terça-feira, 17 de julho de 2012

MACHADO



O LENÇO DE DESDÊMONA

Essa é a estória de Santiago — uma estória de traição pela mulher com o melhor amigo. Mas Machado de Assis (em contraste com sua criatura Santiago) não tinha o hábito de escrever romances de intriga. A base de seus romances, como ele mesmo afirma em mais de uma ocasião, é  mostrar o drama resultante da inter-relação de naturezas contrastantes. Ele acredita evidentemente ser esta a única base para um enredo. Em sua famosa crítica de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, e da escola naturalista, ele afirma sua crença com termos muito claros:

Ora, a substituição do principal pelo acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimentos para o incidente, para o fortuito, eis o que me parece incongruente e contrário às leis da arte. [...] O lenço de Desdêmona tem larga parte na sua morte; mas a alma ciosa e ardente de Otelo, a perfídia de Iago e a inocência de Desdêmona, eis os elementos principais da ação. O drama existe, porque está nos caracteres, nas paixões, na situação moral dos personagens: o acessório não domina o absoluto; é como a rima de Boileau: il ne doit qu’obéir.

Santiago nos diz que a grande diferença entre sua estória e a de Otelo é que Capitu é culpada. Mas não existiria, por acaso, uma diferença mais óbvia, que surge da própria natureza de Santiago? “O acessório” — o “lenço de Desdêmona” — em Dom Casmurro é a semelhança, ou, antes, a fantasia da semelhança, entre Ezequiel e Escobar. O Iago putativo de Santiago, José Dias, abandona o papel muito antes dessa semelhança vir à cena. É Santiago quem a descobre; é Santiago quem manipula o “lenço”. Devemos reler, então, a fórmula da ação dramática de Machado: a alma ciumenta de Otelo-Santiago, a perfídia de Iago-Santiago e a culpa (ou inocência) de Desdêmona-Capitu — eis os principais elementos da ação. O drama existe porque está nas naturezas, nas paixões e na condição espiritual de Otelo-Santiago, Iago-Santiago e Desdêmona-Capitu; a semelhança entre Ezequiel e Escobar não controla esses caracteres, cujas paixões a ação dimana.

Permitam-nos examinar os três “elementos principais” em Dom Casmurro e compará-los com suas contrapartes em Otelo. Uma vez que a culpa ou a inocência de Capitu dependem inteiramente do testemunho de Santiago, cujo ciúme, por si só, já torna seu testemunho suspeito, irei postergar o elemento Desdêmona para os últimos capítulos e tomar no momento somente os elementos Otelo e Iago.

É verdade, como relata Santiago, que José Dias inicia como Iago; mas trata-se, na melhor das hipóteses, de uma espécie miserável de Iago, de ambições humildes e pouco interesse em dinheiro: quarto e comida, um bilhete ocasional para o teatro, uma viagem à Europa e a admiração da família Santiago — isto é tudo o que pede da vida. Embora sua inveja da influência da família Pádua o leve a “denunciar” Capitu e Bentinho e, dessa forma, antecipar o seminário para este último, a conivência com os jovens Desdêmona e Otelo vence com facilidade, e ele passa a trabalhar em favor dos dois — primeiro, ao tirar Bentinho do seminário e, depois, ao promover o casamento. É provavelmente essa mesma inveja que o incita a comentar os “olhos de cigana” de Capitu e a maquinação de Pádua para se unir à família Santiago, além de insinuar o envolvimento de Capitu com um dos pequenos aristocratas da vizinhança. Com esta última observação , seu poder como um Iago consciencioso desaparece e ele se reduz ao papel de um intrometido amável que trabalha para a felicidade do clã Santiago. O Iago de Shakespeare diz a Cássio: “Seguindo-o, apenas sigo a mim próprio”. José Dias leva realmente adiante esse propósito: chega a identificar-se a si mesmo com a família Santiago — seu bem-estar e felicidade tornam-se também seus. O “par casado de pecado e virtude”, que Santiago diz estar em cada um de nós quando lutamos para controlar nossas vidas, pode ser encontrado no amor-próprio e na dedicação aos patrões de José Dias — e a dedicação vence. (Em Santiago há um conflito similar, mas a resolução, como veremos, é bem diferente.)

Muito antes de José Dias pôr de lado o manto de Iago, Santiago já se preparava para apanhá-lo. Assim como é rápido para reconhecer a verdade do alvitre de José Dias de que ele e Capitu estavam apaixonados, ele é igualmente rápido em acreditar na astúcia de Capitu como um indício das maquinações de Pádua para se unir à abastada e aristocrática família Santiago. Ele vai além, e envolve a mãe de Capitu, Dona Fortunata, em suas suspeitas. Quando Dona Fortunata surge depois do beijo dos dois jovens amantes, Santiago nos diz:

[Dona Fortunata] Olhava com ternura para mim e para ela. Depois, parece-me que desconfiou. [...] achou talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por dissimulação.

Dona Fortunata surge duas vezes durante a cena da discussão, mas sai sem dizer uma palavra, embora na segunda vez Bentinho esteja abraçado à cintura de Capitu.


Helen Caldwell
O Otelo Brasileiro de Machado de Assis
um estudo de Dom Casmurro
tradução de Fábio Fonseca de Melo
Ateliê Editoria. Cotia, SP. 2002.