domingo, 26 de agosto de 2012

EMANUEL E FEDERICO


EMANUEL E FEDERICO
Que povo, o desse baixio, dum sertão, das brenhas! De onde tiravam as estúrdias alfaias, e que juízo formavam da festa que ia ser, da missa na Samarra, na capelinha feita? Esse cafarnaúm! As lascas de pedras-de-amolar, uma buzina amarela de caçador, um bacamarte boca-de-sino todo ferrugem, uma oitavada lanterninha, rosários de fava-vermelha, santa-rita e mariola; um rabudo — armadilha de ferro, de pegar tatu em entrada de buraco; punhados de penas de arara, um dente de gente com ponto de ouro, um frasco azulado, as velhas cartas dum baralho; e esteiras, cestos, sacolas, caixinhas, tapas — tudo que da folha do buriti se fabricava. E até um grosso livro de contas, todas as páginas preenchidas, a tinta descorável, e que de certo fora, em tempos, de algum grande fazendeiro lavrar em limpo seus negócios. E mais até uma mortalha de homem, de ganga roxa, que nunca servira, porque a tinham costurado com despropositada urgência, mas o corpo do defunto, afogado no rio, não se achara. Criancice duma boa gente, que remexia em seus trastes, alguma coisa tinham de trazer,menos as mãos vazias. Será pensavam preciosos só para Nosso Senhor e a Virgem esses objetos fora de serventia trivial, mas com bizarria de luxo ou de memória? Talvez então eles também fossem espertos, ladinos demais, quando compareciam com aquela trenzada — por não ter saída em comércio, nem nenhum outro seguro custo? Manuelzão, em sutil, desconfiava deles.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º volume
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.