EMANUEL
E FEDERICO
Que
povo, o desse baixio, dum sertão, das brenhas! De onde tiravam as estúrdias
alfaias, e que juízo formavam da festa que ia ser, da missa na Samarra, na
capelinha feita? Esse cafarnaúm! As lascas de pedras-de-amolar, uma buzina
amarela de caçador, um bacamarte boca-de-sino todo ferrugem, uma oitavada
lanterninha, rosários de fava-vermelha, santa-rita e mariola; um rabudo — armadilha de ferro, de pegar
tatu em entrada de buraco; punhados de penas de arara, um dente de gente com
ponto de ouro, um frasco azulado, as velhas cartas dum baralho; e esteiras,
cestos, sacolas, caixinhas, tapas — tudo que da folha do buriti se fabricava. E
até um grosso livro de contas, todas as páginas preenchidas, a tinta descorável,
e que de certo fora, em tempos, de algum grande fazendeiro lavrar em limpo seus
negócios. E mais até uma mortalha de homem, de ganga roxa, que nunca servira,
porque a tinham costurado com despropositada urgência, mas o corpo do defunto,
afogado no rio, não se achara. Criancice duma boa gente, que remexia em seus
trastes, alguma coisa tinham de trazer,menos as mãos vazias. Será pensavam
preciosos só para Nosso Senhor e a Virgem esses objetos fora de serventia
trivial, mas com bizarria de luxo ou de memória? Talvez então eles também fossem
espertos, ladinos demais, quando compareciam com aquela trenzada — por não ter
saída em comércio, nem nenhum outro seguro custo? Manuelzão, em sutil,
desconfiava deles.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile
(sete
novelas) – 1º volume
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.