeram-na levar a seu pai com estas palavras: “Eis o que encontramos! Vê se é ou não a túnica de teu filho.” Ele olhou e disse: “É a túnica de meu filho! Um animal feroz o devorou. José foi despedaçado!” Jacó rasgou suas vestes, cingiu os seus rins com um pano de saco e fez luto por seu filho durante muito tempo. Todos os seus filhos e filhas vieram para consolá-lo, mas ele recusou toda consolação e disse: “Não, é em luto que descerei ao Xeol para junto de meu filho.” E seu pai o chorou.

Entretanto os madianitas venderam-no, no Egito, a Putifar, eunuco do Faraó e comandante dos guardas.


Gn 37, 12-36

segunda-feira, 30 de julho de 2012

ENTRE RIOS DE MINAS


OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA (cont.)

Darcy Rodrigues de Mello
Dario Coelho Bastos
Dario Vasconcellos
David Monteiro de Barros Lins
David Reis
David Ribeiro de Lima
David Rosemberg
Décio João Machado
Demétrio de Castro Menezes
Demétrio Ribeiro
Deodônio Albuquerque
Deolindo Borges Porto Alegre
Deraldo Padilha de Oliveira
Dércio Pessoa
Deusdedith Ferreira do Nascimento
Dílson Garcia Boucinhas
Diógenes Alves
Dionísio de Oliveira Toledo
Dionísio Fernandes Borges
Dionísio Rosa Braga
Dirceu Corrêa Custódio
Diva Carvalho Carneiro
Djalma Maciel Linhares
Djalma Tavares da Cunha Mello
Djalma Tavares da Cunha Mello Filho
Domingos Arthur Machado Filho
Dorany de Sá Barreto Sampaio
Doriam Sampaio
Dorly Dias Curvelo
Durmeval Bartolomeu Trigueiro Mendes
Durval Gomes de Faria
Durval Prosdócimo Cresto
Durval Vieira de  Souza
Éder Simões
Edésio Nazareth
Edgar Albuquerque Graeff
Edgard Bento de Oliveira
Edgard de Godói da Matta Machado
Edmílson de Melo
Edmílson Jorge de Oliveira
Edmílson Ricarte Cunha
Édson Moury Fernandes
Édson Soares dos Santos
Eduardo Cordeiro Viana
Eduardo de Menezes Borges
Eduardo Martins de Oliveira Rolim
Eduardo Moura da Silva Rosa
Eduardo Pereira Xavier
Eduardo Pimentel

RECADO AO UOL


O Fluminense joga futebol ou basquete? A turma daí está precisando de um oculista, entre outros motivos, para ler o UOL, que, na descrição do jogo, lá em baixo, bem lá em baixo, se lembrou dos dois lances de bola ao cesto, um logo após outro, com o segundo dentro da área, e numa situação típica de "mão na bola", quando não há discussão, por parte de um defensor do Fluminense.

Não é todos os dias que "la mano" é de "Dios". Às vezes é "del Diablo"...

Quando será que a crônica esportiva vai deixar de ser provinciana e descobrir que o Brasil é muito maior que o eixo Rio-São Paulo? Há boas geografias à venda por aí...

domingo, 29 de julho de 2012

PETRÓPOLIS


OTELO E SANT'IAGO



Capítulo Segundo
DO LIVRO

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão. Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria: fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Matacavalos, já ela , já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior que é ruidosa.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e essa lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa.

Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar  e ler; como bem e não durmo mal.

Ora, como tudo cansa, essa monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentação e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns.Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeira, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: “Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?”

Fiquei tão alegre com essa idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender lendo.


Machado de Assis
Dom Casmurro

sábado, 28 de julho de 2012

BELO HORIZONTE


EMANUEL E FEDERICO



Manuelzão, ali perante, vigiava. A cavalo, as mãos cruzadas na cabeça da sela, dedos abertos; só com o anular da esquerda prendia a rédea. Alto, no alto animal, ele sobrelevava a capelinha. Seu chapéu-de-couro, que era o mais vistoso, na redondeza, o mais vasto. Com tanto sol, ee conservava vestido o estreito jaleco, cor de onça-parda. Se esquecia. “Manuel Jesus Rodrigues” — MANUELZÃO J. ROÍZ — : gostaria pudesse ter escrito também, debaixo do título da Santa, naquelas bonitas letras azuis, com o resto da tinta que, não por pequeno preço, da Pirapora mandara vir. Queria uma festa forte, a primeira missa. Agora, por dizer, certo modo, aquele lugar da Samarra se fundava.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile (Sete Novelas) – 1º vol.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.         

sexta-feira, 27 de julho de 2012

TIRADENTES


OS INCONFIDENTES



Carta de Inácio Correia Pamplona a Carlos José da Silva, encaminhando carta-denúncia ao Visconde de Barbacena. Fazenda Mendanha (Lagoa Dourada, MG – aprox. 20-04-1789).

Senhor Coronel:

Amigo fiel, e fiel Amigo. Nada posso dizer, assim eu o pudesse ver e de viva voz na sua presença dizer-lhe os meus sentimentos, que chegam ao fundo do meu coração. E maiormente por não poder montar a cavalo, de um tombo que dei na Fazenda do Capote, indo fazer junta de toda a criação na fazenda de gado, a dar-lhe sal; tive esta infelicidade, quede um quarto me não posso mover sem que padeça muitas dores. Estou de novo pensando outra raça de cor carmezim, crinas brancas e cauda branca e toda calçada de branco dos quatro pés e frente da testa, para o nosso cadete, porque o outro, da grande peste que teve, creio que não torna a ser mais cavalo. Não lhe digo mais a respeito do seu bucéfalo chamado Porto Real, porque tem engrossado e  se acha com gravidade; o ponto está que lhe não venha alguma azanga etc. Remeto uma dúzia de queijos, que me parecem na sua qualidade serem bons, e assim mais 9 queijos pequeninos, de coração, para o meu cadete e o Miguelinho.

Eu e Eugênia nos recomendamos muito a Senhora Inácia, e que a nossa dona pequena se vá criando com bom sucesso que bem deveras estimamos. O meu rapaz Inácio, por toda esta semana, há de ir para dentro para o Seminário, se Deus for servido, e como eu não posso ir, ele lá não tem outro pai senão o Senhor Coronel Carlos José e o Reverendo Padre Antônio, pelo favor que me faz. Tenha Vossa Mercê saúde e felicidade, e na consideração que eu sou, assim como tenho sido,

De Vossa Mercê

Amigo bem deveras

Pamplona

(P.S.) O Chico ainda tenho em prisão e anda no serviço, e me parece que não lhe vai mal etc. Eu não posso ir a Vila; Vosmecê veja o modo donde havemos de conversar pelo que ouço dizer há 3 dias. Nem Vosmecê se descuide dos meus avisos, etc.

Declaro que a firma desta carta e letra da pós-data abaixo é feita pelo próprio punho do Mestre de Campo Inácio Correia Pamplona, cuja carta me remeteu pouco mais ou menos em o meado do mês de abril deste ano; e nesse mesmo dia em que a recebi a fui entregar à Cachoeira ao Excelentíssimo Senhor Visconde General, o que sendo necessário o juro aos Santos Evangelhos. Vila Rica, 15 de junho de 1789.

José Caetano César Manitti


ANEXO 1: Carta-denúncia de Inácio Correia Pamplona ao Visconde de Barbacena — Mendanha, 20-04-1789.

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Visconde

É fatal a minha consternação. Tomara achar uma justa idéia que bem pudesse mostrar a Vossa Excelência o importante peso desta tão árdua, como interessante ação. Ela me faz conspirar para imediatamente representar a Vossa Excelência o caso tão horroroso para as atendíveis circunstâncias tão delicadas, em ofensa ao sagrado respeito, e se o insulto se comprova, aonde está o juramento deste delinqüentes, a fé de leal vassalo e a promessa de darem até a última gota de sangue?

Esta tão relevante ofensa, Excelentíssimo Senhor, faz ódio até às nações mais bárbaras.

Todos devemos pensar que Vossa Excelência é o braço em quem a nossa Soberana descansa nesta Capitania, a quem compete exatissimamente o rigoroso exame da origem e da fonte donde tudo nasce.

Eis aqui as provas: Que no dia 29 de março fui convidado pelo Reverendo Vigário Carlos Correia de Toledo para ir a Semana Santa à dita Vila; e fui à Procissão dos Passos, onde o dito Vigário me disse em conversa que se tratava de um levante, havendo leis, o General deposto, estando falado o Regimento, parte dele; no Rio, um Alferes fazendo séquito; e o Ouvidor que acabou, Gonzaga, metido nisto; e que todos os devedores que devessem à Fazenda Real seriam perdoados. E como era dia de sermão e de noite fomos visitar as igrejas, não deu tempo para mais; no outro dia de madrugada vim-me embora com a promessa de tornar, e para isso deixei logo o meu vestido.

Sucedeu logo vir um homem por nome Manuel Pereira Chaves a comprar-me um pouco de gado e potros, que conduziu para o Rio; e chamando-me de parte, disse-me que sentia não poder vir a Vila Rica para dar parte ao Coronel Afonso Dias do que lhe haviam contado nas Vilas de São João e São José: Que havia levante nas Minas, e que se haviam conluiado todos os cabeças poderosos a este fim; que se achava um oficial no Rio a convocar séquito; e como se dizia que o levante era dos poderosos, ele perguntara se eu estava metido nisso; que lhe responderam que eu não era metido nisso porque era amigo e compadre do Coronel Carlos José e que logo lho havia de passar; e que o Senhor Vice-Rei já sabia tudo.

Eu, turbado deste e já do dito acima, não tardaram muitos instantes que logo não chegasse a este sítio um padre pedindo suas esmolas, e lhe perguntei: “Irmão, tem tirado muito?” Respondeu-me que tudo estava perdido e agora de novo pior, porque Vossa Excelência queria botar a derrama, sendo cada um negro a 8 oitavas; e que o povo dizia ir haver levante e viverem em suas liberdades. O dito deste logo me fez mossa, porque este gira a Capitania; e para maior desordem este sussurro.

Proximamente chega a este sítio o Capitão João Dias da Mota que passava a falar a André Esteves de seus particulares; e querendo deixar passar a força do sol, se apeou; e neste intervalo lhe perguntei se havia notícia que tivesse chegado a nau de guerra; respondeu que não, só sim havia passado para o io um furriel com uma portaria do Ten.-Cel Francisco Antônio Rebelo para se lhe assistir com o necessário, que ele tudo satisfaria; que, de Vila Rica, passara um padre, que ia para a Borda do Campo, que largamente falava no levante e que dormira no Rancho das Lavrinhas do Lourenço, que também este do Rancho assim o publicava.

Vendo eu esta fatal desordem tomei a firme resolução de não ir ter a Semana Santa na Vila como havia prometido. Escrevi ao Vigário que, por conta das minhas enfermidades, me dispensasse; e perguntando eu ao mulato: “que lhe disse o Vigário?” (por que me não respondera a minha carta), disse que a recebera e que se pusera a passear, e a bater com a carta na cabeça, e que dissera ao mulato: “Se te queres ir, em cima daquela mesa está o vestido; leva-o, que a doença de teu senhor é de mentira.”

É o que posso dar parte a Vossa Excelência para pôr as providências, que a sua sábia compreensão sabe, a benefício da nossa Soberana e do bem público; e Deus guarde a Vossa Excelência. Mendanha, aos 20 de abril de 1789.


Inácio Correia Pamplona
Mestre de Campo Regente

quinta-feira, 26 de julho de 2012

CABO FRIO


MACHADO



MARTINHA VS. LUCRÉCIA

Como é fácil imaginar, o tema deste congresso — Machado de Assis e a crítica mundial — seria impensável há pouco tempo, por uma razão muito simples: a crítica mundial não se ocupava do escritor, que era uma glória apenas local. Digamos então que o centenário da morte de Machado está nos servindo de pretexto para assinalar uma situação literária nova, com complicações ainda desconhecidas, sobre a qual vale a pena refletir. O que vou lhes dizer tem a ver com isso.

Como ponto de partida, vamos sublinhar um desacordo que veio se configurando ao longo dos últimos cinqüenta anos. A consagração internacional de Machado de Assis, que deslanchou em meados do século XX com a tradução norte-americana de seus romances, ocorreu sem levar em conta o Brasil. Como foi dito de muitas maneiras por diversos críticos, não é preciso interessar-se pelo Brasil para reconhecer a maestria de Machado. Esta ressalta claramente da comparação com os demais mestres do cânon internacional e dispensa considerações de contexto. Por isso mesmo, parece ser um desserviço confrontar o grande escritor, universal como todos sabem, com compatriotas menores, ou condições históricas remotas e atípicas, que não interessam ao leitor cosmopolita. Um bom exemplo dessa tendência encontra-se no Genius de Harold Bloom, que dedica um capítulo repleto de admiração a Machado dizendo que ele tem muito a ver com Laurence Sterne, e quase nada com seu país.

Ora, no mesmo período, uma parte da crítica brasileira tomou o rumo oposto, formando a contradição que é o meu ponto de partida. A força de Machado de Assis passava a ser explicada a) pelo engenho com que retomou e superou os romancistas cariocas medianos que o precederam; b) pela acuidade notável para os pormenores da vida local — na verdade, pormenores de um fim de mundo; e c) pela invenção progressiva de uma forma de romance em correspondência profunda com a estrutura peculiar da sociedade brasileira. Noutras palavras, a estatura do escritor deve-se a um conjunto de ajustes, aprofundamentos e superações cuja referência é o país.

Tomando distância, vocês estão vendo que a grandeza de Machado suscitou linhas de explicação contrárias, que em algum momento teriam de discutir e competir. Para uma, o segredo do valor literário está na semelhança e na diferença, e sempre na proximidade, com os clássicos do cânon internacional, de cuja órbita o romancista faz parte. Para a outra, o segredo do valor está na fidelidade, digamos na fidelidade crítica e produtiva, às questões da literatura e da sociedade locais, que graças a Machado se beneficiaram de uma extraordinária desprovincianização. A alternativa convida a tomar partido. Mais interessante que escolher um dos lados, contudo, é refletir a respeito deles, que são menos exclusivos do que parecem à primeira vista. O conflito das interpretações existe, mas, em vez de optar entre elas, buscaremos sua articulação.

Repisando um pouco, o denominador comum às leituras é a convicção da qualidade estética da obra, que é estupenda. Para uns, esta se evidencia por meio da comparação em pé de igualdade com a primeira linha dos escritores internacionais, em que Machado figura em posição diferenciada. Para outros, resulta do trabalho artístico sobre o acanhamento peculiar da vida e da literatura de uma sociedade em formação, acanhamento superado e elevado a uma espécie de plenitude. Aqui a originalidade artística se nutre da singularidade de uma experiência histórica precária e recalcada que o romancista fez emergir e soube explorar em grande estilo. Assim, a posição distinta no cânon internacional, que é uma realidade, passa a assinalar o surgimento de um bloco também distinto, relativamente soterrado, do mundo contemporâneo.

Numa resenha consagradora do romance machadiano, que toma em conta a crítica brasileira, Michael Wood formula a questão com sutileza: ainda concedendo que as relações entre os romances e a realidade social existam, será mesmo necessário interessar-se pelo Brasil para admirar a maestria das narrativas? A dúvida, colocada do ângulo do leitor estrangeiro, tem os fatos a seu favor, pois é certo que a reputação internacional de Machado se formou sem apoio na reflexão sobre o Brasil. A resposta à pergunta, portanto, só pode ser negativa: não é preciso interessar-se pelo país para apreciar a qualidade superior da ficção machadiana. Não obstante, é possível também examinar melhor a própria pergunta.

Num livro clássico sobre a originalidade histórica da forma romance, em especial sobre a vocação realista, Ian Watt observa que se trata de um gênero que tende a incluir no corpo da narrativa as informações necessárias a seu entendimento: “a sua convenção formal o obriga a prover as próprias notas de rodapé”. O romance, noutras palavras, tende a apresentar um universo autoexplicativo que dispensa as referências externas, porque as internaliza. Nesse sentido, o leitor cativado pela ficção machadiana, mas desinteressado do Brasil — da experiência histórica chamada Brasil —, talvez não seja uma figura inteiramente real, embora verossímil. Sua falta de apetite para as particularidades do país pode não ser tão verdadeira quanto parece, uma vez que as notícias relevantes no caso estão tramadas na ficção e têm parte no interesse que ela desperta. Espero não ser especioso dizendo que o leitor imaginado ou registrado por Wood se interessa  pelo Brasil sem o saber.

O próprio Machado muita noção do problema, e o tratou de modo surpreendente. É disto que vou falar em seguida: das noções de “universalismo” e “localismo” no contexto de uma ex-colônia.

Comecemos com uma pergunta nacional-ressentida. Por que supor, mesmo de modo tácito, que a experiência brasileira tenha interesse apenas local, ao passo que a experiência francesa, ou inglesa, ou italiana, ou espanhola, ou norte americana, ou grega, ou latina, ou todas essas experiências juntas, seriam universais? Se a pergunta se destina a mascarar nossas inferioridades de ex-colônia, não vale a pena comentá-la. Se o propósito é duvidar da universalidade do universal, ou do localismo do local, ela é um ponto de partida.

A questão tem importância para a arte de Machado de Assis, que a dramatizou numa de suas excelentes crônicas, chamada “O punhal de Martinha”. Trata-se da apresentação, em prosa clássica pastichada, dos destinos paralelos de dois punhais. Um lendário e ilustre, que serviu ao suicídio de Lucrécia, ultrajada por Sexto Tarquínio. Outro comum e brasileiro, por isso mesmo destinado à “ferrugem da obscuridade”, que permitiu a Martinha vingar-se das importunações de certo João Limeira. A moça, diante da insistência deste, previne: “Não se aproxime, que eu lhe furo”. Como ele se aproxima, “ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente”.


Roberto Schwarz
Martinha vs. Lucrécia
em Machado de Assis e a Crítica Internacional
Editora Unesp. São Paulo, SP. 2009.

terça-feira, 24 de julho de 2012

OUTROS TEMPOS...


GR



O obra aberta, segundo Umberto Eco, é aquela que representa “um campo de possibilidades interpretativas, estruturadas de forma a permitir uma série de leituras constantemente variáveis , à maneira de uma constelação de elementos que se prestam a diversas relações recíprocas”. O romance de Guimarães Rosa, obra aberta que é, oferece ângulos de visão mutável a cada tomada e, com respeito à crítica literária, estabelece nela uma consciência, um esforço de autonomia como processo reinventivo, a partir do contexto, seu ponto inicial e laboratório.

Não há caber, contudo, nesse campo de possibilidades a interpretação segundo o binômio forma-conteúdo, a dicotomia desses elementos, com o enredo servindo de pretexto ao estilo, “o estilo pelo estilo”, no entender de mais de um crítico literário. Melhor se situará a obra aberta de Guimarães Rosa dentro da proposição formalista, onde todos os elementos formam parte integral de uma estrutura unificada (Mukarovsky). A estrutura do romance é uma combinação perfeita do material — os elementos lingüísticos, idéias, sentimentos organizados pelo autor — e procedimento, a manipulação desse material para produzir o efeito artístico visado. Assim é no GS a palavra — pesquisada, bombardeada em seu núcleo — para servir ao sertão-mundo; a invenção necessária para transmitir um “mundo visto na sua confusão, sem o amparo da lógica, sem o amparo de uma perspectiva que o distanciasse” (L. Costa Lima). Com efeito o cosmos roseano, dentro do qual decorre a sagarana de Riobaldo — Fausto mineiro, Hamlet caboclo — requer o aprofundamento (manipulação) de uma linguagem nova e/ou inovada (idéia), seiva de que terá de se nutrir até o fim.

A construção dessa obra , vista de uma das perspectivas que oferece, parece obedecer a um plano gigantesco levado a efeito, peça por peça, com minúcia de ourives. ora, a criação pura e simples de palavras — as palavras, sim ou não, em “estado de dicionário” — não excluiria o prosaísmo narrativo. Recorra-se, então, à forma barroca , no que esta representa de negação do linear, no que esta representa de “negação do linear, do definido, do estático e do sem equívoco” (Umberto Eco). A partir desse detalhe e de muitos outros, o plano de estrutura se processa, enriquecido pela minúcia que irá marcá-lo ao longo das seiscentas páginas. As grandes antíteses — Amor-Ódio, Deus-Demônio — serão tratadas à luz de figuras características da época barroca, emergindo de uma verdade complexa e apenas sugerida. As gradações amorosas por que passa Riobaldo, por exemplo, assiste-as uma linguagem poética, como recurso para quebrar a simplicidade que poderia deixá-las despercebidas ao leitor. Aparecem, para tal fim, os sufixos hipocorísticos, as violências gramaticais, ritmos que acendem a audiovisualidade do leitor.

O ritmo flui, muitas vezes, para amenizar a obscuridade vocabular. Ressaltam e prevalecem, quando isso ocorre, as associações fundamentais, a organização nova dos elementos de comunicação. Os sons (des) encadeados, encravados no discurso com trabalho de ourivesaria, fornecem-lhe — em meio a outros toques de estilo — um elemento mágico que o arremessa à dupla extensão da prosa e da poesia (“Não se perturbe o leitor com o enquadramento indistinto de João Guimarães Rosa nas esferas da poesia e da prosa, pois [...] a sua textura verbal cobre a dupla extensão dessas categorias. Não foi por acaso haver a ele cabido a primazia de gerar uma nova forma de expressão literária, onde se fundem, de modo orgânico a prosa e o poema. À falta de um termo corrente, fomos forçados a cunhar o vocábulo prosoema, para nomeá-la.” Oswaldino Marques, in “Apontameentos Roseanos” (SL de O Estado de São Paulo, 30-11-68). Javier Domingo ouviu ali um “estraño ritmo  — una especie de sístole-diástole, un continuo síncope, un constante par saltos a la luz, una sucession de espasmos” (“João Guimarães Rosa y la Alegría”, in Revista do Livro nº 17, março de 1960) observação mais pertinente a uma composição poética.

Observada desse prisma, assim pode parecer a partitura roseana: uma série de sons de que emerge o significado (René Wellek e Austin Warren, Theory of Literature); ou, mais amplamente, um encadeamento verbivocovisual que deixa ao leitor/visor/autor abertura e aprofundamento de significados.

Guimarães Rosa, na ânsia de fugir ao usaico, transfigura todas as formas estereotipadas, do sinal diacrítico à estrutura sintática. Seu romance escapa ao romanesco — busca no mundo mais prosaico que descreve precisamente as áreas e motivos envoltos num clarão poético (Kayser, Análise e Interpretação da Obra Literária) — para se aproximar da narrativa de tom épico, elevado. Contudo, a epopéia reveste cenas e propósitos de romance de cavalaria, dois pólos unidos insolitamente no tempo e no espaço do Sertão. A fusão temática — A fusão temática — à maneira das palavras portmanteau que usa — resulta feliz e concorre para a excelência da obra.

Já se afirmou que a crise atual do romance deve-se ao sentimento da insuficiência da visão privada do mundo.  Também, acrescente-se, à repetição sem variantes em torno das formas de comunicação. Se, contudo, um fato isolado na conjuntura atual não concorre para a revivificação do romance, Guimarães Rosa terá pelo menos um ser estudado fora dessa crise. O Grande Sertão, ao tempo em que destrói o nonsense na ficção, fá-lo validamente porque aponta uma solução e um caminho em si mesmo. Ou talvez um fim, a se compreender o fenômeno do “esgotamento, pelo artista criador, das possibilidades de diversificações e nuanceamento do arsenal lingüístico de que dispõe, reduzindo ao mínimo a redundância e elevando ao máximo o número de opções sintático-semânticas. Gigante solitário no meio da literatura de uma época, como o autor de Ulisses e Finnegans Wake, Guimarães Rosa reivindica a si próprio, a cada livro, distância e densidade. E está exigindo o mesmo da literatura brasileira, que reduziu, como sentenciou Augusto de Campos, a “estado de subliteratura”.

A força de Guimarães Rosa é um segredo de estratégia literária, que o artista planifica como debruçado sobre um mapa. Imposta a disciplina, manu militari, vão sendo previstos todos os efeitos que o livro suscitará enquanto significação e comunicação. No trato fraseológico, por exemplo, o processo metonímico, segundo o tema de Jakobson, é utilizado de modo a apreender o maior grau informacional no mínimo de texto. Certas palavras/criações lançam isoladamente continentes de percepção. Por vez, construções de períodos transbordam como expletivos, através do processo icônico (representações imitativas). Aqui, o romancista, como Joyce, “é levado à microscopia pela macroscopia, enfatizando o detalhe a ponto de conter todo um cosmos metafórico numa só palavra” (Haroldo de Campos, in “A Temperatura Informacional do Texto”).

Faz parte desse planejamento a guerra ao lugar-comum, à frase-feita, ao clichê — que não serão evitados, como se verá, mas recondicionados inventivamente. Aos trechos citados por M. Cavalcanti Proença e Maria Luísa Ramos (“Trilhas no Grande Sertão” e “O Elemento Poético em Grande Sertão: Veredas” em Ciclo de Conferências sobre Guimarães Rosa”), poderíamos acrescentar outros, de igual beleza e força reanimadora:

“A lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume”  substitui a “lamparina deitava sombras na parede”, clichê abonado por levas e levas de narradores. Nenhuma alusão à sombra que é mostrada por associação de idéias.

Nu da cintura para os queixos”. Em vez do gasto “nu da cintura para cima”.

A descrição de uns “longos cabelos negros” armadilha que pode levar a construções à Alencar, recebe nova fórmula, a forma roseana, que nos dá graus de surpresa: “Os cabelos enormes, pretos, como por si a grossura dum bicho”.

Às formas de uso corrente no populacho — “não sabe de coisa nenhuma”, ou “não sabe coisíssima nenhuma”, contrapõe-se a de Guimarães Rosa: “Não sabiam de nada coisíssima”, simples inversão que cria a novidade.

Neste outro exemplo, o artigo definido — somente — modifica uma construção corroída pelo uso: “E o pobre de mim, minha tristeza me atrasava”.

Assim, colocado no centro de um sistema determinado — a conjuntura literária brasileira — Guimarães Rosa, podemos afirmar com Umberto Eco, é o artista verdadeiro que não pára de transgredir as leis, instaurando novas possibilidades formais e novas exigências da sensibilidade.


Nei Leandro de Castro
Universo ee Vocabulário do
Grande Sertão
José Olympio. Rio de Janeiro.
1970.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

RAPOSOS


PANEM NOSTRUM



Avistei-o através da treva em volta,
rumo ao longínquo e ao próximo igualmente
com seu galope e sua espada, e a escolta
de cabelo incendiado, dele rente.

Tudo foi hoje. O líquen cobre a mente,
e o pórtico vedado ante a revolta.
A corrosão dos olhos inda sente
o clamor retumbando à última volta.

Sagitários de flechas interiores
urge dizer os nomes luminares:
Lusbel, Lusbem, Lussom, Lusfer, Lusguia.

Errante comunhão de encantadores
possuem filtros, andam pelos ares
fazem das aflições sua alegria.


Jorge de Lima
Livro de Sonetos

domingo, 22 de julho de 2012

NIKON


A BÍBLIA SAGRADA



Mas Jacó permaneceu na terra em que seu pai tinha morado, na terra de Canaã.

Eis a história de Jacó.

José tinha dezessete anos. Ele apascentava o rebanho com seus irmãos, — era jovem, — com os filhos de Bala e os filhos de Zelfa, mulheres de seu pai, e José contou a seu pai o mal que deles se dizia.

Israel amava mais a José do que a todos os seus outros filhos, porque ele era o filho de sua velhice, e mandou fazer-lhe uma túnica adornada. Seus irmãos viram que seu pai o amava mais do que a todos os seus outros filhos e odiaram-no e se tornaram incapazes de lhe falar amigavelmente.

Ora, José teve um sonho e o contou a seus irmãos, que o odiaram mais ainda. Ele lhes disse: “Ouvi o sonho que eu tive: pareceu-me que estávamos atando feixes nos campos, e eis que o meu feixe se levantou e ficou de pé, e vossos feixes o rodearam e se prostraram diante de meu feixe.” Seus irmãos lhe responderam: “Queres acaso governar-nos como rei ou dominar-nos como senhor?” E eles o odiaram ainda mais, por causa de seus sonhos e de suas intenções. Ele teve ainda outro sonho, que contou a seus irmãos. Ele disse: “Tive ainda outro sonho: pareceu-me que o sol, a lua e onze estrelas  se prostravam diante de mim.” Ele narrou isso a seu pai e seus irmãos, mas seu pai o repreendeu, dizendo: “Que sonho é este que tiveste? Iríamos nós então, eu, tua mãe e teus irmãos, prostrar-nos por terra diante de ti?” Seus irmãos ficaram com ciúmes dele, mas seu pai conservou o fato na memória.


Gn 37,  1-11

sábado, 21 de julho de 2012

ENTRE RIOS DE MINAS


OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA   (cont.)

Carlos Haroldo Porto Carreiro de Miranda
Carlos Lobato Pfeifer
Carlos Luiz de Andrade
Carlos Matheus
Carlos Mauro Cabral
Carlos Maximiliano Fayet
Carlos Murilo Felício dos Santos
Carlos Pedro Nascimento
Carlos Roberto Velho Cirne de Lima
Carlos Rodrigues Nogueira
Carlos Schmidt
Carlos Soares Roupa
Carolina Victória Ceylão Pereira
Cecyl Celso de Castro Medeiros
Celany Pacheco dos Santos
Célio Gonçalves de Aguiar
Celso Gabriel de Rezende Passos
Celso Moreira Guerra
Celso Moreira Guerra
Celso Teixeira
Celson Diniz Pereira
César Alves Nogueira
César Pires Chaves
César Prates
Chopin Tavares de Lima
Chrysler da Cruz Procópio
Cid de Almeida Franco
Cláudio Botejara Júnior
Cláudio Gomes Ramalho
Claudionor David de Sá Barreto
Claudionor dos Santos Caravellas
Claudionor Soares de Senna
Cleantho da Câmara Torres
Cleanto Rodrigues de Siqueira
Clementino Fiandes Tupinambá
Cleomir Gonçalves dos Santos
Cleonice Pinheiro do Amaral Fontoura
Clodomir Alcoforado Leite
Clóvios Melo de Oliveira
Clóvis Ferreira Tavares
Clóvis Jatobá da Costa Lima
Consuelo de Toledo e Silva
Cory Terra
Cyro Fernandes
Daniel de Mendonça Sarmento
Daniel Israel
Darci Fontenele de Castro
Darcy D’Ávila Dornelles
Darcy Domingues de Mello
Darcy Moreira de Carvalho

A SANÇÃO SOFRIDA PELOS PROFESSORES




[...] A sanção sofrida pelos professores e pesquisadores punidos pelo AI-5 tem uma característica profundamente injusta e diabolicamente cruel: ela é total e perpétua.

É total porque os aposentados pelo nefando Ato foram, pelo Ato Complementar nº 77 de 22 de outubro de 1969, proibidos de, a qualquer título, exercer qualquer atividade em instituições de ensino ou pesquisa oficiais ou que recebessem qualquer subvenção oficial, isto é, praticamente todos os estabelecimentos dessa natureza no Brasil.

Fecharam-se todas as portas às suas vítimas.

Esse ato complementar, que é uma obra prima de maldade, teve sua legitimidade contestada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, baseada em bem fundamentado parecer jurídico, mas foi amplamente aplicado em todas as Universidades brasileiras.

A sanção é perpétua porque não teve sua vigência limitada, ao contrário da suspensão dos direitos políticos que foi restrita a 10 anos.

Em conseqüência vemos diariamente políticos cassados voltarem à atividade partidária e mesmo concorrerem a eleições, muitos deles conquistando mandatos populares.

Atualmente no Brasil não há mais prisões perpétuas, extinguiu-se a pena de morte, aboliu-se o banimento.

Mas os professores e os pesquisadores científicos continuam impedidos de exercer suas atividades, em claro desrespeito a um dos mais sagrados direitos humanos: o direito ao trabalho.

A singularidade desta pena cria situações extremamente anômalas como a do eminente Professor Fernando Henrique Cardoso, que, tendo sido aposentado como docente da Universidade de São Paulo e tido seus direitos políticos cassados, foi eleito a 15 de novembro suplente do Senador Franco Montoro. Poderá, então, se convocado para exercer a senatoria falar a todo o povo brasileiro da mais alta tribuna, o Senado Federal, mas continuará impedido de lecionar a meia dúzia de alunos dentro de uma sala de aula.

O mesmo poderá acontecer ao nosso querido Professor Edgar de Godói da Mata-Machado, que recentemente filiado ao Movimento Democrático Brasileiro, se o quiser, conquistará sem dúvida, na primeira eleição, um mandato eletivo, mas permanecerá afastado de sua Faculdade de Direito, que tanto honrou, caso persista a situação atual.

Cabe aqui uma pergunta: serão os professores tão terrivelmente mais perigosos à segurança nacional que os políticos?

A inexplicável e extrema severidade, digamos mesmo crueldade, das sanções impostas aos intelectuais fez com que, em grande número, buscassem em países estrangeiros a oportunidade de sobrevivência que lhes era negada no Brasil e hoje ocupam cargos de grande responsabilidade em instituições de importância mundial, como o Instituto Pasteur de Paris, O Instituto Rockefeller de Nova York, a Organização Mundial de Saúde e várias universidades da Europa e da América.

Apesar disso, muitos deles, senão todos, desejam ardentemente regressar à Pátria, mas como fazê-lo se aqui lhes são negados os simples meios de subsistência e mesmo o indispensável passaporte?

Não seriam esses homens úteis ao Brasil, como o são a outros países? Ou será que a Revolução, como a sua congênere francesa, não precisa de sábios? [...]


[...] Embora tenha sido para mim motivo de viva alegria e imenso conforto, não me causou qualquer surpresa a atitude do Instituto de Ciências Biológicas , através da sua Congregação, conferindo-me o título de Professor Emérito, o mais alto que pode almejar um velho professor universitário aposentado.

Não me surpreendeu porque conheço bem meus colegas. Deles tenho recebido desde os torvos dias de setembro de 1969 as mais claras provas de solidariedade, ainda em plena vigência do regime de denúncias, delações, vinganças e perseguições, movidas pelo ódio e pela inveja, que caracterizou aquele negro período de nossa história, quando os punidos pelo sistema eram considerados tabu, mais perigosos que os leprosos na Idade Média ou os judeus durante o terror nazista e cuja simples aproximação poderia constituir grave risco. [...]     


[...] Tive a suprema ventura de participar da luta vitoriosa contra o terror nazi-fascista nos campos de batalha da Itália, junto com os meus companheiros  da Força Expedicionária Brasileira [...]


Prof. Amílcar Vianna Martins
Pela Democracia, por uma Sociedade Humana
Discurso por ocasião do recebimento do título de
Professor Emérito da UFMG
em UFMG Resistência e Protesto
Vega. Belo Horizonte. 1979.  

sexta-feira, 20 de julho de 2012

PETRÓPOLIS


OTELO E SANT'IAGO



Capítulo Primeiro
DO TÍTULO

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

— Continue — disse eu, acordando.

— Já acabei — murmurou ele.

—São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte, entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam de meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”. — Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixa essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.” — Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.”

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.


Machado de Assis
Dom Casmurro

quinta-feira, 19 de julho de 2012

BELO HORIZONTE


EMANUEL E FEDERICO



Ia haver a festa. Naquele lugar — nem fazenda, só um reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo. Mas, para os poucos moradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. Na Samarra.


Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile (sete novelas)
1º volume.
João Guimarães Rosa.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.