O
LENÇO DE DESDÊMONA
Essa
é a estória de Santiago — uma estória de traição pela mulher com o melhor
amigo. Mas Machado de Assis (em contraste com sua criatura Santiago) não tinha
o hábito de escrever romances de intriga. A base de seus romances, como ele
mesmo afirma em mais de uma ocasião, é mostrar o drama resultante da inter-relação de
naturezas contrastantes. Ele acredita evidentemente ser esta a única base para um enredo. Em sua famosa
crítica de O Primo Basílio, de Eça de
Queirós, e da escola naturalista, ele afirma sua crença com termos muito
claros:
Ora, a substituição do principal pelo
acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimentos para o
incidente, para o fortuito, eis o que me parece incongruente e contrário às
leis da arte. [...] O lenço de Desdêmona tem larga parte na sua morte; mas a
alma ciosa e ardente de Otelo, a perfídia de Iago e a inocência de Desdêmona,
eis os elementos principais da ação. O drama existe, porque está nos
caracteres, nas paixões, na situação moral dos personagens: o acessório não
domina o absoluto; é como a rima de Boileau: il ne doit qu’obéir.
Santiago
nos diz que a grande diferença entre sua estória e a de Otelo é que Capitu é
culpada. Mas não existiria, por acaso, uma diferença mais óbvia, que surge da
própria natureza de Santiago? “O acessório” — o “lenço de Desdêmona” — em Dom
Casmurro é a semelhança, ou, antes, a fantasia da
semelhança, entre Ezequiel e Escobar. O Iago putativo de Santiago, José Dias,
abandona o papel muito antes dessa semelhança vir à cena. É Santiago quem a
descobre; é Santiago quem manipula o “lenço”. Devemos reler, então, a fórmula
da ação dramática de Machado: a alma ciumenta de Otelo-Santiago, a perfídia de
Iago-Santiago e a culpa (ou inocência) de Desdêmona-Capitu — eis os principais
elementos da ação. O drama existe porque está nas naturezas, nas paixões e na
condição espiritual de Otelo-Santiago, Iago-Santiago e Desdêmona-Capitu; a
semelhança entre Ezequiel e Escobar não controla esses caracteres, cujas
paixões a ação dimana.
Permitam-nos
examinar os três “elementos principais” em Dom
Casmurro e compará-los com suas contrapartes em Otelo.
Uma vez que a culpa ou a inocência de Capitu dependem
inteiramente do testemunho de Santiago, cujo ciúme, por si só, já torna seu
testemunho suspeito, irei postergar o elemento Desdêmona para os últimos
capítulos e tomar no momento somente os elementos Otelo e Iago.
É
verdade, como relata Santiago, que José Dias inicia como Iago; mas trata-se, na
melhor das hipóteses, de uma espécie miserável de Iago, de ambições humildes e
pouco interesse em dinheiro: quarto e comida, um bilhete ocasional para o
teatro, uma viagem à Europa e a admiração da família Santiago — isto é tudo o
que pede da vida. Embora sua inveja da influência da família Pádua o leve a
“denunciar” Capitu e Bentinho e, dessa forma, antecipar o seminário para este
último, a conivência com os jovens Desdêmona e Otelo vence com facilidade, e
ele passa a trabalhar em favor dos dois — primeiro, ao tirar Bentinho do
seminário e, depois, ao promover o casamento. É provavelmente essa mesma inveja
que o incita a comentar os “olhos de cigana” de Capitu e a maquinação de Pádua
para se unir à família Santiago, além de insinuar o envolvimento de Capitu com
um dos pequenos aristocratas da vizinhança. Com esta última observação , seu poder
como um Iago consciencioso desaparece e ele se reduz ao papel de um intrometido
amável que trabalha para a felicidade do clã Santiago. O Iago de Shakespeare
diz a Cássio: “Seguindo-o, apenas sigo a mim próprio”. José Dias leva realmente
adiante esse propósito: chega a identificar-se a si mesmo com a família
Santiago — seu bem-estar e felicidade tornam-se também seus. O “par casado de
pecado e virtude”, que Santiago diz estar em cada um de nós quando lutamos para
controlar nossas vidas, pode ser encontrado no amor-próprio e na dedicação aos
patrões de José Dias — e a dedicação vence. (Em Santiago há um conflito
similar, mas a resolução, como veremos, é bem diferente.)
Muito
antes de José Dias pôr de lado o manto de Iago, Santiago já se preparava para apanhá-lo.
Assim como é rápido para reconhecer a verdade do alvitre de José Dias de que
ele e Capitu estavam apaixonados, ele é igualmente rápido em acreditar na
astúcia de Capitu como um indício das maquinações de Pádua para se unir à
abastada e aristocrática família Santiago. Ele vai além, e envolve a mãe de
Capitu, Dona Fortunata, em suas suspeitas. Quando Dona Fortunata surge depois
do beijo dos dois jovens amantes, Santiago nos diz:
[Dona Fortunata] Olhava com ternura
para mim e para ela. Depois, parece-me que desconfiou. [...] achou talvez que
houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por dissimulação.
Dona
Fortunata surge duas vezes durante a cena da discussão, mas sai sem dizer uma
palavra, embora na segunda vez Bentinho esteja abraçado à cintura de Capitu.
Helen
Caldwell
O
Otelo Brasileiro de Machado de Assis
um
estudo de Dom Casmurro
tradução
de Fábio Fonseca de Melo
Ateliê
Editoria. Cotia, SP. 2002.