terça-feira, 14 de agosto de 2012

MACHADO



Por que escrever ainda sobre o significado da ficção machadiana? Um século de leituras já não terá descido ao fundo da questão, examinando-a pelos ângulos biográfico, psicológico, sociológico, filosófico, estético? Não seria o caso de revisitar essa ampla e díspar bibliografia que já conta com intérpretes notáveis pela argúcia e erudição, em vez de tentar, uma vez mais, decifrar enigmas  que já estariam afinal aclarados?

A empresa, confesso, também a mim me pareceu às vezes temerária; mas se a ensaio de novo, ciente dos riscos que a envolvem, é porque, lidos os melhores estudos sobre Machado, advirto ainda, em face do problema central da perspectiva, um resíduo de insatisfação cognitiva e desconforto moral. E voltando pela enésima vez aos seus romances e contos, sempre me aparece um hiato entre os conceitos da crítica e as figuras do texto-fonte. Talvez esse intervalo seja mesmo infranqueável, se individuum est ineffabile. No entanto, tudo está em diminuí-lo até os limites do possível e procurar responder à questão crucial do sentido, que está no horizonte de toda interpretação literária.

Dizem que a formulação justa de um problema já é meio caminho andado para resolvê-lo. Neste caso, trata-se de entender o olhar machadiano, o que um modo existencial de lidar com a perspectiva, a visão do narrador, o ponto de vista ou, mais tecnicamente, com o foco narrativo.

Olhar tem a vantagem de ser móvel, o que não é o caso, por exemplo, de ponto de vista. O olhar é ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ora cognitivo e, no limite, definidor, ora é emotivo ou passional. O olho que perscruta e quer saber objetivamente das coisas pode ser também o olho que ri ou chora, ama ou detesta, admira ou despreza. Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento.

O que se tem até hoje como consenso é a qualificação da perspectiva de Machado de Assis por meio de epítetos negativos: cética, relativista, irônica, sardônica, sarcástica, pessimista, demoníaca. Os leitores sensíveis à pátina decorosa da sua escrita compensam a negatividade da impressão geral com atributos de atenuação que, afinal, sempre remetem ao fundo escuro que estaria sendo matizado: estaria sendo matizado: estilo diplomático, contido, medido, civilizado, mediador. Um olhar que morde e assopra. Primeiro morde: o barro comum da humanidade (a expressão está em A Mão e a Luva), embora comum, é sempre barro. Depois, assopra: o barro, sendo barro, é afinal comum a todos.

Negação e atenuação. Gesto crítico e tom concessivo. O equilíbrio entreos dois modos de olhar parece o do terrorista que precisa fingir-se de diplomata; ou o do diplomata que não esquece a sua outra metade, oculta, de terrorista. É o Machado que sai da leitura do seu testamento moral e literário, o Memorial de Aires.

Mas a descrição não contém ainda a interpretação, embora seja a sua honestidade, como disse Delacroix do desenho em relação à pintura. A descrição reconhece e mapeia as visadas distintas de um olhar que não queria perder nenhuma dimensão essencial do seu objeto; mas, como toda análise, requer o momento da compreensão.

O objeto principal de Machado de Assis é o comportamento humano. Esse horizonte é atingido mediante a percepção de palavras, pensamentos, obras e silêncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo Império. A referência local e histórica não é de somenos; e para a crítica sociológica é quase-tudo. De todo modo, pulsa neste  quase uma força de universalização que faz Machado inteligível em línguas, culturas e tempos bem diversos do seu vernáculo luso-carioca e do seu repertório de pessoas e situações do nosso restrito Oitocentos fluminense burguês. Se hoje podemos incorporar à nossa percepção do social o olhar machadiano de um século atrás, é porque este olhar foi penetrado de valores e ideais cujo dinamismo não se esgotava no quadro espaço-temporal em que se exerceu. Largo e profundo é, portanto, o campo do “quase” naquele quase-tudo.

De resto, por que Machado só poderia ter juízos de valor e ideais derivados imediatamente do regime paternalista dos meados do século XIX na cidade do Rio de Janeiro? Por acaso a luz deriva dos objetos iluminados por ela? A historicidade que penetra os processos simbólicos é mais aberta e complexa do que o tempo do relógio, que só mede a conjuntura relativa à contingência biográfica do autor. A historicidade em que se inscreve uma obra de ficção traz em si dimensões da imaginação, da memória e do juízo crítico. Valores culturais e estilos de pensar configuram a visão do mundo do romancista, e este pode ora coincidir com a ideologia dominante no seu meio, ora afastar-se dela e julgá-la. Objeto do olhar e modo de ver são fenômenos de qualidade diversa; é o segundo que dá forma e sentido ao primeiro.

A insatisfação, que mencionei linhas atrás, vem dos limites mesmos das tendências simplificadoras (enquanto sincronizadoras) com que tantas vezes lemos os modos pelos quais o narrador qualifica as suas personagens.

Creio que se faça aqui necessária uma abordagem flexível, interessada não só no mesmo e no típico, mas também na diferença e na singularidade. Porque os objetos do olhar narrativo são descontínuos, e são diversas as maneiras de encará-los: a intencionalidade do autor desloca-se, e é preciso acompanhar cada uma das suas visadas.

Começo pelo degrau inferior, mais longo e mais largo que os demais. Machado se compraz na mimese incisiva de certos tipos representativos de uma sociedade como a do Segundo Império, repartida grosso modo em proprietários, funcionários, agregados e escravos. É a cota do seu realismo, em senso estrito, apontado e louvado como materialista por um dos pioneiros da crítica marxista entre nós, o militante Astrojildo Pereira. A sua estimável coletânea de estudos machadianos, que timbra pela coerência ideológica, concentra-se toda na idéia da tipicidade das personagens. Um dos seus apoios teóricos, o ortodoxo Plekhanov, é citado em abono da tese da arte como reflexo da sociedade.

“A psicologia das personagens adquire enorme importância aos nossos olhos, exatamente porque é a psicologia de classes sociais inteiras, ou pelo menos de certas camadas sociais; e sendo assim, podemos verificar que os processos que se desenvolvem na alma das diferentes personagens são o reflexo conseqüente do movimento histórico a que pertencem (L’art et la vie sociale. Ed. Sociales, 1953, p. 216).”

Comenta Astrojildo Pereira: “Eis aí uma boa chave para a compreensão das íntimas conexões que existem entre a obra de Machado de Assis e a história social do tempo que ele reflete.”

A tipicidade repropõe-se em outro estudioso de Machado, o ensaísta Raymundo Faoro. Aqui, porém, em vez de um fiel arauto da esquerda histórica, temos um liberal-democrata forrado de sociologia weberiana. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio é um alentado recenseamento das personagens do romancista. E como todo censo feito com pessoas físicas, o levantamento não prescinde da espinha dorsal da pesquisa demográfica: a classificação. Classes sociais, grupos de status, camadas ou estamentos, corporações militares, maçônicas ou religiosas; fazendeiros, negociantes, banqueiros, políticos, funcionários e empregados; comendadores e conselheiros do Império..., estas seriam as peças do sistema, as marcas de identidade que explicariam, pela dinâmica dos seus interesses, os comportamentos públicos e as intenções secretas da vasta população observada pelo bruxo de Cosme Velho.


Alfredo Bosi
Machado de Assis
o enigma do olhar
Ática. São Paulo, SP. 2003.