sexta-feira, 31 de agosto de 2012

RAPOSOS


PANEM NOSTRUM



A torre de marfim, a torre alada,
esguia e triste sob o céu cinzento,
corredores de bruma congelada,
galerias de sombras e lamentos.

A torre de marfim fez-se esqueleto
e o esqueleto desfez-se num momento.
Ó! não julgueis as coisas pelo aspecto
que as coisas mudam como muda o vento.

E com o vento revive o que era inerme.
Os peixes também podem criar asas
as asas brancas podem gerar vermes.

Olhei a torre de marfim exangue
e vi a torre transformar-se em brasa
e a brasa rubra transformar-se em sangue.


Jorge de Lima
Livro de Sonetos

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

SETE LAGOAS

A BÍBLIA SAGRADA



Aconteceu que, depois desses fatos, a mulher de seu senhor lançou os olhos sobre José e disse: “Dorme comigo!” Mas ele se recusou e disse à mulher de seu senhor: “Estando eu aqui, meu senhor não se preocupa com o que se passa na casa e me  confiou tudo o que lhe pertence. Ele mesmo não é, nesta casa, mais poderoso do que eu: nada me interditou senão a ti, porque és sua mulher. Como poderia eu realizar um tão grande mal e pecar contra Deus?” Ainda que ela lhe falasse a cada dia, José não consentiu em dormir a seu lado e se entregar a ela.

Ora, certo dia José veio à casa para fazer seu serviço e não havia na casa nenhum dos domésticos. A mulher o agarrou pela roupa, dizendo: “Dorme comigo!” Mas ele deixou a roupa nas suas mãos, saiu e fugiu. Vendo que ele deixara a  roupa nas suas mãos e que fugira, ela chamou seus domésticos e lhes disse: “Vede! Ele nos trouxe um hebreu para nos insultar. Ele se aproximou para dormir comigo, mas lancei um grande grito, e vendo que eu levantava a voz e gritava, deixou sua roupa a meu lado e fugiu.” Quando o marido ouviu o que lhe dizia sua mulher: “Eis de que maneira teu escravo agiu para comigo”, sua cólera se inflamou. O senhor de José mandou apanhá-lo e pô-lo na prisão, onde estavam os prisioneiros do rei.

Assim, ele ficou na prisão. Mas Iahweh assistiu José, estendeu sobre ele sua bondade e lhe fez encontrar graça aos olhos do carcereiro-chefe. O carcereiro-chefe confiou a José todos os detidos que estavam na prisão; tudo o que se fazia passava por ele. O carcereiro-chefe não se ocupava de nada do que lhe fora confiado, porque Iahweh o assistia e fazia prosperar o que ele empreendia.


Gn 39, 7-23

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

ENTRE RIOS DE MINAS

OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA   (cont.)

Geraldo de Souza
Geraldo Lourenço Mafra
Geraldo Marques
Geraldo Quartim
Geraldo Rodrigues dos Santos
Gerd Alberto Bornhein
Germano Soares
Gérson Alves Baraúna
Gerson de Brito Melo Boson
Gésio Batista de Almeida
Gibson Barbosa de Almeida Pinho
Gil Correa da Silva
Gilberto Braun
Gilberto Canedo de Magalhães
Gilberto de Mendonça Teles
Gilberto Hauagem Soares
Gilberto Monteiro Pinto
Gilberto Nascimento da Cruz
Gilberto Pontes de Andrade
Gilberto Ronaldo Campello de Azevedo
Gilberto Soares Farias
Glênio Martins Peçanha
Godofredo Bello
Grinaldo José da Silva
Guido Antônio de Almeida
Gilherme Soares de Lima
Guiomar Caram
Guy José Paulo de Holanda
Haity Moussatché
Hamílton de Barros Vellasco
Haroldo Cícero de Morais
Hassin Gabriel Merediff
Hélcio Gomes Moraes
Hélcio Pereira Soares
Helena Alves de Souza
Hélio de Souza Mafra
Hélio Garcia
Hélio Guia Fontes
Hélio Lobato Vale
Hélio Lourenço de Oliveira
Hélio Lucas de Oliveira
Hélio Mangeon
Hélio Marques da Silva
Hélio Pelegrino
Hélio Tupinambá da Fonseca
Hélion Nunes da Rosa
Hênio Lopes
Herculano Alfredo de Oliveira
Herman Lent
Hermano Alfredo Netto de Sá
Hermenegildo Pinto Guimarães
Hermes Lima
Hermógenes Reis
Hermógenes Siqueira Franco
Herondino Ignácio da Silva
Hildebrando Falcão

A SANÇÃO SOFRIDA PELOS PROFESSORES




 [...] A sanção sofrida pelos professores e pesquisadores punidos pelo AI-5 tem uma característica profundamente injusta e diabolicamente cruel: ela é total e perpétua.

É total porque os aposentados pelo nefando Ato foram, pelo Ato Complementar nº 77 de 22 de outubro de 1969, proibidos de, a qualquer título, exercer qualquer atividade em instituições de ensino ou pesquisa oficiais ou que recebessem qualquer subvenção oficial, isto é, praticamente todos os estabelecimentos dessa natureza no Brasil.

Fecharam-se todas as portas às suas vítimas.

Esse ato complementar, que é uma obra prima de maldade, teve sua legitimidade contestada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, baseada em bem fundamentado parecer jurídico, mas foi amplamente aplicado em todas as Universidades brasileiras.

A sanção é perpétua porque não teve sua vigência limitada, ao contrário da suspensão dos direitos políticos que foi restrita a 10 anos.

Em conseqüência vemos diariamente políticos cassados voltarem à atividade partidária e mesmo concorrerem a eleições, muitos deles conquistando mandatos populares.

Atualmente no Brasil não há mais prisões perpétuas, extinguiu-se a pena de morte, aboliu-se o banimento.

Mas os professores e os pesquisadores científicos continuam impedidos de exercer suas atividades, em claro desrespeito a um dos mais sagrados direitos humanos: o direito ao trabalho.

A singularidade desta pena cria situações extremamente anômalas como a do eminente Professor Fernando Henrique Cardoso, que, tendo sido aposentado como docente da Universidade de São Paulo e tido seus direitos políticos cassados, foi eleito a 15 de novembro suplente do Senador Franco Montoro. Poderá, então, se convocado para exercer a senatoria falar a todo o povo brasileiro da mais alta tribuna, o Senado Federal, mas continuará impedido de lecionar a meia dúzia de alunos dentro de uma sala de aula.

O mesmo poderá acontecer ao nosso querido Professor Edgar de Godói da Mata-Machado, que recentemente filiado ao Movimento Democrático Brasileiro, se o quiser, conquistará sem dúvida, na primeira eleição, um mandato eletivo, mas permanecerá afastado de sua Faculdade de Direito, que tanto honrou, caso persista a situação atual.

Cabe aqui uma pergunta: serão os professores tão terrivelmente mais perigosos à segurança nacional que os políticos?

A inexplicável e extrema severidade, digamos mesmo crueldade, das sanções impostas aos intelectuais fez com que, em grande número, buscassem em países estrangeiros a oportunidade de sobrevivência que lhes era negada no Brasil e hoje ocupam cargos de grande responsabilidade em instituições de importância mundial, como o Instituto Pasteur de Paris, O Instituto Rockefeller de Nova York, a Organização Mundial de Saúde e várias universidades da Europa e da América.

Apesar disso, muitos deles, senão todos, desejam ardentemente regressar à Pátria, mas como fazê-lo se aqui lhes são negados os simples meios de subsistência e mesmo o indispensável passaporte?

Não seriam esses homens úteis ao Brasil, como o são a outros países? Ou será que a Revolução, como a sua congênere francesa, não precisa de sábios? [...]


[...] Embora tenha sido para mim motivo de viva alegria e imenso conforto, não me causou qualquer surpresa a atitude do Instituto de Ciências Biológicas , através da sua Congregação, conferindo-me o título de Professor Emérito, o mais alto que pode almejar um velho professor universitário aposentado.

Não me surpreendeu porque conheço bem meus colegas. Deles tenho recebido desde os torvos dias de setembro de 1969 as mais claras provas de solidariedade, ainda em plena vigência do regime de denúncias, delações, vinganças e perseguições, movidas pelo ódio e pela inveja, que caracterizou aquele negro período de nossa história, quando os punidos pelo sistema eram considerados tabu, mais perigosos que os leprosos na Idade Média ou os judeus durante o terror nazista e cuja simples aproximação poderia constituir grave risco. [...]     


[...] Tive a suprema ventura de participar da luta vitoriosa contra o terror nazi-fascista nos campos de batalha da Itália, junto com os meus companheiros  da Força Expedicionária Brasileira [...]


Prof. Amílcar Vianna Martins
Pela Democracia, por uma Sociedade Humana
Discurso por ocasião do recebimento do título de
Professor Emérito da UFMG
em UFMG Resistência e Protesto
Vega. Belo Horizonte. 1979.  

CORDISBURGO

terça-feira, 28 de agosto de 2012

UM APRENDIZ DE FEITICEIRO



EM FIGURA DE CORCEL

Cavalo lírico
da solidão — é quando
são quatro patas
no chão — tambor da noite
tão retumbante.

Cavalo empírico
é quando ao sangue furta
a flor das matas
sua cor de prata líquida
(a ultraviolante).

Mas
o onírico corcel
um cavalo sonâmbulo
de blau rompante
que pasta as natas
do puro sal da infância

é um cavalo louco
de elmo de lata
ou à chuva azul de Minas
um almirante.


1960.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

PETRÓPOLIS


OTELO E SANT'IAGO



O AGREGADO

Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara. toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.

Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia, apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre.

—Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.

— Voltarei daqui a três meses.

Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo da chácara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que não era médico. Tomara esse título para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais doentes.

— Mas,  você curou das outras vezes.

— Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios indicados nos livros. Eles, sim, eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão...Não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é a verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.

Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa da família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme., disseram-me, não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia, depois da missa, ele foi despedir-se dela.

— Fique, José Dias.

— Obedeço, minha senhora.

Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. “Esta é a melhor apólice”, dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que, a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.

— Abaixo ou acima? — perguntou-lhe tio Cosme um dia.

— Abaixo — repetiu José Dias cheio de veneração.

E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cópia de papéis de autos.


Machado de Assis
Dom Casmurro

domingo, 26 de agosto de 2012

BELO HORIZONTE


EMANUEL E FEDERICO


EMANUEL E FEDERICO
Que povo, o desse baixio, dum sertão, das brenhas! De onde tiravam as estúrdias alfaias, e que juízo formavam da festa que ia ser, da missa na Samarra, na capelinha feita? Esse cafarnaúm! As lascas de pedras-de-amolar, uma buzina amarela de caçador, um bacamarte boca-de-sino todo ferrugem, uma oitavada lanterninha, rosários de fava-vermelha, santa-rita e mariola; um rabudo — armadilha de ferro, de pegar tatu em entrada de buraco; punhados de penas de arara, um dente de gente com ponto de ouro, um frasco azulado, as velhas cartas dum baralho; e esteiras, cestos, sacolas, caixinhas, tapas — tudo que da folha do buriti se fabricava. E até um grosso livro de contas, todas as páginas preenchidas, a tinta descorável, e que de certo fora, em tempos, de algum grande fazendeiro lavrar em limpo seus negócios. E mais até uma mortalha de homem, de ganga roxa, que nunca servira, porque a tinham costurado com despropositada urgência, mas o corpo do defunto, afogado no rio, não se achara. Criancice duma boa gente, que remexia em seus trastes, alguma coisa tinham de trazer,menos as mãos vazias. Será pensavam preciosos só para Nosso Senhor e a Virgem esses objetos fora de serventia trivial, mas com bizarria de luxo ou de memória? Talvez então eles também fossem espertos, ladinos demais, quando compareciam com aquela trenzada — por não ter saída em comércio, nem nenhum outro seguro custo? Manuelzão, em sutil, desconfiava deles.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º volume
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

sábado, 25 de agosto de 2012

TIRADENTES


OS INCONFIDENTES



CARTA-DENÚNCIA DO TEN.-CEL. FRANCISCO DE PAULA FREIRE DE ANDRADA; VILA RICA, 17-05-1789.

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor.

Foi Vossa Excelência servido ordenar escrevesse eu o mesmo que tive a honra comunicar-lhe no dia treze deste mês; e como seja incontestável a cega obediência que devo às determinações de Vossa Excelência, farei todo o possível para as executar com toda a fidelidade e pureza. Meu Senhor, em dias do mês de janeiro vieram à minha casa o Coronel Inácio José de Alvarenga, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier e o Vigário Carlos Carreia de Toledo; e depois de me haverem cumprimentado, passaram a tratar do estado atual deste país, das suas produções e dos motivos da total decadência em que se acha, e do quanto poderia ser feliz se fosse habitado por outra Deusqualquer nação que não fora a portuguesa, porém como a matéria não estimulasse a minha curiosidade a indagar o fim a que se dirigia, retiraram-se.

Passados alguns dias tornaram, e pouco depois o Reverendo Padre José da Silva Rolim; e à matéria que se tinha anteriormente jogado, ligaram as seguintes reflexões: que os povos se acham aflitos e consternados com a notícia da nova derrama, e por este motivo dispostos para qualquer ação que se encaminhasse a favorecê-los; e que até se lembrariam de formar uma sublevação, se não temessem a oposição da Tropa.

Bem que me parecesse isto mais tresvario que reflexões sérias, contudo quis certificar-me ponderando-lhes algumas cousas que me pareceram mais próprias para conhecer os seus ânimos. Não me enganei, porque logo que tornaram a si, ridicularizaram a matéria de tal forma que em poucos instantes a caracterizaram por uma verdadeira cena de teatro. Mas como a delicadeza da matéria não pedia um total desprezo, não a deixei jamais perder de vista, fazendo com alguma dissimulação as precisas observações. Acontecendo ir depois a casa do Tenente-Coronel Domingos Abreu a despedir-me, e do Reverendo Padre José da Silva Rolim que se achava seu hóspede, encontrei na mesma o Alferes Joaquim José da Silva Xavier; e pude alcançar que ao referido Tenente-Coronel não era estranha a matéria que se tinha tratado. Foi este o estado, Excelentíssimo Senhor, que deixei, quando desta Capital saí com licença de Vossa Excelência para a minha fazenda, onde se passaram dois meses, com pouca diferença, sem ter a mais leve notícia da estado deste negócio.

Contudo, não me pareceu justo deixar de adiantar a carta de dois de abril, que tive a honra de pôr na respeitável presença de Vossa Excelência, até que pudesse diligenciar notícias que me parecessem suficientes para dar uma circunstanciada parte cheia de fundamentos mais sólidos. Passando depois o Coronel Alvarenga, quando se retirava desta Capital, pela minha fazenda, usei com ele de alguns meios que julguei mais a propósito para instruir-me do estado destas coisas; deu-me a entender que não só se não tratava de semelhante matéria, mas que a suspensão da derrama sepultara até a mesma lembrança. Porém, passados tempos, me veio a mão uma carta sem nome, que me não dava a menor idéia de quem fosse pela disformidade dos seus caracteres, e constava, segundo a minha lembrança, das palavras seguintes:

“O Sargento-Mor foi para a Cachoeira, onde se trata de dar-lhe um grande tombo; assim, recolha-se; e quando ouvir grita “viva o povo”, saia prontamente, quando não a vida lhe há de custar e a sua casa será arrasada.”

Bem que esta carta concorresse pouco para se fazer um discurso sério e fundamentar a minha parte, pois é certo que não tinha delito que obrigasse a Vossa Excelência a um procedimento tão forte, nem conhecimento de que este negócio pudesse ter adquirido um adiantamento tão rápido em tão pouco tempo, contudo, como haviam as antecedências já expostas, poderia algum da parcialidade tomar a indiscreta resolução de querer fazer algum rompimento sem atender às conseqüências . Estas foram as razões que me moveram a pôr na presença de Vossa Excelência esta parte, logo que a minha enfermidade me permitiu, para que Vossa Excelência pudesse tomar aquelas medidas que lhe parecessem mais acertadas, e viesse no conhecimento da lembrança que conservo das obrigações que me impõem o nome de fiel vassalo e igualmente as do meu nascimento. É o que me oferece a pôr na respeitável presença de Vossa Excelência de quem tenho a honra e a felicidade de ser, como o mais profundo respeito,

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena,

De Vossa Excelência
Súdito mais humilde


Francisco de Paula Freire de Andrada

Vila Rica, 17 de maio de 1789.

Reconheço a letra e firma da carta retro ser feita pelo próprio punho do Tenente-Coronel Francisco de Paula Freira de Andrada, por outras semelhantes letras e firmas que lhe tenho visto, em fé do que passo a presente.


Vila Rica, 15 de junho de 1789.


José Caetano César Manitti

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

CABO FRIO


MACHADO



O VIGOR DA JUVENTUDE

Pouco se sabe sobre a vida de Machado até os quinze anos de idade. Sua modesta família não protagonizou proeza, tampouco acumulou patrimônio ou fez nome. Por sua vez, o escritor obscureceu as origens de modo a criar de si a imagem que convinha expor ao mundo.

Em seus primeiros poemas, lamentou a morte da mãe e da irmã, mas nada deixou transparecer sobre as condições em que vivia. Em depoimentos, evitou habilmente assuntos delicados, como a irregularidade dos estudos. Pouco disse sobre o aprendizado de idiomas estrangeiros.

A partir de 1854, porém, podemos acompanhá-lo pelos jornais e revistas. Estreou em poesia, gênero mais prestigioso daquele momento, quando a ficção apenas se preparava para a fulgurante carreira que lhe caberia. O debutante não demonstrou nenhuma aptidão especial, passível de passar por traço de gênio, mas o importante era se lançar.

Igual coragem demonstrou ao se imiscuir entre os maiores poetas e prosadores brasileiros em atividade, que o acolheram bem. Admiradores do bom texto, perceberam o potencial do neófito — a quem impulsionaram.

Em 1763, o Rio de Janeiro se tornou a capital da colônia. Em 1808, viveu um grande salto civilizatório, ao receber a família real e uma comitiva de portugueses com boa formação. Nada disso impediu, porém, que ao final da década de 1830 a sede do Império brasileiro fosse suja, insalubre e mal iluminada.

Por falta de saneamento, os dejetos eram transportados por carroças e escravos até o mar. A tuberculose e outras moléstias assolavam. Freqüentes eram as epidemias de doenças como cólera e sarampo. A pessoa que sobrevivesse a tantas ameaças e chegasse aos cinqüenta anos de idade tinha motivo de sobra para comemorar.

Os quase 300 mil habitantes se distribuíam irregularmente pelo perímetro urbano, no qual se privilegiava a zona central. Os montes próximos ao porto eram ocupados por instalações militares e religiosas, assim como por grandes chácaras e quintas organizadas em torno de mansões.

Uma dessas propriedades era o Morro do Livramento, pertencente a uma família portuguesa servida por vários escravos e agregados. Entre os últimos vivia a branca açoriana Maria Leopoldina Machado da Câmara, que desempenhava tarefas caseiras como costura e bordado.

Em certo momento, a colina passou a ser freqüentada pelo mulato forro Francisco José de Assis, que provavelmente subira para  prestar serviços. Encantado por Maria Leopoldina, esse pintor de parede e dourador foi correspondido: contraíram núpcias quando ela tinha 26 anos e ele, 32.

No dia 21 de junho de 1839, Maria Leopoldina deu à luz Joaquim Maria Machado de Assis. O fato de terem transcorrido apenas dez meses e dois dias desde o casamento parecia prenúncio de numerosa prole. No entanto, o casal teve apenas mais uma filha, Maria, vinda ao mundo a 3 de maio de 1841.

Os laços com os proprietários se reforçaram: Machado teve como madrinha a viúva Maria José de Mendonça Barroso Pereira, então dona exclusiva do Livramento, cuja filha batizou Maria Machado de Assis. Dava-se continuidade ao hábito de os padrinhos serem pessoas de posses, por conseguinte em condições de assumir os afilhados em caso de desgraça dos pais.

Podemos imaginar o autor levando alguns anos de vida familiar normal, humilde mas digna. Frágil de compleição, porém impulsionado pela energia da idade, corria para cima e para baixo, percorria as construções, extasiava-se com a visão da cidade maravilhosa. Também aprendia a ler e escrever, provavelmente com sua mãe, que era alfabetizada, portanto, como afirmou o biógrafo Jean-Michel Massa “podia transmitir a Joaquim Maria o seu conhecimento”.

Todavia as tragédias surgiram repentina e sucessivamente, levando primeiro a irmã de quatro anos, vítima de uma epidemia de sarampo. Quase quatro anos depois, faleceu a mãe, tísica. Como a madrinha morrera antes, restou apenas o pai, com quem Machado viveu sozinho por mais de cinco anos.

Aos 48 anos, Francisco José casou com a mulata Maria Inês da Silva, que não teve filhos e, afetuosa, fez-se uma verdadeira mãe do enteado. O trio ocupava agora um pequeno sobrado em São Cristóvão, onde usufruía de uma convivência doméstica harmoniosa.

A despeito de sua importância histórica, porém, o bairro jamais ofereceria tantas oportunidades quanto o centro da cidade, a apenas alguns quilômetros dali. À época, o transporte até o Cais Pharoux, na Praça XV, era feito de barca, na qual um rapazola passava todo o trajeto lendo, alheio a pessoas, belezas naturais e edificações. Era Machado, a compensar a falta de estudos regulares embebendo-se de literatura.


Dau Bastos
Machado de Assis
num recanto, um mundo inteiro
Garamond. Rio de Janeiro. 2008.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

SÃO JOÃO DEL REI


O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM



Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos e em teu nome que expulsamos demônios e em teu nome que fizemos muitos milagres?’ Então eu lhes declararei: ‘Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade.

Assim, todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será comparado ao homem sensato que construiu sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. Por outro lado, todo aquele que ouve essas minhas palavras, mas não as pratica, será comparado ao homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela desmoronou. E foi grande sua ruína!”

Aconteceu que ao terminar Jesus essas palavras , as multidões ficaram extasiadas com o seu ensinamento, porque as ensinava com autoridade e não como os seus escribas.


Mt 7, 21-28

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

OUTROS TEMPOS...


GR



A HORA E A VEZ DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Escrita integralmente ao longo do século XX, a obra do criador de Riobaldo e Augusto Matraga amplifica o legado regionalista e agrega novas paragens, fazendo do sertão uma metáfora da literatura de nosso tempo

Esta 20ª edição, comemorativa dos 10 anos dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, homenageia aquele que é considerado o maior escritor brasileiro do novecentos. Ponto culminante de uma tendência que atravessa nossa literatura — o regionalismo —, a obra de João Guimarães Rosa é ao mesmo tempo sua superação ao assimilar e amplificar as outras vertentes da invenção ficcional e poética que caracterizam o período mais fértil das letras do país. Contemporâneo de romancistas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Clarice Lispector, de poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, o autor de Sagarana (livro que este ano completa 60 anos) e Grande Sertão: Veredas (que há meio século transformou radicalmente nossa paisagem literária) pode ser considerado o resumo e o ápice de seu tempo.

Já se disse sobre o continente rosiano que ele contém o local e o universal, o arcaico e o mítico, o documental e o metafísico, vazados numa linguagem que recria as palavras e desliza sobre uma geografia simbólica. O fato de continuarmos a dizê-lo sob diferentes ângulos apenas reitera o que todo leitor sente ao percorrer suas páginas: o sertão de Rosa, com seus jagunços e buritis, excede as condições históricas e o perfil social da região na qual parece tão profundamente enraizada. Antonio Candido — numa resenha feita no calor da hora, quando Sagarana começava a assombrar leitores e críticos — notou essa singularidade em relação aos demais regionalistas:

A província do sr. Guimarães Rosa , no caso Minas, é menos uma região do Brasil do que uma região da arte, com detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal, tamanha é a concentração com que trabalha o autor. (...) Sagarana não é um livro regional como os outros, porque não existe região igual à sua, criada livremente pelo autor com elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia belíssima de suas histórias.

Transcendendo o critério regional por meio de uma condensação do material observado (condensação mais forte do que qualquer outra em nossa literatura da “terra”) o sr. Guimarães Rosa como que iluminou, de repente, todo o caminho feito pelos seus antecessores. (“Notas de crítica literária — Sagarana”, Textos de intervenção.

Desde então, e sob o impacto das obras publicadas posteriormente — o ciclo novelesco Corpo de Baile, Grande Sertão: Veredas e livros póstumos como Estas Estórias e Ave, Palavra —, a crítica vem enfatizando a idéia seminal de que o sertão de Guimarães Rosa é uma reconstrução alegórica do mundo e que suas narrativas, sejam contos mais breves ou seu único romance, perfazem o ambicioso projeto de fundar uma cosmologia literária da qual o escritor é uma espécie de demiurgo, criando os seres e os signos que os nomeiam. Leituras nem sempre convergentes, muitas vezes conflitantes, todas no entanto salientam o fato de que sua ficção aponta para um espaço imaginário, carregado de mistérios e símbolos que convidam à decifração, descolando-se assim do solo percorrido por seus viventes.

Em “Céu, Inferno”, Alfredo Bosi afirma:

Em Guimarães Rosa, o que cinge à cultura popular é um fio unido de crenças: não só um conteúdo formado de imagens e afetos, mas, principalmente, um modo de  ver os homens e o destino. (...) A sua narrativa, que parece a tantos ardidamente moderna e até mesmo experimental pela ousadia das soluções formais, realiza, com as artimanhas da linguagem, uma nova tradução do pensamento arcaico-popular.

No ensaio “O mundo misturado”, Davi Arrigucci Jr. propõe que o entrecruzamento de elementos da cultura comunitária e de uma religiosidade tradicional com questões próprias da sociedade e do indivíduo modernos faz do sertão rosiano um lugar onde se materializam ficcionalmente as forças contraditórias de nossa modernização periférica — figurada nessa mistura temporal e formal (épica, literatura oral, romance de formação) que coloca Grande Sertão: Veredas na trilha de uma totalidade buscada pelo grande romance moderno. Mistura essa que reaparece em o O, de João Adolfo Hansen, sob um viés radicalmente antimimético: descartando todas as leituras que perseguem correspondências entre o texto e um além do texto, entre a letra e sentidos pré-existentes  a ela (padrões lingüísticos, mitologias, ideologemas etc.). Hansen vê no romance um deslocamento incessante de estórias que se cancelam reciprocamente, produzindo sobre a ilusão da referencialidade uma pura indeterminação, uma negatividade consubstanciada na expressão nonada: uma cosmogonia no nada, como texto que a tudo pode incluir e deglutir em seu diabolismo”.

Esses três exemplos são representativos de uma vastíssima fortuna crítica à qual a presente edição dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA vem acrescentar algumas contribuições fundamentais. A começar por um depoimento hoje tingido de forte conotação simbólica: o texto da poetisa Dora Ferreira da Silva que abre a seção “Confluências” e acompanha as lembranças do embaixador Rubens Ricupero sobre a experiência de Guimarães Rosa como diplomata, as anotações do bibliófilo José Mindlin sobre seu encontro com o escritor, em Paris, e a transcrição de uma entrevista inédita de Manuelzão, vaqueiro que viajou com o escritor pelo interior de Minas, tornando-se personagem de “Uma Estória de Amor (Festa de Manuelzão)”, novela integrante de Corpo de Baile. Escrito poucas semanas antes de sua morte, o último texto em prosa da autora de  —cuja imagem se funde com a de Guimarães Rosa na memória da poetisa, que recorda o dia em que acreditou vê-lo montado num cavalo à porta de sua casa em São Paulo.

“João Guimarães Rosa, bardo do Brasil, inventor de mundos, a nossa paidéia, o nosso Homero”, escreve Dora na abertura de um texto que, à parte sei inestimável valor documental, coloca o escritor no rol dos clássicos da literatura universal e ecoa o célebre aforismo de Pessoa: “Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa por onde se note que existiu Homero”. Poeta da língua portuguesa, épico de um sertão arquetípico, Guimarães Rosa transformou a topografia em topos — o que faz dele um clássico naquela acepção inaugurada pelo autor da Odisséia.


Cadernos de Literatura Brasileira
João Guimarães Rosa
números 20 e 21. Dezembro de 2006.
Instituto Moreira Salles.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

RAPOSOS


PANEM NOSTRUM



CLAMANDO...

Bárbaros vão, dementes e terríveis
Bonzos tremendos de ferrenho aspecto,
Ah! deste ser todo o clarão secreto
Jamais pôde inflamar-vos, Impassíveis!

Tantas guerras bizarras e incoercíveis
No tempo e tanto, tanto imenso afeto,
São para vós menos que um verme e inseto
Na corrente vital pouco sensíveis.

No entanto nessas guerras mais bizarras
De sol, clarins e rútilas fanfarras,
Nessas radiantes e profundas guerras...

As minhas carnes se dilaceraram
E vão, das Ilusões que flamejaram,
Com o próprio sangue fecundando as terras...


Cruz e Sousa
Broquéis

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

SETE LAGOAS


A BÍBLIA SAGRADA



José fora portanto levado ao Egito. Putifar, eunuco do Faraó e comandante dos guardas, um egípcio, comprou-o dos ismaelitas que o levaram para lá. Ora, Iahweh, assistiu a José, que em tudo teve êxito, e ficou na casa de seu senhor, e egípcio. Como seu senhor via que Iahweh o assistia e fazia prosperar, em suas mãos, tudo o que empreendia, José encontrou graça a seus olhos: foi posto a serviço do senhor, que o instituiu seu mordomo e lhe confiou tudo o que lhe pertencia. E a partir do momento em que ele foi foi preposto à sua casa e ao que lhe pertencia, Iahweh abençoou a casa do egípcio, em consideração a José: a bênção de Iahweh atingiu tudo o que ele possuía em casa e nos campos. Então entregou nas mãos de José tudo o que tinha e, com ele, não se preocupou com mais nada, a não ser com a comida que tomava. José era belo de porte e tinha um rosto belo.


Gn 39, 1-6

ENTRE RIOS DE MINAS


OS NOVOS INCONFIDENTES



APOSENTADORIA   (Cont.)

Evandro de Oliveira Bastos
Evaristo de Moraes Filho
Everardo de Souza
Everardo Moés da Silva
Ewaldo de Almeida Pinto
Eziquiel Bentes Pereira
Fabiano Villanova Machado
Fábio Lucas Gomes
Fábio Moreira Lima
Félix de Mello
Fenelon Assumpção de Araújo Filho
Ferdinando de Morais
Fernando Barbará de Freitas
Fernando Braga Ubatuba
Fernando de Oliveira Coutinho
Fernando do Nascimento
Fernando Henrique Cardoso
Fernando Linhares de Souza
Flávio Antônio Lopes Ramos
Flávio Pereira Guimarães
Florduardo Sena
Florestan Fernandes
Floriceno Paixão
Flory Druck Kruel
Francisca Brizola Rotta
Francisco Assis dos Santos
Francisco Assunção de Macedo
Francisco Calixto de Jesus
Francisco Carlos de Castro
Francisco Caruso
Francisco Celso Ribeiro
Francisco Chagas Lopes
Francisco Cláudio Medeiros
Francisco das Chagas Caldas Rodrigues
Francisco das Chagas Soares
Francisco de Assis Coelho
Francisco de Assis Moura
Francisco de Sales Soares
Francisco Machado Bacurau
Francisco Mangabeira
Francisco Maranhão Japiassu
Francisco Oswaldo de Oliveira
Francisco Pedro de Souza
Francisco Ribeiro da Silva
Francisco Rodrigues de Miranda
Francisco Xavier de Souza
Frederico Gomes da Silva
Gaeta Gaspar
Gélson Brandão Marques
Geraldo Bonfim de Freitas
Geraldo Carneiro de Andrade
Geraldo de Oliveira
Geraldo de Pinho Alves

sábado, 18 de agosto de 2012

CORDISBURGO


UM APRENDIZ DE FEITICEIRO



LAMENTO POR QUEM NESTA VIDA SE CHAMOU
CLARICE LISPECTOR

Morrer para ti foi completar-te
no mergulho macio que te faz
envolver, marinha, o doce mundo,
mundo de nojo, feroz e impassível
com o qual, agora, te misturas
como esterco, como terra, como pedra,
pois tanto e tanto, desde sempre, namoravas
o sonho mais real, pois impossível,
de te fazeres com o deus o caule e a flor.


1981.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

PETRÓPOLIS


OTELO E SANT'IAGO



UM DEVER AMARÍSSIMO!

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, serviam a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo.Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto com um aro de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Erra magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!


Machado de Assis
Dom Casmurro