quinta-feira, 2 de agosto de 2012

GR



DO LADO DE CÁ

Às vezes Guimarães Rosa escreve como quem está em estado de graça; “A Terceira Margem do Rio”é um desses casos. Num dos prefácios de Tutaméia — Terceiras Estórias, dela diz o autor que a imaginou completa, andando na rua, recebendo-a como quem apara uma bola no ar. Como “A Hora e Vez de Augusto Matraga” se destaca de Sagarana e “Meu Tio o Iauaretê de Estas Estórias, esta salta para fora do livro que a contém, Primeiras Estórias. Foi o que percebeu o tradutor para língua inglesa, ao intitular o volume The Third Bank of the River and other Stories.

A estória desfere seu caráter de iluminação, de olhar súbito para dentro do indizível, de figurado relato hermético de quem retorna de iniciação em elêusicos mistérios. A terceira marge do rio é a que não é. Um rio é constituído por duas margens, a do lado de cá e a do lado de lá, que reciprocamente se remetem. Entretanto, entre elas corre o rio, imagem da continuidade; e no rio navega uma canoa, imagem da descontinuidade. A passagem do tempo é insignificante para o rio, fundamental para a canoa e seu ocupante. O período de uma vida, de cada vida, não é nada quando colocado contra a lentíssima história da espécie; mal se começa a desconfiar que se está vivo e já é hora de morrer. A inevitabilidade de viver e de morrer, quando vistas a vida e a morte como solidárias — só morre o que vive e só vive o que morre —, implica na continuidade do processo vital, em que vida e morte são razão e causa uma da outra. O rio, então, tem duas margens. que são; e uma terceira margem, que não é.

A terceira margem fica para lá do mistério da morte, da morte de cada um, que cada um tem de viver e que nunca ninguém contou como é. As duas margens do rio situam-se num e mesmo nível de realidade. A terceira margem não se sabe, ainda que, na linguagem cifrada da mitologia e das religiões, seja freqüente o símbolo da praia, ou margem, ou terra firme, onde se chega quando se morre. Essa arcaica tradição atravessa os tempos e se faz presente hoje nos hinos religiosos, de que são apenas um exemplo as spirituals negros norte-americanos:

When you reach the rivah Jurdun,
You got tuh croo it by yo’sef;
No one heah may cross it with you,
You thot tuh cross it by yo’sef.

O estribilho dessa canção insiste na impossibilidade da delegação da experiência: You got tuh go that by yo’sef. E a concepção geral é a de que estamos do lado de cá, sendo preciso por meio da morte atravessar a água para chegar ao lado de lá. Assim, os símbolos da margem, do rio e da canoa, afora a importância que têm na obra desta autor, são imemoriais em sua utilização e desencadeiam um rastilho de significados precisos.

A estória de Guimarães Rosa habilmente desbanaliza o lugar-comum das duas margens, a da vida e a da morte, introduzindo uma terceira margem. As duas margens do rio situam-se em firmes e reconfortantes coordenadas de tempo e espaço; a terceira escapa para uma dimensão desconhecida. O simples deslocamento do numeral cardinal para o ordinal retira o chão de debaixo dos pés. Um rio tem duas margens, de igual estatuto, não uma primeira margem e uma segunda margem. A mudança para o ordinal incide ainda numa seriação e numa outra temporalidade. Se há duas margens, não uma primeira e uma segunda, como pode haver uma terceira? Nossa experiência não reconhece três margens num rio; reconhece duas. Igualmente não reconhece uma primeira e uma segunda, quanto mais uma terceira.

Esta outra dimensão, desobediente às coordenadas de tempo e espaço, não é diretamente nomeada ou explicitada na estória. Apenas o insólito título e a fuga ante o pai que parecia volta “da parte de além”. Mas a simbólica do rio, da canoa e da outra plaga onde se chega morrendo, faz reverberar o relato contra o fundo mítico de todas as águas e barcas e terras firmes com que há milênios a imaginação dos homens adorna o terror de morrer. Nada aqui, neste texto, de promessa de uma outra vida depois da morte, nem de vida eterna, nem de recompensas para os bem-comportados. Apenas o espanto pânico ante o que não é.

Essa terceira margem tenta escapar a uma lógica binária a que a mente humana parece condenada. As duas margens, reenviando-se uma à outra, desembocam no devir: embora paradas, entre elas o rio corre, em perene continuidade; o que possibilita o surgimento de um terceiro termo, e daí por diante, até o enésimo

A continuidade é recortada pela imagem da canoa que um só homem ocupa. A solidão da morte proíbe que mais de um ocupe a canoa de cada vez. Cada qual embarca na mesma canoa, dando continuidade ao processo vital, mas, se a canoa é a mesma, o indivíduo sozinho nela é outro. A canoa é descontínua, todavia cada qual tem que por sua vez nela embarcar. Assim, embora imagem literária descontínua, ela se torna uma passagem da descontinuidade para a continuidade, tal como é um objeto de travessia. Por sua natureza, partilha da descontinuidade ; mas sendo, metaforicamente, a mesma canoa, confirma sua posição contínua. Por isso, o narrador não consegue substituir o pai naquela canoa, mas pede outra canoa, igual, para dentro dela morrer. O que fica entre nós e a morte, o que nos protege da morte, é a geração precedente; quando essa  morre, somos os próximos da fila, desaparecida a barreira de proteção. O magistral acerto identifica pai e Caronte, cada pai é ao mesmo tempo o barqueiro da morte, sendo o pai aquele que dá a vida e conduz à morte.

A continuidade da espécie é garantida pela sucessão das gerações, cuja suma é a relação pai/filho e filho/pai. O narrador, que aqui é filho, se recusa a substituir o pai na mesma canoa e não tem filhos. Tem-se que encarar a nossa vez de morrer, mas detendo a opção, não de não morrer, mas de não encarar a nossa vez de morrer. Esta última é a que o narrador faz.

E aqui entra, complexa, delicada, forte e profunda, a questão dos laçoes de família. Amor e culpa são os sentimentos que unem o narrador ao pai. Diz: “De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?”, mas não arreda pé da beira do rio. Já desejara acompanhar o pai quando este iniciara sua inexplicável permanência na canoa; depois, rouba comida, que esconde no barranco do rio para o pai vir apanhar, o que faz a vida inteira. E, quando a família se dispersa e muda-se para outros lugares, ele fica ali. São três os filhos, uma mulher e dois homens, todavia só ele é que tem esta relação particular com o pai. Os nexos de amor e culpa que unem pais a filhos, filhos a pais, aparecem aqui em toda a sua arbitrariedade. Também Jeová preferia um a outro sem qualquer justa razão, sendo assim o verdadeiro responsável pelo crime de Caim; somente gostara mais da oferenda de Abel, provocando o ciúme do irmão. Os pais impõem seu peso de amor sobre os filhos e cobram de volta; qualquer coisa menos que a perfeição abre uma frincha pela qual se esgueira a culpa. O pai, esperando retribuição do filho, pode ter no filho o cumprimento de suas expectativas; neste caso, o filho obtém satisfações, mas à custa de reprimir muitas outras coisas. Afinal, é-se outro, não um papel vazio a que qualquer pessoa pode se adaptar. Mas o filho pode também não corresponder aos desígnios do pai, ficando paralisado pela culpa e se tornando impotente para qualquer realização, mesmo que essa realização seja a construção de sua própria vida. Aqui, o filho distinguido pelo pai para ser seu continuador se excusa, mas com isso acabou-se sua própria vida, que decorre à margem do rio procurando ver o pai. Diz: “Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado”. A repressão patriarcal, geral, mas enorme em famílias mais fortemente patriarcais do tipo da brasileira, detém maior poder que as outras repressões institucionais.Ninguém conseguiu fazer o pai voltar do rio, nem a mãe nem os filhos, nem o neto, nem o padre, nem os soldados, nem os homens do jornal. Mas este filho consegue, ao curvar-se ao que o pai queria, prometendo, sem ter forças para tanto, substituí-lo na canoa.

A fala do relato flui incessante, em frases curtas, separadas por vírgulas, mimetizando a fala real. O potencial explosivo da matéria narrada às vezes obstrui o fluxo, dinamitando a sintaxe, expondo o inefável e obtendo momentos de densa beleza. Como a propósito da culpa: “ Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo”. Ou as palavras do fecho, quando o narrador pede para, por sua vez, ser posto numa canoa: “e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro —o rio”. O sábio uso do possessivo plural de primeira pessoa (nosso pai, nossa mãe, nossa casa, tio nosso, aparentados nossos) unido à omissão cuidadosa de nomes próprios, ressalta o pelo das relações de família e de geração, aplastando a individualidade.

E basta. Para escrever a respeito dessa estória, seria necessário uma mão iluminada como a de Guimarães Rosa. Que se leia, sucessivas vezes, mil vezes, enésimas vezes, não uma e duas vezes, em respeito a sua proposta, “A Terceira Margem do Rio”.


Walnice Nogueira Galvão
Do Lado de Cá
em Mitológica Rosiana
Ática. São Paulo, SP. 1978.