quinta-feira, 26 de julho de 2012

MACHADO



MARTINHA VS. LUCRÉCIA

Como é fácil imaginar, o tema deste congresso — Machado de Assis e a crítica mundial — seria impensável há pouco tempo, por uma razão muito simples: a crítica mundial não se ocupava do escritor, que era uma glória apenas local. Digamos então que o centenário da morte de Machado está nos servindo de pretexto para assinalar uma situação literária nova, com complicações ainda desconhecidas, sobre a qual vale a pena refletir. O que vou lhes dizer tem a ver com isso.

Como ponto de partida, vamos sublinhar um desacordo que veio se configurando ao longo dos últimos cinqüenta anos. A consagração internacional de Machado de Assis, que deslanchou em meados do século XX com a tradução norte-americana de seus romances, ocorreu sem levar em conta o Brasil. Como foi dito de muitas maneiras por diversos críticos, não é preciso interessar-se pelo Brasil para reconhecer a maestria de Machado. Esta ressalta claramente da comparação com os demais mestres do cânon internacional e dispensa considerações de contexto. Por isso mesmo, parece ser um desserviço confrontar o grande escritor, universal como todos sabem, com compatriotas menores, ou condições históricas remotas e atípicas, que não interessam ao leitor cosmopolita. Um bom exemplo dessa tendência encontra-se no Genius de Harold Bloom, que dedica um capítulo repleto de admiração a Machado dizendo que ele tem muito a ver com Laurence Sterne, e quase nada com seu país.

Ora, no mesmo período, uma parte da crítica brasileira tomou o rumo oposto, formando a contradição que é o meu ponto de partida. A força de Machado de Assis passava a ser explicada a) pelo engenho com que retomou e superou os romancistas cariocas medianos que o precederam; b) pela acuidade notável para os pormenores da vida local — na verdade, pormenores de um fim de mundo; e c) pela invenção progressiva de uma forma de romance em correspondência profunda com a estrutura peculiar da sociedade brasileira. Noutras palavras, a estatura do escritor deve-se a um conjunto de ajustes, aprofundamentos e superações cuja referência é o país.

Tomando distância, vocês estão vendo que a grandeza de Machado suscitou linhas de explicação contrárias, que em algum momento teriam de discutir e competir. Para uma, o segredo do valor literário está na semelhança e na diferença, e sempre na proximidade, com os clássicos do cânon internacional, de cuja órbita o romancista faz parte. Para a outra, o segredo do valor está na fidelidade, digamos na fidelidade crítica e produtiva, às questões da literatura e da sociedade locais, que graças a Machado se beneficiaram de uma extraordinária desprovincianização. A alternativa convida a tomar partido. Mais interessante que escolher um dos lados, contudo, é refletir a respeito deles, que são menos exclusivos do que parecem à primeira vista. O conflito das interpretações existe, mas, em vez de optar entre elas, buscaremos sua articulação.

Repisando um pouco, o denominador comum às leituras é a convicção da qualidade estética da obra, que é estupenda. Para uns, esta se evidencia por meio da comparação em pé de igualdade com a primeira linha dos escritores internacionais, em que Machado figura em posição diferenciada. Para outros, resulta do trabalho artístico sobre o acanhamento peculiar da vida e da literatura de uma sociedade em formação, acanhamento superado e elevado a uma espécie de plenitude. Aqui a originalidade artística se nutre da singularidade de uma experiência histórica precária e recalcada que o romancista fez emergir e soube explorar em grande estilo. Assim, a posição distinta no cânon internacional, que é uma realidade, passa a assinalar o surgimento de um bloco também distinto, relativamente soterrado, do mundo contemporâneo.

Numa resenha consagradora do romance machadiano, que toma em conta a crítica brasileira, Michael Wood formula a questão com sutileza: ainda concedendo que as relações entre os romances e a realidade social existam, será mesmo necessário interessar-se pelo Brasil para admirar a maestria das narrativas? A dúvida, colocada do ângulo do leitor estrangeiro, tem os fatos a seu favor, pois é certo que a reputação internacional de Machado se formou sem apoio na reflexão sobre o Brasil. A resposta à pergunta, portanto, só pode ser negativa: não é preciso interessar-se pelo país para apreciar a qualidade superior da ficção machadiana. Não obstante, é possível também examinar melhor a própria pergunta.

Num livro clássico sobre a originalidade histórica da forma romance, em especial sobre a vocação realista, Ian Watt observa que se trata de um gênero que tende a incluir no corpo da narrativa as informações necessárias a seu entendimento: “a sua convenção formal o obriga a prover as próprias notas de rodapé”. O romance, noutras palavras, tende a apresentar um universo autoexplicativo que dispensa as referências externas, porque as internaliza. Nesse sentido, o leitor cativado pela ficção machadiana, mas desinteressado do Brasil — da experiência histórica chamada Brasil —, talvez não seja uma figura inteiramente real, embora verossímil. Sua falta de apetite para as particularidades do país pode não ser tão verdadeira quanto parece, uma vez que as notícias relevantes no caso estão tramadas na ficção e têm parte no interesse que ela desperta. Espero não ser especioso dizendo que o leitor imaginado ou registrado por Wood se interessa  pelo Brasil sem o saber.

O próprio Machado muita noção do problema, e o tratou de modo surpreendente. É disto que vou falar em seguida: das noções de “universalismo” e “localismo” no contexto de uma ex-colônia.

Comecemos com uma pergunta nacional-ressentida. Por que supor, mesmo de modo tácito, que a experiência brasileira tenha interesse apenas local, ao passo que a experiência francesa, ou inglesa, ou italiana, ou espanhola, ou norte americana, ou grega, ou latina, ou todas essas experiências juntas, seriam universais? Se a pergunta se destina a mascarar nossas inferioridades de ex-colônia, não vale a pena comentá-la. Se o propósito é duvidar da universalidade do universal, ou do localismo do local, ela é um ponto de partida.

A questão tem importância para a arte de Machado de Assis, que a dramatizou numa de suas excelentes crônicas, chamada “O punhal de Martinha”. Trata-se da apresentação, em prosa clássica pastichada, dos destinos paralelos de dois punhais. Um lendário e ilustre, que serviu ao suicídio de Lucrécia, ultrajada por Sexto Tarquínio. Outro comum e brasileiro, por isso mesmo destinado à “ferrugem da obscuridade”, que permitiu a Martinha vingar-se das importunações de certo João Limeira. A moça, diante da insistência deste, previne: “Não se aproxime, que eu lhe furo”. Como ele se aproxima, “ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente”.


Roberto Schwarz
Martinha vs. Lucrécia
em Machado de Assis e a Crítica Internacional
Editora Unesp. São Paulo, SP. 2009.