Todos
traziam, sorrateiros, o que devia ser de Deus. Ovos de gavião — cor em cor:
agudos pingos e desenhos — esvaziados a furo de alfinete. Orquídeas molhadas
ainda do mato, agarradas a seus braços de pau apodrecido. Balaios com musgos, que
sumiam vago incenso nos seco das madeixas verde-velho. Blocos de cristais de
quartzo róseo ou aqualvo. Pedras não conhecidas, minerais guardados pelo
colorido ou raro formato. Um boné de oficial, passado um lação de fita. Um
patacão, pesada moeda de prata antiga. Uma grande concha, gemedora, tirada com
as raízes, vinda parar ali, tão longe do mar como de uma saudade. E o couro,
sem serventia e agourento, de um tamanduá inteiro preto, o único que desse pêlo
já se achara visto, e que fora matado no Dia-de-Reis. Apareceu mesmo um jarro
de estanho, pichel secular, inexplicável; e houve quem ofertasse dois machados
de gentio, lisas e agumiadas peças de sílex, semelhando peixes sem caudas ,
desenterrados do chão de um roçado montês, pelo capinador, que via-os o resfrio
de raios caídos durante as tempestades do equinócio. Deixados para o leilão,
prestava, junto com um frango-d’água sonolento — que um menino capturara à
borda do brejo e atara pelos tarsos com fibra de buriti — e uma cabaça com mel
de abelha urussu, docemente ácido, extraído de colméias subterrâneas. Assim a
idéia da capela e da festa longo longe
andava, de fé em fé, pelas corovocas da região. Manuelzão mesmo se admirava.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile
(sete
novelas) – 1º volume.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.