O
AGREGADO
Nem
sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados,
era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como naquela
maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade,
mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara.
toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.
Era
nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de
Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia, apareceu ali vendendo-se por médico
homeopata; levava um Manual e uma
botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma
escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar
ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo
levar a saúde à casa de sapé do pobre.
—Quem
lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.
—
Voltarei daqui a três meses.
Voltou
dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o que
quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio
de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo da
chácara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que
fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e
acabou confessando que não era médico. Tomara esse título para ajudar a
propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a
consciência não lhe permitia aceitar mais doentes.
—
Mas, você curou das outras vezes.
—
Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios indicados
nos livros. Eles, sim, eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão...Não negue;
os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é a
verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.
Não
foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o dom
de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa da
família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme., disseram-me,
não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele
deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia, depois da missa, ele foi
despedir-se dela.
—
Fique, José Dias.
—
Obedeço, minha senhora.
Teve
um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor.
Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama.
“Esta é a melhor apólice”, dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa
autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava e sabia opinar
obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste
mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham
antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das
pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e
liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que
de atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum
fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre.
Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que, a não
sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa
família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.
—
Abaixo ou acima? — perguntou-lhe tio Cosme um dia.
—
Abaixo — repetiu José Dias cheio de veneração.
E
minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar,
e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando
em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cópia de
papéis de autos.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro