terça-feira, 24 de julho de 2012

GR



O obra aberta, segundo Umberto Eco, é aquela que representa “um campo de possibilidades interpretativas, estruturadas de forma a permitir uma série de leituras constantemente variáveis , à maneira de uma constelação de elementos que se prestam a diversas relações recíprocas”. O romance de Guimarães Rosa, obra aberta que é, oferece ângulos de visão mutável a cada tomada e, com respeito à crítica literária, estabelece nela uma consciência, um esforço de autonomia como processo reinventivo, a partir do contexto, seu ponto inicial e laboratório.

Não há caber, contudo, nesse campo de possibilidades a interpretação segundo o binômio forma-conteúdo, a dicotomia desses elementos, com o enredo servindo de pretexto ao estilo, “o estilo pelo estilo”, no entender de mais de um crítico literário. Melhor se situará a obra aberta de Guimarães Rosa dentro da proposição formalista, onde todos os elementos formam parte integral de uma estrutura unificada (Mukarovsky). A estrutura do romance é uma combinação perfeita do material — os elementos lingüísticos, idéias, sentimentos organizados pelo autor — e procedimento, a manipulação desse material para produzir o efeito artístico visado. Assim é no GS a palavra — pesquisada, bombardeada em seu núcleo — para servir ao sertão-mundo; a invenção necessária para transmitir um “mundo visto na sua confusão, sem o amparo da lógica, sem o amparo de uma perspectiva que o distanciasse” (L. Costa Lima). Com efeito o cosmos roseano, dentro do qual decorre a sagarana de Riobaldo — Fausto mineiro, Hamlet caboclo — requer o aprofundamento (manipulação) de uma linguagem nova e/ou inovada (idéia), seiva de que terá de se nutrir até o fim.

A construção dessa obra , vista de uma das perspectivas que oferece, parece obedecer a um plano gigantesco levado a efeito, peça por peça, com minúcia de ourives. ora, a criação pura e simples de palavras — as palavras, sim ou não, em “estado de dicionário” — não excluiria o prosaísmo narrativo. Recorra-se, então, à forma barroca , no que esta representa de negação do linear, no que esta representa de “negação do linear, do definido, do estático e do sem equívoco” (Umberto Eco). A partir desse detalhe e de muitos outros, o plano de estrutura se processa, enriquecido pela minúcia que irá marcá-lo ao longo das seiscentas páginas. As grandes antíteses — Amor-Ódio, Deus-Demônio — serão tratadas à luz de figuras características da época barroca, emergindo de uma verdade complexa e apenas sugerida. As gradações amorosas por que passa Riobaldo, por exemplo, assiste-as uma linguagem poética, como recurso para quebrar a simplicidade que poderia deixá-las despercebidas ao leitor. Aparecem, para tal fim, os sufixos hipocorísticos, as violências gramaticais, ritmos que acendem a audiovisualidade do leitor.

O ritmo flui, muitas vezes, para amenizar a obscuridade vocabular. Ressaltam e prevalecem, quando isso ocorre, as associações fundamentais, a organização nova dos elementos de comunicação. Os sons (des) encadeados, encravados no discurso com trabalho de ourivesaria, fornecem-lhe — em meio a outros toques de estilo — um elemento mágico que o arremessa à dupla extensão da prosa e da poesia (“Não se perturbe o leitor com o enquadramento indistinto de João Guimarães Rosa nas esferas da poesia e da prosa, pois [...] a sua textura verbal cobre a dupla extensão dessas categorias. Não foi por acaso haver a ele cabido a primazia de gerar uma nova forma de expressão literária, onde se fundem, de modo orgânico a prosa e o poema. À falta de um termo corrente, fomos forçados a cunhar o vocábulo prosoema, para nomeá-la.” Oswaldino Marques, in “Apontameentos Roseanos” (SL de O Estado de São Paulo, 30-11-68). Javier Domingo ouviu ali um “estraño ritmo  — una especie de sístole-diástole, un continuo síncope, un constante par saltos a la luz, una sucession de espasmos” (“João Guimarães Rosa y la Alegría”, in Revista do Livro nº 17, março de 1960) observação mais pertinente a uma composição poética.

Observada desse prisma, assim pode parecer a partitura roseana: uma série de sons de que emerge o significado (René Wellek e Austin Warren, Theory of Literature); ou, mais amplamente, um encadeamento verbivocovisual que deixa ao leitor/visor/autor abertura e aprofundamento de significados.

Guimarães Rosa, na ânsia de fugir ao usaico, transfigura todas as formas estereotipadas, do sinal diacrítico à estrutura sintática. Seu romance escapa ao romanesco — busca no mundo mais prosaico que descreve precisamente as áreas e motivos envoltos num clarão poético (Kayser, Análise e Interpretação da Obra Literária) — para se aproximar da narrativa de tom épico, elevado. Contudo, a epopéia reveste cenas e propósitos de romance de cavalaria, dois pólos unidos insolitamente no tempo e no espaço do Sertão. A fusão temática — A fusão temática — à maneira das palavras portmanteau que usa — resulta feliz e concorre para a excelência da obra.

Já se afirmou que a crise atual do romance deve-se ao sentimento da insuficiência da visão privada do mundo.  Também, acrescente-se, à repetição sem variantes em torno das formas de comunicação. Se, contudo, um fato isolado na conjuntura atual não concorre para a revivificação do romance, Guimarães Rosa terá pelo menos um ser estudado fora dessa crise. O Grande Sertão, ao tempo em que destrói o nonsense na ficção, fá-lo validamente porque aponta uma solução e um caminho em si mesmo. Ou talvez um fim, a se compreender o fenômeno do “esgotamento, pelo artista criador, das possibilidades de diversificações e nuanceamento do arsenal lingüístico de que dispõe, reduzindo ao mínimo a redundância e elevando ao máximo o número de opções sintático-semânticas. Gigante solitário no meio da literatura de uma época, como o autor de Ulisses e Finnegans Wake, Guimarães Rosa reivindica a si próprio, a cada livro, distância e densidade. E está exigindo o mesmo da literatura brasileira, que reduziu, como sentenciou Augusto de Campos, a “estado de subliteratura”.

A força de Guimarães Rosa é um segredo de estratégia literária, que o artista planifica como debruçado sobre um mapa. Imposta a disciplina, manu militari, vão sendo previstos todos os efeitos que o livro suscitará enquanto significação e comunicação. No trato fraseológico, por exemplo, o processo metonímico, segundo o tema de Jakobson, é utilizado de modo a apreender o maior grau informacional no mínimo de texto. Certas palavras/criações lançam isoladamente continentes de percepção. Por vez, construções de períodos transbordam como expletivos, através do processo icônico (representações imitativas). Aqui, o romancista, como Joyce, “é levado à microscopia pela macroscopia, enfatizando o detalhe a ponto de conter todo um cosmos metafórico numa só palavra” (Haroldo de Campos, in “A Temperatura Informacional do Texto”).

Faz parte desse planejamento a guerra ao lugar-comum, à frase-feita, ao clichê — que não serão evitados, como se verá, mas recondicionados inventivamente. Aos trechos citados por M. Cavalcanti Proença e Maria Luísa Ramos (“Trilhas no Grande Sertão” e “O Elemento Poético em Grande Sertão: Veredas” em Ciclo de Conferências sobre Guimarães Rosa”), poderíamos acrescentar outros, de igual beleza e força reanimadora:

“A lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume”  substitui a “lamparina deitava sombras na parede”, clichê abonado por levas e levas de narradores. Nenhuma alusão à sombra que é mostrada por associação de idéias.

Nu da cintura para os queixos”. Em vez do gasto “nu da cintura para cima”.

A descrição de uns “longos cabelos negros” armadilha que pode levar a construções à Alencar, recebe nova fórmula, a forma roseana, que nos dá graus de surpresa: “Os cabelos enormes, pretos, como por si a grossura dum bicho”.

Às formas de uso corrente no populacho — “não sabe de coisa nenhuma”, ou “não sabe coisíssima nenhuma”, contrapõe-se a de Guimarães Rosa: “Não sabiam de nada coisíssima”, simples inversão que cria a novidade.

Neste outro exemplo, o artigo definido — somente — modifica uma construção corroída pelo uso: “E o pobre de mim, minha tristeza me atrasava”.

Assim, colocado no centro de um sistema determinado — a conjuntura literária brasileira — Guimarães Rosa, podemos afirmar com Umberto Eco, é o artista verdadeiro que não pára de transgredir as leis, instaurando novas possibilidades formais e novas exigências da sensibilidade.


Nei Leandro de Castro
Universo ee Vocabulário do
Grande Sertão
José Olympio. Rio de Janeiro.
1970.