DO LADO DE CÁ
Às vezes Guimarães Rosa escreve como quem está em
estado de graça; “A Terceira Margem do Rio”é um desses casos. Num dos prefácios
de Tutaméia — Terceiras Estórias, dela
diz o autor que a imaginou completa, andando na rua, recebendo-a como quem
apara uma bola no ar. Como “A Hora e Vez de Augusto Matraga” se destaca de Sagarana e “Meu Tio o Iauaretê de Estas Estórias, esta salta para fora do
livro que a contém, Primeiras Estórias. Foi
o que percebeu o tradutor para língua inglesa, ao intitular o volume The Third Bank of the River and other
Stories.
A estória desfere seu caráter de iluminação, de
olhar súbito para dentro do indizível, de figurado relato hermético de quem
retorna de iniciação em elêusicos mistérios. A terceira marge do rio é a que
não é. Um rio é constituído por duas margens, a do lado de cá e a do lado de
lá, que reciprocamente se remetem. Entretanto, entre elas corre o rio, imagem
da continuidade; e no rio navega uma canoa, imagem da descontinuidade. A
passagem do tempo é insignificante para o rio, fundamental para a canoa e seu
ocupante. O período de uma vida, de cada vida, não é nada quando colocado
contra a lentíssima história da espécie; mal se começa a desconfiar que se está
vivo e já é hora de morrer. A inevitabilidade de viver e de morrer, quando
vistas a vida e a morte como solidárias — só morre o que vive e só vive o que
morre —, implica na continuidade do processo vital, em que vida e morte são
razão e causa uma da outra. O rio, então, tem duas margens. que são; e uma
terceira margem, que não é.
A terceira margem fica para lá do mistério da
morte, da morte de cada um, que cada um tem de viver e que nunca ninguém contou
como é. As duas margens do rio situam-se num e mesmo nível de realidade. A
terceira margem não se sabe, ainda que, na linguagem cifrada da mitologia e das
religiões, seja freqüente o símbolo da praia, ou margem, ou terra firme, onde
se chega quando se morre. Essa arcaica tradição atravessa os tempos e se faz
presente hoje nos hinos religiosos, de que são apenas um exemplo as spirituals negros norte-americanos:
When you reach the rivah Jurdun,
You got tuh croo it by yo’sef;
No one heah may cross it with you,
You thot tuh cross it by yo’sef.
O estribilho dessa canção insiste na
impossibilidade da delegação da experiência: You got tuh go that by yo’sef. E a concepção geral é a de que
estamos do lado de cá, sendo preciso por meio da morte atravessar a água para
chegar ao lado de lá. Assim, os símbolos da margem, do rio e da canoa, afora a
importância que têm na obra desta autor, são imemoriais em sua utilização e
desencadeiam um rastilho de significados precisos.
A estória de Guimarães Rosa habilmente desbanaliza
o lugar-comum das duas margens, a da vida e a da morte, introduzindo uma
terceira margem. As duas margens do rio situam-se em firmes e reconfortantes
coordenadas de tempo e espaço; a terceira escapa para uma dimensão
desconhecida. O simples deslocamento do numeral cardinal para o ordinal retira
o chão de debaixo dos pés. Um rio tem duas margens, de igual estatuto, não uma
primeira margem e uma segunda margem. A mudança para o ordinal incide ainda
numa seriação e numa outra temporalidade. Se há duas margens, não uma primeira
e uma segunda, como pode haver uma terceira? Nossa experiência não reconhece
três margens num rio; reconhece duas. Igualmente não reconhece uma primeira e
uma segunda, quanto mais uma terceira.
Esta outra dimensão, desobediente às coordenadas de
tempo e espaço, não é diretamente nomeada ou explicitada na estória. Apenas o
insólito título e a fuga ante o pai que parecia volta “da parte de além”. Mas a
simbólica do rio, da canoa e da outra plaga onde se chega morrendo, faz reverberar
o relato contra o fundo mítico de todas as águas e barcas e terras firmes com
que há milênios a imaginação dos homens adorna o terror de morrer. Nada aqui,
neste texto, de promessa de uma outra vida depois da morte, nem de vida eterna,
nem de recompensas para os bem-comportados. Apenas o espanto pânico ante o que
não é.
Essa terceira margem tenta escapar a uma lógica
binária a que a mente humana parece condenada. As duas margens, reenviando-se
uma à outra, desembocam no devir: embora paradas, entre elas o rio corre, em
perene continuidade; o que possibilita o surgimento de um terceiro termo, e daí
por diante, até o enésimo
A continuidade é recortada pela imagem da canoa que
um só homem ocupa. A solidão da morte proíbe que mais de um ocupe a canoa de
cada vez. Cada qual embarca na mesma canoa, dando continuidade ao processo
vital, mas, se a canoa é a mesma, o indivíduo sozinho nela é outro. A canoa é
descontínua, todavia cada qual tem que por sua vez nela embarcar. Assim, embora
imagem literária descontínua, ela se torna uma passagem da descontinuidade para
a continuidade, tal como é um objeto de travessia. Por sua natureza, partilha
da descontinuidade ; mas sendo, metaforicamente, a mesma canoa, confirma sua
posição contínua. Por isso, o narrador não consegue substituir o pai naquela
canoa, mas pede outra canoa, igual, para dentro dela morrer. O que fica entre
nós e a morte, o que nos protege da morte, é a geração precedente; quando
essa morre, somos os próximos da fila,
desaparecida a barreira de proteção. O magistral acerto identifica pai e
Caronte, cada pai é ao mesmo tempo o barqueiro da morte, sendo o pai aquele que
dá a vida e conduz à morte.
A continuidade da espécie é garantida pela sucessão
das gerações, cuja suma é a relação pai/filho e filho/pai. O narrador, que aqui
é filho, se recusa a substituir o pai na mesma canoa e não tem filhos. Tem-se
que encarar a nossa vez de morrer, mas detendo a opção, não de não morrer, mas
de não encarar a nossa vez de morrer. Esta última é a que o narrador faz.
E aqui entra, complexa, delicada, forte e profunda,
a questão dos laçoes de família. Amor e culpa são os sentimentos que unem o
narrador ao pai. Diz: “De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?”, mas não
arreda pé da beira do rio. Já desejara acompanhar o pai quando este iniciara
sua inexplicável permanência na canoa; depois, rouba comida, que esconde no
barranco do rio para o pai vir apanhar, o que faz a vida inteira. E, quando a
família se dispersa e muda-se para outros lugares, ele fica ali. São três os
filhos, uma mulher e dois homens, todavia só ele é que tem esta relação
particular com o pai. Os nexos de amor e culpa que unem pais a filhos, filhos a
pais, aparecem aqui em toda a sua arbitrariedade. Também Jeová preferia um a
outro sem qualquer justa razão, sendo assim o verdadeiro responsável pelo crime
de Caim; somente gostara mais da oferenda de Abel, provocando o ciúme do irmão.
Os pais impõem seu peso de amor sobre os filhos e cobram de volta; qualquer
coisa menos que a perfeição abre uma frincha pela qual se esgueira a culpa. O
pai, esperando retribuição do filho, pode ter no filho o cumprimento de suas
expectativas; neste caso, o filho obtém satisfações, mas à custa de reprimir
muitas outras coisas. Afinal, é-se outro, não um papel vazio a que qualquer
pessoa pode se adaptar. Mas o filho pode também não corresponder aos desígnios
do pai, ficando paralisado pela culpa e se tornando impotente para qualquer
realização, mesmo que essa realização seja a construção de sua própria vida.
Aqui, o filho distinguido pelo pai para ser seu continuador se excusa, mas com
isso acabou-se sua própria vida, que decorre à margem do rio procurando ver o
pai. Diz: “Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai
ficar calado”. A repressão patriarcal, geral, mas enorme em famílias mais
fortemente patriarcais do tipo da brasileira, detém maior poder que as outras
repressões institucionais.Ninguém conseguiu fazer o pai voltar do rio, nem a
mãe nem os filhos, nem o neto, nem o padre, nem os soldados, nem os homens do
jornal. Mas este filho consegue, ao curvar-se ao que o pai queria, prometendo,
sem ter forças para tanto, substituí-lo na canoa.
A fala do relato flui incessante, em frases curtas,
separadas por vírgulas, mimetizando a fala real. O potencial explosivo da
matéria narrada às vezes obstrui o fluxo, dinamitando a sintaxe, expondo o
inefável e obtendo momentos de densa beleza. Como a propósito da culpa: “ Se o
meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo”. Ou
as palavras do fecho, quando o narrador pede para, por sua vez, ser posto numa
canoa: “e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro —o rio”. O sábio uso do
possessivo plural de primeira pessoa (nosso pai, nossa mãe, nossa casa, tio
nosso, aparentados nossos) unido à omissão cuidadosa de nomes próprios,
ressalta o pelo das relações de família e de geração, aplastando a
individualidade.
E basta. Para escrever a respeito dessa estória,
seria necessário uma mão iluminada como a de Guimarães Rosa. Que se leia,
sucessivas vezes, mil vezes, enésimas vezes, não uma e duas vezes, em respeito
a sua proposta, “A Terceira Margem do Rio”.
Walnice Nogueira Galvão
Do Lado de Cá
Ática. São Paulo, SP. 1978.