quinta-feira, 16 de agosto de 2012

EMANUEL E FEDERICO



Todos traziam, sorrateiros, o que devia ser de Deus. Ovos de gavião — cor em cor: agudos pingos e desenhos — esvaziados a furo de alfinete. Orquídeas molhadas ainda do mato, agarradas a seus braços de pau apodrecido. Balaios com musgos, que sumiam vago incenso nos seco das madeixas verde-velho. Blocos de cristais de quartzo róseo ou aqualvo. Pedras não conhecidas, minerais guardados pelo colorido ou raro formato. Um boné de oficial, passado um lação de fita. Um patacão, pesada moeda de prata antiga. Uma grande concha, gemedora, tirada com as raízes, vinda parar ali, tão longe do mar como de uma saudade. E o couro, sem serventia e agourento, de um tamanduá inteiro preto, o único que desse pêlo já se achara visto, e que fora matado no Dia-de-Reis. Apareceu mesmo um jarro de estanho, pichel secular, inexplicável; e houve quem ofertasse dois machados de gentio, lisas e agumiadas peças de sílex, semelhando peixes sem caudas , desenterrados do chão de um roçado montês, pelo capinador, que via-os o resfrio de raios caídos durante as tempestades do equinócio. Deixados para o leilão, prestava, junto com um frango-d’água sonolento — que um menino capturara à borda do brejo e atara pelos tarsos com fibra de buriti — e uma cabaça com mel de abelha urussu, docemente ácido, extraído de colméias subterrâneas. Assim a idéia da capela e da festa longo  longe andava, de fé em fé, pelas corovocas da região. Manuelzão mesmo se admirava.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º volume.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.