A
HORA E A VEZ DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
Escrita
integralmente ao longo do século XX, a obra do criador de Riobaldo e Augusto
Matraga amplifica o legado regionalista e agrega novas paragens, fazendo do
sertão uma metáfora da literatura de nosso tempo
Esta
20ª edição, comemorativa dos 10 anos dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA,
homenageia aquele que é considerado o maior escritor brasileiro do novecentos.
Ponto culminante de uma tendência que atravessa nossa literatura — o
regionalismo —, a obra de João Guimarães Rosa é ao mesmo tempo sua superação ao
assimilar e amplificar as outras vertentes da invenção ficcional e poética que
caracterizam o período mais fértil das letras do país. Contemporâneo de
romancistas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Clarice Lispector, de
poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo
Neto, o autor de Sagarana (livro que
este ano completa 60 anos) e Grande
Sertão: Veredas (que há meio século transformou radicalmente nossa paisagem
literária) pode ser considerado o resumo e o ápice de seu tempo.
Já
se disse sobre o continente rosiano que ele contém o local e o universal, o
arcaico e o mítico, o documental e o metafísico, vazados numa linguagem que
recria as palavras e desliza sobre uma geografia simbólica. O fato de
continuarmos a dizê-lo sob diferentes ângulos apenas reitera o que todo leitor
sente ao percorrer suas páginas: o sertão de Rosa, com seus jagunços e buritis,
excede as condições históricas e o perfil social da região na qual parece tão
profundamente enraizada. Antonio Candido — numa resenha feita no calor da hora,
quando Sagarana começava a assombrar
leitores e críticos — notou essa singularidade em relação aos demais
regionalistas:
A
província do sr. Guimarães Rosa , no
caso Minas, é menos uma região do Brasil do que uma região da arte, com
detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes
quase irreal, tamanha é a concentração com que trabalha o autor. (...) Sagarana não é um livro regional como os
outros, porque não existe região igual à sua, criada livremente pelo autor com
elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia belíssima
de suas histórias.
Transcendendo
o critério regional por meio de uma condensação do material observado
(condensação mais forte do que qualquer outra em nossa literatura da “terra”) o
sr. Guimarães Rosa como que iluminou, de repente, todo o caminho feito pelos seus
antecessores. (“Notas de crítica literária — Sagarana”, Textos de intervenção.
Desde
então, e sob o impacto das obras publicadas posteriormente — o ciclo novelesco Corpo de Baile, Grande Sertão: Veredas e
livros póstumos como Estas Estórias e
Ave, Palavra —, a crítica vem
enfatizando a idéia seminal de que o sertão de Guimarães Rosa é uma
reconstrução alegórica do mundo e que suas narrativas, sejam contos mais breves
ou seu único romance, perfazem o ambicioso projeto de fundar uma cosmologia
literária da qual o escritor é uma espécie de demiurgo, criando os seres e os
signos que os nomeiam. Leituras nem sempre convergentes, muitas vezes
conflitantes, todas no entanto salientam o fato de que sua ficção aponta para
um espaço imaginário, carregado de mistérios e símbolos que convidam à
decifração, descolando-se assim do solo percorrido por seus viventes.
Em
“Céu, Inferno”, Alfredo Bosi afirma:
No
ensaio “O mundo misturado”, Davi Arrigucci Jr. propõe que o entrecruzamento de
elementos da cultura comunitária e de uma religiosidade tradicional com
questões próprias da sociedade e do indivíduo modernos faz do sertão rosiano um
lugar onde se materializam ficcionalmente as forças contraditórias de nossa
modernização periférica — figurada nessa mistura temporal e formal (épica,
literatura oral, romance de formação) que coloca Grande Sertão: Veredas na trilha de uma totalidade buscada pelo
grande romance moderno. Mistura essa que reaparece em o O ,
de João Adolfo Hansen, sob um viés radicalmente antimimético: descartando todas
as leituras que perseguem correspondências entre o texto e um além do texto,
entre a letra e sentidos pré-existentes
a ela (padrões lingüísticos, mitologias, ideologemas etc.). Hansen vê no
romance um deslocamento incessante de estórias que se cancelam reciprocamente,
produzindo sobre a ilusão da referencialidade uma pura indeterminação, uma
negatividade consubstanciada na expressão nonada:
uma cosmogonia no nada, como texto que a tudo pode incluir e deglutir em seu
diabolismo”.
Esses
três exemplos são representativos de uma vastíssima fortuna crítica à qual a
presente edição dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA vem acrescentar algumas
contribuições fundamentais. A começar por um depoimento hoje tingido de forte
conotação simbólica: o texto da poetisa Dora Ferreira da Silva que abre a seção
“Confluências” e acompanha as lembranças do embaixador Rubens Ricupero sobre a
experiência de Guimarães Rosa como diplomata, as anotações do bibliófilo José
Mindlin sobre seu encontro com o escritor, em Paris, e a transcrição de uma
entrevista inédita de Manuelzão, vaqueiro que viajou com o escritor pelo
interior de Minas, tornando-se personagem de “Uma Estória de Amor (Festa de
Manuelzão)”, novela integrante de Corpo
de Baile. Escrito poucas semanas antes de sua morte, o último texto em
prosa da autora de —cuja imagem se funde com a de Guimarães
Rosa na memória da poetisa, que recorda o dia em que acreditou vê-lo montado
num cavalo à porta de sua casa em
São Paulo.
“João
Guimarães Rosa, bardo do Brasil, inventor de mundos, a nossa paidéia, o nosso Homero”, escreve Dora
na abertura de um texto que, à parte sei inestimável valor documental, coloca o
escritor no rol dos clássicos da literatura universal e ecoa o célebre aforismo
de Pessoa: “Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa por
onde se note que existiu Homero”. Poeta da língua portuguesa, épico de um
sertão arquetípico, Guimarães Rosa transformou a topografia em topos — o que faz dele um clássico
naquela acepção inaugurada pelo autor da Odisséia.
Cadernos
de Literatura Brasileira
João
Guimarães Rosa
números
20 e 21. Dezembro de 2006.
Instituto
Moreira Salles.