O
obra aberta, segundo Umberto Eco, é aquela que representa “um campo de
possibilidades interpretativas, estruturadas de forma a permitir uma série de
leituras constantemente variáveis , à maneira de uma constelação de elementos
que se prestam a diversas relações recíprocas”. O romance de Guimarães Rosa,
obra aberta que é, oferece ângulos de visão mutável a cada tomada e, com
respeito à crítica literária, estabelece nela uma consciência, um esforço de
autonomia como processo reinventivo, a partir do contexto, seu ponto inicial e
laboratório.
Não
há caber, contudo, nesse campo de possibilidades a interpretação segundo o
binômio forma-conteúdo, a dicotomia desses elementos, com o enredo servindo de
pretexto ao estilo, “o estilo pelo estilo”, no entender de mais de um crítico
literário. Melhor se situará a obra aberta de Guimarães Rosa dentro da
proposição formalista, onde todos os
elementos formam parte integral de uma estrutura unificada (Mukarovsky). A
estrutura do romance é uma combinação perfeita do material — os elementos lingüísticos, idéias, sentimentos
organizados pelo autor — e procedimento,
a manipulação desse material para produzir o efeito artístico visado. Assim é
no GS a palavra — pesquisada, bombardeada em seu núcleo — para servir ao
sertão-mundo; a invenção necessária para transmitir um “mundo visto na sua
confusão, sem o amparo da lógica, sem o amparo de uma perspectiva que o
distanciasse” (L. Costa Lima). Com efeito o cosmos roseano, dentro do qual
decorre a sagarana de Riobaldo — Fausto mineiro, Hamlet caboclo — requer o
aprofundamento (manipulação) de uma linguagem nova e/ou inovada (idéia), seiva
de que terá de se nutrir até o fim.
A
construção dessa obra , vista de uma das perspectivas que oferece, parece
obedecer a um plano gigantesco levado a efeito, peça por peça, com minúcia de
ourives. ora, a criação pura e simples de palavras — as palavras, sim ou não,
em “estado de dicionário” — não excluiria o prosaísmo narrativo. Recorra-se,
então, à forma barroca , no que esta representa de negação do linear, no que
esta representa de “negação do linear, do definido, do estático e do sem
equívoco” (Umberto Eco). A partir desse detalhe e de muitos outros, o plano de
estrutura se processa, enriquecido pela minúcia que irá marcá-lo ao longo das
seiscentas páginas. As grandes antíteses — Amor-Ódio, Deus-Demônio — serão
tratadas à luz de figuras características da época barroca, emergindo de uma
verdade complexa e apenas sugerida. As gradações amorosas por que passa Riobaldo,
por exemplo, assiste-as uma linguagem poética, como recurso para quebrar a
simplicidade que poderia deixá-las despercebidas ao leitor. Aparecem, para tal
fim, os sufixos hipocorísticos, as violências gramaticais, ritmos que acendem a
audiovisualidade do leitor.
O
ritmo flui, muitas vezes, para amenizar a obscuridade vocabular. Ressaltam e
prevalecem, quando isso ocorre, as associações fundamentais, a organização nova
dos elementos de comunicação. Os sons (des) encadeados, encravados no discurso
com trabalho de ourivesaria, fornecem-lhe — em meio a outros toques de estilo —
um elemento mágico que o arremessa à dupla extensão da prosa e da poesia (“Não
se perturbe o leitor com o enquadramento indistinto de João Guimarães Rosa nas
esferas da poesia e da prosa, pois [...] a sua textura verbal cobre a dupla
extensão dessas categorias. Não foi por acaso haver a ele cabido a primazia de
gerar uma nova forma de expressão literária, onde se fundem, de modo orgânico a
prosa e o poema. À falta de um termo corrente, fomos forçados a cunhar o
vocábulo prosoema, para nomeá-la.”
Oswaldino Marques, in “Apontameentos
Roseanos” (SL de O Estado de São Paulo,
30-11-68). Javier Domingo ouviu ali um “estraño
ritmo — una especie de sístole-diástole,
un continuo síncope, un constante par saltos a la luz, una sucession de
espasmos” (“João Guimarães Rosa y la Alegría ”, in Revista
do Livro nº 17, março de 1960) observação mais pertinente a uma composição
poética.
Observada
desse prisma, assim pode parecer a partitura roseana: uma série de sons de que
emerge o significado (René Wellek e Austin Warren, Theory of Literature); ou, mais amplamente, um encadeamento
verbivocovisual que deixa ao leitor/visor/autor abertura e aprofundamento de
significados.
Guimarães
Rosa, na ânsia de fugir ao usaico, transfigura todas as formas estereotipadas,
do sinal diacrítico à estrutura sintática. Seu romance escapa ao romanesco — busca no mundo mais prosaico
que descreve precisamente as áreas e motivos envoltos num clarão poético
(Kayser, Análise e Interpretação da Obra
Literária) — para se aproximar da narrativa de tom épico, elevado. Contudo,
a epopéia reveste cenas e propósitos de romance de cavalaria, dois pólos unidos
insolitamente no tempo e no espaço do Sertão. A fusão temática — A fusão temática
— à maneira das palavras portmanteau
que usa — resulta feliz e concorre
para a excelência da obra.
Já
se afirmou que a crise atual do romance deve-se ao sentimento da insuficiência
da visão privada do mundo. Também,
acrescente-se, à repetição sem variantes em torno das formas de comunicação.
Se, contudo, um fato isolado na conjuntura atual não concorre para a
revivificação do romance, Guimarães Rosa terá pelo menos um ser estudado fora
dessa crise. O Grande Sertão, ao
tempo em que destrói o nonsense na
ficção, fá-lo validamente porque aponta uma solução e um caminho em si mesmo.
Ou talvez um fim, a se compreender o fenômeno do “esgotamento, pelo artista
criador, das possibilidades de diversificações e nuanceamento do arsenal
lingüístico de que dispõe, reduzindo ao mínimo a redundância e elevando ao
máximo o número de opções sintático-semânticas. Gigante solitário no meio da
literatura de uma época, como o autor de Ulisses
e Finnegans Wake, Guimarães Rosa
reivindica a si próprio, a cada livro, distância e densidade. E está exigindo o
mesmo da literatura brasileira, que reduziu, como sentenciou Augusto de Campos,
a “estado de subliteratura”.
A
força de Guimarães Rosa é um segredo de estratégia literária, que o artista
planifica como debruçado sobre um mapa. Imposta a disciplina, manu militari, vão sendo previstos todos
os efeitos que o livro suscitará enquanto significação e comunicação. No trato
fraseológico, por exemplo, o processo metonímico, segundo o tema de Jakobson, é
utilizado de modo a apreender o maior grau informacional no mínimo de texto.
Certas palavras/criações lançam isoladamente continentes de percepção. Por vez,
construções de períodos transbordam como expletivos, através do processo
icônico (representações imitativas). Aqui, o romancista, como Joyce, “é levado
à microscopia pela macroscopia, enfatizando o detalhe a ponto de conter todo um
cosmos metafórico numa só palavra” (Haroldo de Campos, in “A Temperatura
Informacional do Texto”).
Faz
parte desse planejamento a guerra ao lugar-comum, à frase-feita, ao clichê —
que não serão evitados, como se verá, mas recondicionados inventivamente. Aos
trechos citados por M. Cavalcanti Proença e Maria Luísa Ramos (“Trilhas no
Grande Sertão” e “O Elemento Poético em Grande Sertão :
Veredas” em Ciclo de Conferências sobre
Guimarães Rosa”), poderíamos acrescentar outros, de igual beleza e força
reanimadora:
“A lamparina arriava na parede, se
trespunha diversa, na imponência, pojava volume” substitui a
“lamparina deitava sombras na parede”, clichê abonado por levas e levas de
narradores. Nenhuma alusão à sombra
que é mostrada por associação de idéias.
“Nu da cintura para os queixos”. Em vez
do gasto “nu da cintura para cima”.
A
descrição de uns “longos cabelos negros” armadilha que pode levar a construções
à Alencar, recebe nova fórmula, a forma roseana, que nos dá graus de surpresa:
“Os cabelos enormes, pretos, como por si
a grossura dum bicho”.
Às
formas de uso corrente no populacho — “não sabe de coisa nenhuma”, ou “não sabe
coisíssima nenhuma”, contrapõe-se a de Guimarães Rosa: “Não sabiam de nada coisíssima”, simples inversão que cria a
novidade.
Neste
outro exemplo, o artigo definido — somente — modifica uma construção corroída
pelo uso: “E o pobre de mim, minha tristeza me atrasava”.
Assim,
colocado no centro de um sistema determinado — a conjuntura literária
brasileira — Guimarães Rosa, podemos afirmar com Umberto Eco, é o artista
verdadeiro que não pára de transgredir as leis, instaurando novas
possibilidades formais e novas exigências da sensibilidade.
Nei
Leandro de Castro
Universo
ee Vocabulário do
Grande
Sertão
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1970.