quarta-feira, 22 de agosto de 2012

GR



A HORA E A VEZ DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Escrita integralmente ao longo do século XX, a obra do criador de Riobaldo e Augusto Matraga amplifica o legado regionalista e agrega novas paragens, fazendo do sertão uma metáfora da literatura de nosso tempo

Esta 20ª edição, comemorativa dos 10 anos dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, homenageia aquele que é considerado o maior escritor brasileiro do novecentos. Ponto culminante de uma tendência que atravessa nossa literatura — o regionalismo —, a obra de João Guimarães Rosa é ao mesmo tempo sua superação ao assimilar e amplificar as outras vertentes da invenção ficcional e poética que caracterizam o período mais fértil das letras do país. Contemporâneo de romancistas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Clarice Lispector, de poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, o autor de Sagarana (livro que este ano completa 60 anos) e Grande Sertão: Veredas (que há meio século transformou radicalmente nossa paisagem literária) pode ser considerado o resumo e o ápice de seu tempo.

Já se disse sobre o continente rosiano que ele contém o local e o universal, o arcaico e o mítico, o documental e o metafísico, vazados numa linguagem que recria as palavras e desliza sobre uma geografia simbólica. O fato de continuarmos a dizê-lo sob diferentes ângulos apenas reitera o que todo leitor sente ao percorrer suas páginas: o sertão de Rosa, com seus jagunços e buritis, excede as condições históricas e o perfil social da região na qual parece tão profundamente enraizada. Antonio Candido — numa resenha feita no calor da hora, quando Sagarana começava a assombrar leitores e críticos — notou essa singularidade em relação aos demais regionalistas:

A província do sr. Guimarães Rosa , no caso Minas, é menos uma região do Brasil do que uma região da arte, com detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal, tamanha é a concentração com que trabalha o autor. (...) Sagarana não é um livro regional como os outros, porque não existe região igual à sua, criada livremente pelo autor com elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia belíssima de suas histórias.

Transcendendo o critério regional por meio de uma condensação do material observado (condensação mais forte do que qualquer outra em nossa literatura da “terra”) o sr. Guimarães Rosa como que iluminou, de repente, todo o caminho feito pelos seus antecessores. (“Notas de crítica literária — Sagarana”, Textos de intervenção.

Desde então, e sob o impacto das obras publicadas posteriormente — o ciclo novelesco Corpo de Baile, Grande Sertão: Veredas e livros póstumos como Estas Estórias e Ave, Palavra —, a crítica vem enfatizando a idéia seminal de que o sertão de Guimarães Rosa é uma reconstrução alegórica do mundo e que suas narrativas, sejam contos mais breves ou seu único romance, perfazem o ambicioso projeto de fundar uma cosmologia literária da qual o escritor é uma espécie de demiurgo, criando os seres e os signos que os nomeiam. Leituras nem sempre convergentes, muitas vezes conflitantes, todas no entanto salientam o fato de que sua ficção aponta para um espaço imaginário, carregado de mistérios e símbolos que convidam à decifração, descolando-se assim do solo percorrido por seus viventes.

Em “Céu, Inferno”, Alfredo Bosi afirma:

Em Guimarães Rosa, o que cinge à cultura popular é um fio unido de crenças: não só um conteúdo formado de imagens e afetos, mas, principalmente, um modo de  ver os homens e o destino. (...) A sua narrativa, que parece a tantos ardidamente moderna e até mesmo experimental pela ousadia das soluções formais, realiza, com as artimanhas da linguagem, uma nova tradução do pensamento arcaico-popular.

No ensaio “O mundo misturado”, Davi Arrigucci Jr. propõe que o entrecruzamento de elementos da cultura comunitária e de uma religiosidade tradicional com questões próprias da sociedade e do indivíduo modernos faz do sertão rosiano um lugar onde se materializam ficcionalmente as forças contraditórias de nossa modernização periférica — figurada nessa mistura temporal e formal (épica, literatura oral, romance de formação) que coloca Grande Sertão: Veredas na trilha de uma totalidade buscada pelo grande romance moderno. Mistura essa que reaparece em o O, de João Adolfo Hansen, sob um viés radicalmente antimimético: descartando todas as leituras que perseguem correspondências entre o texto e um além do texto, entre a letra e sentidos pré-existentes  a ela (padrões lingüísticos, mitologias, ideologemas etc.). Hansen vê no romance um deslocamento incessante de estórias que se cancelam reciprocamente, produzindo sobre a ilusão da referencialidade uma pura indeterminação, uma negatividade consubstanciada na expressão nonada: uma cosmogonia no nada, como texto que a tudo pode incluir e deglutir em seu diabolismo”.

Esses três exemplos são representativos de uma vastíssima fortuna crítica à qual a presente edição dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA vem acrescentar algumas contribuições fundamentais. A começar por um depoimento hoje tingido de forte conotação simbólica: o texto da poetisa Dora Ferreira da Silva que abre a seção “Confluências” e acompanha as lembranças do embaixador Rubens Ricupero sobre a experiência de Guimarães Rosa como diplomata, as anotações do bibliófilo José Mindlin sobre seu encontro com o escritor, em Paris, e a transcrição de uma entrevista inédita de Manuelzão, vaqueiro que viajou com o escritor pelo interior de Minas, tornando-se personagem de “Uma Estória de Amor (Festa de Manuelzão)”, novela integrante de Corpo de Baile. Escrito poucas semanas antes de sua morte, o último texto em prosa da autora de  —cuja imagem se funde com a de Guimarães Rosa na memória da poetisa, que recorda o dia em que acreditou vê-lo montado num cavalo à porta de sua casa em São Paulo.

“João Guimarães Rosa, bardo do Brasil, inventor de mundos, a nossa paidéia, o nosso Homero”, escreve Dora na abertura de um texto que, à parte sei inestimável valor documental, coloca o escritor no rol dos clássicos da literatura universal e ecoa o célebre aforismo de Pessoa: “Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa por onde se note que existiu Homero”. Poeta da língua portuguesa, épico de um sertão arquetípico, Guimarães Rosa transformou a topografia em topos — o que faz dele um clássico naquela acepção inaugurada pelo autor da Odisséia.


Cadernos de Literatura Brasileira
João Guimarães Rosa
números 20 e 21. Dezembro de 2006.
Instituto Moreira Salles.