sábado, 4 de agosto de 2012

MACHADO



O BOATO DO PADRE

Sendo proposta moderna, o projeto de um hospício em Itaguaí foi interpretado pelos cidadãos como manifestação de loucura. Viu-se acima que, entre esses, distinguiu-se o padre Lopes, vigário da cidade. Apesar da oposição do povo e da Igreja, Simão Bacamarte obtém a licença, constrói o prédio, instala o sanatório e inicia o recolhimento dos loucos. Por ser grande cientista, ele não pretendia propriamente curar os insanos senão estudar a loucura, encontrar sua causa e descobrir o remédio para todos. Segundo o seu conceito, a normalidade decorria do domínio do juízo, responsável pelo “equilíbrio das faculdades”. A falta de razão gerava o desequilíbrio, caracterizava a exceção e produzia a demência. Antes do hospício de Bacamarte, a loucura assemelhava-se a uma ilha isolada no “oceano da razão”. Depois, assumiu proporções de continente. Seria função da ciência, pois, procurar a pérola do juízo, escondida na “concha do espírito”. Em pouco tempo, o hospício estava repleto e teve de ser ampliado. Padre Lopes manifestou-se francamente contra o novo conceito e passou a vigiar o médico. Apoiado pela população, o barbeiro Porfírio articula uma revolta para destruir o sanatório e exilar o cientista, mas nada obtém contra a firmeza de Bacamarte. Somente o padre, controlando habilmente a excessiva racionalidade e coerência do diretor, consegue derrotá-lo, internando-o na Casa Verde. No final, o texto insinua que o mesmo padre lançou o boato de que nunca existira outro louco em Itaguaí senão o próprio alienista.

A tradição de leitura da nova tem-se orientado pela perspectiva do boato atribuído ao vigário, pois acata essa versão como se fosse axioma conclusivo do texto, supondo que o médico fosse um louco consumado desde o início da narrativa. Acredito que tal entendimento mutila a equivocidade da ficção, pois, segundo sua estrutura, o alienista não se define cabalmente pela demência; foi assim considerado por artifício da Igreja. A voz do narrador limita-se a insinuar extravagância e excesso de convicção no cientista, mas o padre vai além, valendo-se de refinada manipulação dos conceitos do próprio Bacamarte. Essa será mais uma astúcia do texto, que multiplica suas vozes como forma de ampliar a significação. Afinal, em que consiste a diferença entre ser razoável e parecer insano? Nesse paradoxo reside outra chave do humor da novela, que instaura uma lógica de espelhos distorcidos, em que as verdades do poder e as práticas sociais prescindem dos fundamentos da razão, produzindo um constante jogo entre deformação da imagem e corrosão da matriz. É o que se pode depreender do último parágrafo de O Alienista:

Alguns chegam ao ponto de conjecturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

Como se vê, o desfecho da narrativa sugere que, apesar dos esforços da racionalidade civil — ficcional e ironicamente representada — cabe à Igreja o estabelecimento dos padrões. Antes disso, no decorrer dos eventos que constituem a trama da novela, a disputa entre essas duas forças foi concebida como fundamento do suspense do texto. Sendo esse o fio condutor da ação, torna-se aceitável o princípio de que O Alienista se constrói como variante verbal do discurso irônico segundo o qual o poder internacional da Igreja pretendia sobrepor-se ao do Imperador no Brasil.

Aos defensores da presumível racionalidade civil da época, essa pretensão soava tanto mais paradoxal quanto mais se sabia que a Constituição do Império dispunha que os padres fossem funcionários do Estado, donde lhes vinha a côngrua. Retomarei o último parágrafo de O Alienista, comparando a versão de A Estação com a de Papéis Avulsos.

No tempo da Questão Religiosa ou Questão dos Bispos, circulavam, basicamente, dois tipos de discursos contra a Igreja no Brasil: um sisudo, doutrinário e administrativo, representado sobretudo pelos maçons, entre os quais se destacavam o deputado e jornalista Joaquim Saldanha Marinho e o Visconde do Rio Branco; e um divertido e insinuante, representado pela caricatura das publicações satíricas, entre as quais se contavam os mencionados jornais litografados, muito em evidência na ocasião: Revista Ilustrada, O Mosquito e Vida Fluminense. Sem desconsiderar o primeiro tipo de discurso, Machado de Assis filia sua novela à tradição do segundo.  Assim o padre Lopes é concebido conforme o estereótipo popular do vigário finório, que, sempre pronto a ocultar as próprias intenções, só revela seu pensamento quando este reflete a hierarquia e os dogmas da Igreja, em nome de quem sempre fala e age. Como se viu no capítulo anterior, ele segue mais ou menos o padrão do dissimulado de Teofrasto, sem contudo apresentar o traço definitivamente malévolo do outro. Parece, igualmente, que padre Lopes traz em si alguns traços de certa tradição provinciana de pessoa hipócrita e sem densidade moral — algo próximo do que se observa, por exemplo, numa charge de Cândido de Faria, publicada em 1876 em O Mosquito (n. 355, ano 8). Nela, encena-se um diálogo entre dois membros de uma irmandade religiosa, um dos quais maçom, sobre os supostos motivos da oposição da Igreja à maçonaria, que não seriam propriamente conceituais, mas circunstanciais, tal como se depreende da legenda da gravura. Na imagem, é evidente o contraste entre a fisionomia franca dos irmãos e os trejeitos sutis do padre.

A hipótese de que O Alienista incorpora à ficção o discurso da caricatura anticlerical do tempo não só procura recolocar a narrativa em seu ambiente de produção e circulação, historicizando seu sentido, como também pretende ampliar o conhecimento do repertório técnico do autor, chamando atenção para o modo construtivo do seu texto. Além disso, talvez possa estabelecer vínculos do pensamento artístico de Machado de Assis com a recente tradição anticlerical da época, presente tanto na ficção realista quanto nas convicções jurídicas de certa ala do partido liberal — que via no catolicismo um obstáculo contra a plenitude da cidadania e contra a autenticidade e alegria da ordem social. Nesse sentido, O Alienista poderá também ser entendido como intervenção de apoio à renovação institucional do país, então dividido entre valores do Antigo Regime e o projeto de um Estado laico, sem escravos, democrático e republicano. Mais do que isso, as conclusões da presente leitura poderão, eventualmente, contribuir para a confirmação do relativismo irônico do autor, visto ter preferido, nessa novela, as nuanças da caricatura à ortodoxia das doutrinas. Mas a opção pelo desenho humorístico não elimina nem atenua o teor conceitual do texto machadiano, antes o enriquece com a variedade das insinuações polivalentes. Por fim, suponho, ainda, que a perspectiva histórica do presente ensaio possa igualmente se justificar pela investigação do sentido imanente do texto literário — entendido como resultado de relações com a história dos discursos, da imprensa, da moda, de outras formas de arte e das transformações do repertório técnico e temático do autor. Mas, como se viu anteriormente, a alegoria paródica da disputa pelo poder em O Alienista pressupõe a figuração de outras forças, das quais se tratará adiante.


Ivan Teixeira
O Altar & o Trono
Dinâmica do Poder em O Alienista
Ateliê Editorial. Editora Unicamp.
Cotia, SP. Campinas, SP. 2010.