Carta-denúncia
de Basílio de Brito Malheiro do Lago, Vila Ria l5-04-1789.
Ilmo.
e Exmo. Sr. Visconde General.
V.
Excia. me ordenou que lhe desse escrita a parte que já lhe dei de palavra: de
que eu tinha notícia em como algumas pessoas suscitavam nesta Capitania
rebelião contra V. Excia., e igualmente contra o Estado e a mesma Soberana; e
que lhe declarasse tudo o que tivesse alcançado em matéria tão importante como
esta; e ainda o que eu presumisse dos sediciosos e seus projetos; que tudo lhe
manifestasse, o que faço obedecendo à ordem de V. Excia., declarando primeiro
que não quero que sirva de culpa a qualquer pessoa o que eu desconfio por
algumas interferências (sic), sem que
V. Excia. venha no pleno conhecimento por outras vias. Já passa de seis meses
que me acho nesta Capital de Vila Rica, aonde vim do Serro Frio, a dependência
das desordens em que está a minha casa, como V. Excia. muito bem sabe; já era
passado algum tempo que eu estava nesta vila, chegou a ela, vindo do Serro Frio,
a dependência das desordensem que esta a minha casa, como V. Excia. muito bem
sabe; já era passado alum tempo que eu estava nesta vila, chegou a ela, vindo
do Serro Frio, onde também é morado, Manoel Antôniode Morais, e veio a ser
hóspede do Sargento-Mor José Joaquim da Rocha; e enquanto o dito Morais estava
nesta Vila, ia eu algumas vezes falar com ele à casa do tal Rocha, para saber
notícias do Serro, por ter eu lá todo o meu estabelecimento; achei na mesma
casa muitas vezes, conversando com o Rocha e o Morais, o Alferes do Regimento
Pago, José Joaquim, por alcunha o Tiradentes, e como era princípio do governo
de V. Excia., e costumam os povos deste País analisar as ações dos Senhores
Generais, e em todos os Governos há descontentes, achava eu, e alcançava no
dito Alferes grande descontentamento, e algumas vezes lhe ouvi dizer formais
palavras: “se todos fossem do meu ânimo! — e se ficava; e depois me disse o
Morais, à porta do tal Rocha indo eu passando de caminho, estas palavras: “o
Tiradentes anda morto por fazer um levante”; e como eu já levo dito que
desconfiava do Tiradentes, e porque de natureza abomino tudo o que é traição,
seja contra quem for, quanto mais em matéria tão circunstancial, repreendi o
Morais, e lhe disse que semelhantes palavras ninguém as proferia, que eu as não
queria ouvir; suspendeu-se o Morais, e eu fui andando e não soube mais cousa alguma; mas fiquei com
uma desconfiança muito grande, maiormente porque sempre conheci, desde que vim
para a América, nos nacionais dela, interno desejo de se sacudirem fora da
obediência que devem prestar os seus legítimos Soberanos, mas antes patenteiam
uma interior vontade de fazerem do Brasil uma república livre, assim como
fizeram os Americanos Ingleses, em cuja matéria já conversam com muito pouco
cautela algumas pessoas mal intencionadas e que desejam dar princípio a uma
sedição; da qual desconfiei mais daí a poucos dias depois que o Morais me
declarou o que já disse, por dizer-me também o Doutor João de Araújo, morador
no Rio das Mortes, mostrando-se mal afeto a V. Excia.: dizendo eu ao dito
doutor, por ter alguma amizade com ele, que nunca era bom queixar-se ninguém do
governador, principalmente nestas conquistas onde o Rei lhe dava amplos
poderes, me respondeu com bastante paixão que este havia de ser o governador
mais desgraçado que tem vindo às Minas; e mo repetiu duas ou três vezes; e
disfarçando eu, que não entendia porque ele o dizia, lhe respondi genericamente
que um governador das Capitanias do Brasil nada tinha que temer, porque El-Rei
os mandava para cá para fazerem as suas vezes, e que se uma pessoa sem alguma
instrução dissesse isso, me não admirava, mas a ele, que lhe estranhava muito
dizer semelhante loucura; e como viu eu não recebi gostoso a sua expressão,
disfarçou com pretextos muito frívolos;
com isto mais me capacitei que já a sedição do Tiradentes andava por muitas mãos, do que com facilidade
me desenganei porque já se ouvia às pessoas
da última classe da gente desta terra, como são os negros e mulatos, que
estava para haver um levante; de forma que entrando eu em uma noite, seriam dez
horas, pela porta da sala da Estalagem das Cabeças onde assisto, logo assim que
entrei, estando a sala com bastante
gente, me disse um moço que está na mesma estalagem, o qual tinha vindo do Rio
das Mortes para sentar praça de soldado de cavalo e se chama José Joaquim de
Oliveira, formais palavras: “Sabe que mais, Senhor Tenente-Coronel, aqui
disseram hoje que está para haver um levante nas Minas”; bem conheci eu que
aquele moço o dizia materialmente, por o fazer sem cautela alguma, mas como a
minha desconfiança já era muito grande, não lhe respondi mais do que: “Só se
for um levante de putas”, e fui entrando para o meu quarto e nunca mais lhe
perguntei por semelhante matéria. Depois disto, também ouvi na mesma Estalagem,
andando a passear na varanda, dela, a um mulato do Serro Frio chamado Crispiano
que estava conversando com outro mulato por nome Raimundo Correia que é major
do Regimento dos Pardos do Tejuco e lhe disse o tal Crispiano que já desta vila
se tinha escrito para S. Paulo para que lá se levantassem e não pagassem os
dízimos; e como eu fugia de semelhantes conversas, não averigüei mais
circunstância alguma; e como via falar tais cousas já com esta liberdade,
parecia-me impossível que V. Excia. o não soubesse, mas como não via
demonstração algumas vezes ao falar nos meus particulares, disfarçadamente
dizia ao Ajudante de Ordens, o Tenente-Coronel Francisco Antônio Rebelo, que as
Minas não estavam boas, que era preciso Sua Excia. informar-se, e que só com
agrados não se governavam os povos de Minas. Eu julgava que o dito Ajudante
muito bem me percebia, mas disfarçava dizendo-me: “deixe estar o Senhor
Visconde, que muitos se enganam com ele; guarde-se algum que ele lhe não sente
a espada”. Mas cada vez desconfiava eu mais que ia tomando maior corpo o
congresso: porque ouvi dizer, mais de uma vez, ao Coronel Inácio José de
Alvarenga, em casa do Tenente-Coronel José Pereira Marques, falando-se da
decadência das Minas, que estavam propínquas a correr nelas rios de sangue; e
também, outra vez, me disse o Capitão Vicente Vieira da Mota que via as Minas
em muita desordem, e que todos os nacionais delas se queriam ver livres, e que
ele era amigo do Cônego Luís Vieira, mas que lhe ouvia falar umas tais cousas
que, se fosse o Rei, lhe mandava cortar a cabeça. Até que vendo eu axiomas tão
claros, haverá dois meses ou pouco mais, esperei o mesmo Ajudante Francisco
Antônio, quando vinha da Cachoeira a esta Vila e, na mesma Estalagem das
Cabeças, falei com ele dizendo-lhe que era preciso Sua Excelência fazer uma
exata averiguação do que se andava fulminando nas Minas, e que averiguasse Sua
Excelência bem; e que saberia quem eram uns e outros; e vendo eu que dito
Ajudante me divertia a conversa, talvez por saber o mesmo que eu lhe queria
dizer, instei dizendo-lhe que eu julgava que o caso estava mais adiantado; ele
então me disse: “Tenha você fidelidade, e deixe que o Sr. Visconde não se descuida”,
ao que eu lhe respondi que a mim se me não encomenda fidelidade, porque El-Rei
não tem vassalo como eu nesta Capitania”; e foi andando dizendo-me: “Deixe que
nós falaremos”. Passou algum tempo e indo eu para falar com Vossa Excelência
nas mesmas dependências, antes de lhe falar, falou comigo Francisco Antônio
Rebelo e mi disse que Vossa Excelência logo me vinha falar e que, antes de eu
lhe falar nos meus particulares, que lhe declarasse tudo o que soubesse em
matéria de rebelião; o que eu assim fiz, declarando a Vossa Excelência pouco
mais ou menos tudo o que exponho neste papel; e perguntando-me Vossa Excelência
se eu desconfiava de mais algumas pessoas que apeteciam a revolta, se eu sabia
onde se ajuntavam a conversar nessas coisas, respondi a Vossa Excelência que
todos os nacionais deste terra a desejavam, e que também se lhes uniram alguns
filhos de Portugal, destes que não têm modo de vida; e que me parecia, onde
faziam os seus ajuntamentos, a falar na matéria, era em casa do Dr. Cláudio
Manoel da Costa e do Dr. Tomás Antônio Gonzaga, que foi ouvidor desta Comarca;
e perguntando-me mais Vossa Excelência se eu, por casa deles, não lhes tinha
pescado alguma coisa, lhe respondi que sendo eu amigo do Cláudio, desta vez que
vim a Vila Rica inda não tinha ido à casa dele, porque logo desconfiei destas
coisas; e que, antes, eu andava fugindo de todos nesta Vila; então Vossa
Excelência me disse que disfarçadamente procurasse eu falar com o Cláudio e que
observasse o que alcançava dele sem que me percebesse; e que depois passasse à
Cidade de Mariana como a negócio meu, e que me fizesse encontrado com o Cônego
Luís Vieira para ver se lhe extorquia alguma coisa. Desta forma, estando eu já
seguro que não desconfiava da minha fidelidade, falei com o Cláudio. Perguntou-me
pelos meus particulares, queixei-me alguma coisa de Vossa Excelência, ao que me
respondeu que nas Minas não havia gente, que os Americanos Ingleses foram bem
sucedidos porque acharam só três homens capazes para a campanha, e que nas
Minas não havia um só; e que só o Tiradentes andava feito corta-vento, mas que
inda lhe haviam de cortar a cabeça a ele; e nunca me disse que tinha entrado em conselho. Falando
depois com o Cônego Luís Vieira, este não encobre a paixão que tem de ver o
Brasil feito uma república; abonou o Tiradentes de um homem animoso e que, se
houvesse muitos como ele, que o Brasil era uma república florente, e que um
príncipe europeu não podia ter nada com a América que é um país livre; e que
El-Rei de Portugal nada gastou nesta conquista, que os nacionais já a tiraram
dos holandeses, fazendo a guerra à sua custa sem El-Rei contribuir com dinheiro
algum para ela; depois disto, os franceses tomaram o Rio de Janeiro, que os
habitadores da cidade lha compraram com o seu dinheiro; e ultimamente concluiu
que esta terra não pode estar muito tempo sujeita a El-Rei de Portugal, porque
os nacionais dela querem também fazer corpo de república; e outras coisas
semelhantes que todas se encaminham ao fim da liberdade. Que se quer fazer
revolta é sem dúvida; a forma como a têm traçado, não a sei.
(Continua)