sexta-feira, 24 de agosto de 2012

MACHADO



O VIGOR DA JUVENTUDE

Pouco se sabe sobre a vida de Machado até os quinze anos de idade. Sua modesta família não protagonizou proeza, tampouco acumulou patrimônio ou fez nome. Por sua vez, o escritor obscureceu as origens de modo a criar de si a imagem que convinha expor ao mundo.

Em seus primeiros poemas, lamentou a morte da mãe e da irmã, mas nada deixou transparecer sobre as condições em que vivia. Em depoimentos, evitou habilmente assuntos delicados, como a irregularidade dos estudos. Pouco disse sobre o aprendizado de idiomas estrangeiros.

A partir de 1854, porém, podemos acompanhá-lo pelos jornais e revistas. Estreou em poesia, gênero mais prestigioso daquele momento, quando a ficção apenas se preparava para a fulgurante carreira que lhe caberia. O debutante não demonstrou nenhuma aptidão especial, passível de passar por traço de gênio, mas o importante era se lançar.

Igual coragem demonstrou ao se imiscuir entre os maiores poetas e prosadores brasileiros em atividade, que o acolheram bem. Admiradores do bom texto, perceberam o potencial do neófito — a quem impulsionaram.

Em 1763, o Rio de Janeiro se tornou a capital da colônia. Em 1808, viveu um grande salto civilizatório, ao receber a família real e uma comitiva de portugueses com boa formação. Nada disso impediu, porém, que ao final da década de 1830 a sede do Império brasileiro fosse suja, insalubre e mal iluminada.

Por falta de saneamento, os dejetos eram transportados por carroças e escravos até o mar. A tuberculose e outras moléstias assolavam. Freqüentes eram as epidemias de doenças como cólera e sarampo. A pessoa que sobrevivesse a tantas ameaças e chegasse aos cinqüenta anos de idade tinha motivo de sobra para comemorar.

Os quase 300 mil habitantes se distribuíam irregularmente pelo perímetro urbano, no qual se privilegiava a zona central. Os montes próximos ao porto eram ocupados por instalações militares e religiosas, assim como por grandes chácaras e quintas organizadas em torno de mansões.

Uma dessas propriedades era o Morro do Livramento, pertencente a uma família portuguesa servida por vários escravos e agregados. Entre os últimos vivia a branca açoriana Maria Leopoldina Machado da Câmara, que desempenhava tarefas caseiras como costura e bordado.

Em certo momento, a colina passou a ser freqüentada pelo mulato forro Francisco José de Assis, que provavelmente subira para  prestar serviços. Encantado por Maria Leopoldina, esse pintor de parede e dourador foi correspondido: contraíram núpcias quando ela tinha 26 anos e ele, 32.

No dia 21 de junho de 1839, Maria Leopoldina deu à luz Joaquim Maria Machado de Assis. O fato de terem transcorrido apenas dez meses e dois dias desde o casamento parecia prenúncio de numerosa prole. No entanto, o casal teve apenas mais uma filha, Maria, vinda ao mundo a 3 de maio de 1841.

Os laços com os proprietários se reforçaram: Machado teve como madrinha a viúva Maria José de Mendonça Barroso Pereira, então dona exclusiva do Livramento, cuja filha batizou Maria Machado de Assis. Dava-se continuidade ao hábito de os padrinhos serem pessoas de posses, por conseguinte em condições de assumir os afilhados em caso de desgraça dos pais.

Podemos imaginar o autor levando alguns anos de vida familiar normal, humilde mas digna. Frágil de compleição, porém impulsionado pela energia da idade, corria para cima e para baixo, percorria as construções, extasiava-se com a visão da cidade maravilhosa. Também aprendia a ler e escrever, provavelmente com sua mãe, que era alfabetizada, portanto, como afirmou o biógrafo Jean-Michel Massa “podia transmitir a Joaquim Maria o seu conhecimento”.

Todavia as tragédias surgiram repentina e sucessivamente, levando primeiro a irmã de quatro anos, vítima de uma epidemia de sarampo. Quase quatro anos depois, faleceu a mãe, tísica. Como a madrinha morrera antes, restou apenas o pai, com quem Machado viveu sozinho por mais de cinco anos.

Aos 48 anos, Francisco José casou com a mulata Maria Inês da Silva, que não teve filhos e, afetuosa, fez-se uma verdadeira mãe do enteado. O trio ocupava agora um pequeno sobrado em São Cristóvão, onde usufruía de uma convivência doméstica harmoniosa.

A despeito de sua importância histórica, porém, o bairro jamais ofereceria tantas oportunidades quanto o centro da cidade, a apenas alguns quilômetros dali. À época, o transporte até o Cais Pharoux, na Praça XV, era feito de barca, na qual um rapazola passava todo o trajeto lendo, alheio a pessoas, belezas naturais e edificações. Era Machado, a compensar a falta de estudos regulares embebendo-se de literatura.


Dau Bastos
Machado de Assis
num recanto, um mundo inteiro
Garamond. Rio de Janeiro. 2008.