O
BOATO DO PADRE
Sendo
proposta moderna, o projeto de um hospício em Itaguaí foi interpretado pelos
cidadãos como manifestação de loucura. Viu-se acima que, entre esses,
distinguiu-se o padre Lopes, vigário da cidade. Apesar da oposição do povo e da
Igreja, Simão Bacamarte obtém a licença, constrói o prédio, instala o sanatório
e inicia o recolhimento dos loucos. Por ser grande cientista, ele não pretendia
propriamente curar os insanos senão estudar a loucura, encontrar sua causa e
descobrir o remédio para todos. Segundo o seu conceito, a normalidade decorria
do domínio do juízo, responsável pelo “equilíbrio das faculdades”. A falta de
razão gerava o desequilíbrio, caracterizava a exceção e produzia a demência.
Antes do hospício de Bacamarte, a loucura assemelhava-se a uma ilha isolada no
“oceano da razão”. Depois, assumiu proporções de continente. Seria função da
ciência, pois, procurar a pérola do juízo, escondida na “concha do espírito”.
Em pouco tempo, o hospício estava repleto e teve de ser ampliado. Padre Lopes
manifestou-se francamente contra o novo conceito e passou a vigiar o médico.
Apoiado pela população, o barbeiro Porfírio articula uma revolta para destruir
o sanatório e exilar o cientista, mas nada obtém contra a firmeza de Bacamarte.
Somente o padre, controlando habilmente a excessiva racionalidade e coerência
do diretor, consegue derrotá-lo, internando-o na Casa Verde. No final, o texto
insinua que o mesmo padre lançou o boato de que nunca existira outro louco em
Itaguaí senão o próprio alienista.
A
tradição de leitura da nova tem-se orientado pela perspectiva do boato
atribuído ao vigário, pois acata essa versão como se fosse axioma conclusivo do
texto, supondo que o médico fosse um louco consumado desde o início da
narrativa. Acredito que tal entendimento mutila a equivocidade da ficção, pois,
segundo sua estrutura, o alienista não se define cabalmente pela demência; foi
assim considerado por artifício da Igreja. A voz do narrador limita-se a
insinuar extravagância e excesso de convicção no cientista, mas o padre vai
além, valendo-se de refinada manipulação dos conceitos do próprio Bacamarte.
Essa será mais uma astúcia do texto, que multiplica suas vozes como forma de
ampliar a significação. Afinal, em que consiste a diferença entre ser razoável
e parecer insano? Nesse paradoxo reside outra chave do humor da novela, que
instaura uma lógica de espelhos distorcidos, em que as verdades do poder e as
práticas sociais prescindem dos fundamentos da razão, produzindo um constante
jogo entre deformação da imagem e corrosão da matriz. É o que se pode
depreender do último parágrafo de O
Alienista:
Alguns chegam ao ponto de conjecturar
que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas esta opinião, fundada
em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova,
senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao padre Lopes, que com tanto
fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o
enterro com muita pompa e rara solenidade.
Como
se vê, o desfecho da narrativa sugere que, apesar dos esforços da racionalidade
civil — ficcional e ironicamente representada — cabe à Igreja o estabelecimento
dos padrões. Antes disso, no decorrer dos eventos que constituem a trama da
novela, a disputa entre essas duas forças foi concebida como fundamento do
suspense do texto. Sendo esse o fio condutor da ação, torna-se aceitável o
princípio de que O Alienista se
constrói como variante verbal do discurso irônico segundo o qual o poder
internacional da Igreja pretendia sobrepor-se ao do Imperador no Brasil.
Aos
defensores da presumível racionalidade civil da época, essa pretensão soava
tanto mais paradoxal quanto mais se sabia que a Constituição do Império
dispunha que os padres fossem funcionários do Estado, donde lhes vinha a
côngrua. Retomarei o último parágrafo de O
Alienista, comparando a versão de A
Estação com a de Papéis Avulsos.
No
tempo da Questão Religiosa ou Questão dos Bispos, circulavam, basicamente, dois
tipos de discursos contra a Igreja no Brasil: um sisudo, doutrinário e
administrativo, representado sobretudo pelos maçons, entre os quais se
destacavam o deputado e jornalista Joaquim Saldanha Marinho e o Visconde do Rio
Branco; e um divertido e insinuante, representado pela caricatura das
publicações satíricas, entre as quais se contavam os mencionados jornais
litografados, muito em evidência na ocasião: Revista Ilustrada, O Mosquito e
Vida Fluminense. Sem desconsiderar o primeiro tipo de discurso, Machado de
Assis filia sua novela à tradição do segundo.
Assim o padre Lopes é concebido conforme o estereótipo popular do
vigário finório, que, sempre pronto a ocultar as próprias intenções, só revela seu
pensamento quando este reflete a hierarquia e os dogmas da Igreja, em nome de
quem sempre fala e age. Como se viu no capítulo anterior, ele segue mais ou
menos o padrão do dissimulado de Teofrasto, sem contudo apresentar o traço
definitivamente malévolo do outro. Parece, igualmente, que padre Lopes traz em
si alguns traços de certa tradição provinciana de pessoa hipócrita e sem
densidade moral — algo próximo do que se observa, por exemplo, numa charge de
Cândido de Faria, publicada em 1876 em O Mosquito
(n. 355, ano 8). Nela, encena-se um diálogo entre dois membros de uma irmandade
religiosa, um dos quais maçom, sobre os supostos motivos da oposição da Igreja
à maçonaria, que não seriam propriamente conceituais, mas circunstanciais, tal
como se depreende da legenda da gravura. Na imagem, é evidente o contraste
entre a fisionomia franca dos irmãos e os trejeitos sutis do padre.
A
hipótese de que O Alienista incorpora
à ficção o discurso da caricatura anticlerical do tempo não só procura
recolocar a narrativa em seu ambiente de produção e circulação, historicizando
seu sentido, como também pretende ampliar o conhecimento do repertório técnico
do autor, chamando atenção para o modo construtivo do seu texto. Além disso,
talvez possa estabelecer vínculos do pensamento artístico de Machado de Assis
com a recente tradição anticlerical da época, presente tanto na ficção realista
quanto nas convicções jurídicas de certa ala do partido liberal — que via no
catolicismo um obstáculo contra a plenitude da cidadania e contra a
autenticidade e alegria da ordem social. Nesse sentido, O Alienista poderá também ser entendido como intervenção de apoio à
renovação institucional do país, então dividido entre valores do Antigo Regime
e o projeto de um Estado laico, sem escravos, democrático e republicano. Mais
do que isso, as conclusões da presente leitura poderão, eventualmente,
contribuir para a confirmação do relativismo irônico do autor, visto ter
preferido, nessa novela, as nuanças da caricatura à ortodoxia das doutrinas. Mas
a opção pelo desenho humorístico não elimina nem atenua o teor conceitual do
texto machadiano, antes o enriquece com a variedade das insinuações
polivalentes. Por fim, suponho, ainda, que a perspectiva histórica do presente
ensaio possa igualmente se justificar pela investigação do sentido imanente do
texto literário — entendido como resultado de relações com a história dos
discursos, da imprensa, da moda, de outras formas de arte e das transformações
do repertório técnico e temático do autor. Mas, como se viu anteriormente, a
alegoria paródica da disputa pelo poder em O
Alienista pressupõe a figuração de outras forças, das
quais se tratará adiante.
Ivan
Teixeira
O
Altar & o Trono
Dinâmica
do Poder em O Alienista
Ateliê
Editorial. Editora Unicamp.
Cotia,
SP. Campinas, SP. 2010.