MARTINHA
VS. LUCRÉCIA
Como
é fácil imaginar, o tema deste congresso — Machado de Assis e a crítica mundial
— seria impensável há pouco tempo, por uma razão muito simples: a crítica
mundial não se ocupava do escritor, que era uma glória apenas local. Digamos
então que o centenário da morte de Machado está nos servindo de pretexto para
assinalar uma situação literária nova, com complicações ainda desconhecidas,
sobre a qual vale a pena refletir. O que vou lhes dizer tem a ver com isso.
Como
ponto de partida, vamos sublinhar um desacordo que veio se configurando ao
longo dos últimos cinqüenta anos. A consagração internacional de Machado de
Assis, que deslanchou em meados do século XX com a tradução norte-americana de
seus romances, ocorreu sem levar em conta o Brasil. Como foi dito de muitas
maneiras por diversos críticos, não é preciso interessar-se pelo Brasil para
reconhecer a maestria de Machado. Esta ressalta claramente da comparação com os
demais mestres do cânon internacional e dispensa considerações de contexto. Por
isso mesmo, parece ser um desserviço confrontar o grande escritor, universal
como todos sabem, com compatriotas menores, ou condições históricas remotas e
atípicas, que não interessam ao leitor cosmopolita. Um bom exemplo dessa
tendência encontra-se no Genius de
Harold Bloom, que dedica um capítulo repleto de admiração a Machado dizendo que
ele tem muito a ver com Laurence Sterne, e quase nada com seu país.
Ora,
no mesmo período, uma parte da crítica brasileira tomou o rumo oposto, formando
a contradição que é o meu ponto de partida. A força de Machado de Assis passava
a ser explicada a) pelo engenho com que retomou e superou os romancistas
cariocas medianos que o precederam; b) pela acuidade notável para os pormenores
da vida local — na verdade, pormenores de um fim de mundo; e c) pela invenção
progressiva de uma forma de romance em correspondência profunda com a estrutura
peculiar da sociedade brasileira. Noutras palavras, a estatura do escritor
deve-se a um conjunto de ajustes, aprofundamentos e superações cuja referência
é o país.
Tomando
distância, vocês estão vendo que a grandeza de Machado suscitou linhas de
explicação contrárias, que em algum momento teriam de discutir e competir. Para
uma, o segredo do valor literário está na semelhança e na diferença, e sempre
na proximidade, com os clássicos do cânon internacional, de cuja órbita o
romancista faz parte. Para a outra, o segredo do valor está na fidelidade,
digamos na fidelidade crítica e produtiva, às questões da literatura e da
sociedade locais, que graças a Machado se beneficiaram de uma extraordinária
desprovincianização. A alternativa convida a tomar partido. Mais interessante
que escolher um dos lados, contudo, é refletir a respeito deles, que são menos
exclusivos do que parecem à primeira vista. O conflito das interpretações
existe, mas, em vez de optar entre elas, buscaremos sua articulação.
Repisando
um pouco, o denominador comum às leituras é a convicção da qualidade estética
da obra, que é estupenda. Para uns, esta se evidencia por meio da comparação em
pé de igualdade com a primeira linha dos escritores internacionais, em que Machado figura em
posição diferenciada. Para outros, resulta do trabalho artístico sobre o
acanhamento peculiar da vida e da literatura de uma sociedade em formação,
acanhamento superado e elevado a uma espécie de plenitude. Aqui a originalidade
artística se nutre da singularidade de uma experiência histórica precária e
recalcada que o romancista fez emergir e soube explorar em grande estilo.
Assim, a posição distinta no cânon internacional, que é uma realidade, passa a
assinalar o surgimento de um bloco também distinto, relativamente soterrado, do
mundo contemporâneo.
Numa
resenha consagradora do romance machadiano, que toma em conta a crítica
brasileira, Michael Wood formula a questão com sutileza: ainda concedendo que
as relações entre os romances e a realidade social existam, será mesmo
necessário interessar-se pelo Brasil para admirar a maestria das narrativas? A
dúvida, colocada do ângulo do leitor estrangeiro, tem os fatos a seu favor,
pois é certo que a reputação internacional de Machado se formou sem apoio na
reflexão sobre o Brasil. A resposta à pergunta, portanto, só pode ser negativa:
não é preciso interessar-se pelo país para apreciar a qualidade superior da
ficção machadiana. Não obstante, é possível também examinar melhor a própria
pergunta.
Num
livro clássico sobre a originalidade histórica da forma romance, em especial
sobre a vocação realista, Ian Watt observa que se trata de um gênero que tende
a incluir no corpo da narrativa as informações necessárias a seu entendimento:
“a sua convenção formal o obriga a prover as próprias notas de rodapé”. O
romance, noutras palavras, tende a apresentar um universo autoexplicativo que
dispensa as referências externas, porque as internaliza. Nesse sentido, o
leitor cativado pela ficção machadiana, mas desinteressado do Brasil — da
experiência histórica chamada Brasil —, talvez não seja uma figura inteiramente
real, embora verossímil. Sua falta de apetite para as particularidades do país
pode não ser tão verdadeira quanto parece, uma vez que as notícias relevantes
no caso estão tramadas na ficção e têm parte no interesse que ela desperta.
Espero não ser especioso dizendo que o leitor imaginado ou registrado por Wood
se interessa pelo Brasil sem o saber.
O
próprio Machado muita noção do problema, e o tratou de modo surpreendente. É
disto que vou falar em seguida: das noções de “universalismo” e “localismo” no
contexto de uma ex-colônia.
Comecemos
com uma pergunta nacional-ressentida. Por que supor, mesmo de modo tácito, que
a experiência brasileira tenha interesse apenas local, ao passo que a
experiência francesa, ou inglesa, ou italiana, ou espanhola, ou norte
americana, ou grega, ou latina, ou todas essas experiências juntas, seriam
universais? Se a pergunta se destina a mascarar nossas inferioridades de
ex-colônia, não vale a pena comentá-la. Se o propósito é duvidar da
universalidade do universal, ou do localismo do local, ela é um ponto de
partida.
A
questão tem importância para a arte de Machado de Assis, que a dramatizou numa
de suas excelentes crônicas, chamada “O punhal de Martinha”. Trata-se da
apresentação, em prosa clássica pastichada, dos destinos paralelos de dois
punhais. Um lendário e ilustre, que serviu ao suicídio de Lucrécia, ultrajada
por Sexto Tarquínio. Outro comum e brasileiro, por isso mesmo destinado à
“ferrugem da obscuridade”, que permitiu a Martinha vingar-se das importunações
de certo João Limeira. A moça, diante da insistência deste, previne: “Não se
aproxime, que eu lhe furo”. Como ele se aproxima, “ela deu-lhe uma punhalada,
que o matou instantaneamente”.
Roberto
Schwarz
Martinha
vs. Lucrécia
em
Machado de Assis e a Crítica Internacional
Editora
Unesp. São Paulo, SP. 2009.