quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

DE DIANTE PRA TRÁS


Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras — aí ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente. Ao que eu ia levar comigo era só o menino, o cego, e os dos catrumanos vivos sobrados: esses eu carecia de repor de volta, na terra deles, nos lugares. E, a Mulher, também dela me despedi, há-de ver que esturdiamente, sem continuação de continuação. Ainda encomendei a João Curiol, que era um baiano bom, na palavra e no caráter, que providenciasse o retorno daquela, para onde quisesse ir outra vez.

Desapoderei.

Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar só: às Veredas Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha tido, repor Diadorim em vida? O que eu pensei, o pobre de mim. Eu queria me abraçar com uma serrania?Mas, nessa parte, de muito mal me lembro, pelo revés em minha saúde. Ao qie eu ia. de repente, me vinha um assombramento de espírito, muita vez tonteei, de ter de me segurar, de cair; e, depois, durante muitos espaços, eu restava esquecido de tudo, de quem eu era, de meu nome. Mas o Alaripe, Pacamã-de-Presas, o Quipes, o Triol, Jesualdo, o Acauã, João Concliz, e o Paspe, me cuidavam; esses tinham, por toda a lei, forçado de me acompanharem, vinham comigo; e o Fafafa, ,aos João Nonato e Compadre Ciril, que vieram depois. Amigos meus. Aí eu vinha.

Chapadão. Morreu o mar, que foi.

Eu vim. Pelejei. Ao deusdar. Como é que eu sabia destornar contra a minha tristeza? O dito, vim, consoante traçado. Num lugar, o Tuim, me alembro: eu tive de mudar para outro cavalo. E um sitiante, no Lambe-Mel, explicou — que o trecho, dos marimbus, aonde íamos, se chamava mais certo não era Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas... Coisa que o compadre meu Quelemém mais tarde me confiou. Daí, mais para adiante, dei para tremer com uma febre. Terçã. Mas o sentido do tempo o senhor entende, resenha duma viagem. Cantar que o senhor fosse. De ai, de mim. Namorei uma palmeira, na quadra do entardecer...

Na morna, baqueei, não podendo mais. Me levaram, por primeiro, de revexo. Depois me botaram para dentro duma casa muito pobre. Desembestei doente. Por último, como perdi meu conhecimento, estavam me deitando num catrei.

Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas sezão forte especial — nas altíssimas! Que a febre que eu tinha era tamanha tanta, como nunca se viu  — o Alaripe depois me disse —; que no decorrer dos acessos eu tresvariava. Do que, no ouvir contado, recordei a estória dum fazendeiro, o mais maldoso, que o demônio por fim salteou, por suas ruindades: e que, endemoninhado, no quarto de sua casa, uivando lobum, suplicava alívio do calorão, e carecia mesmo que os escravos despejassem nele latas e baldes d’água, ao constantemente, até para evitar que, de tudo devorante tão quente, não viesse e desse de pegar fogo no cômodo, de incêndios... Doidice. Em dansa de demônios, que nem não existem. Pois, então, só a doença não bastasse? O tempo que fiquei, deslembrado, detido. O quanto foi? Mas, quando dei acordo de mim, sarando e conferindo o juízo, a luz sem sol, mire e veja, meu senhor, que eu não estava mais no asilo daquela casinha pobre, mas em outra, numa grande fazenda, para onde sem eu saber tinham me levado.

Eu estava na Barbaranha, no Pé-da-Pedra, hóspede de seo Josafá Ornelas. Tomei caldo-de-galinha, deitado em lençóis alvos, recostado. E já parava meio longe aquele pesar, que me quebrantava. Lembro de todos, do dia, da hora. A primeira coisa que eu queria ver, e que me deu prazer, foi a marca dos tempos, numa folhinha de parede. Sosseguei de meu ser. Era feito eu mee esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de pedras. as aquele seo Ornelas era homem de muita bondade, muita honra. Ele me tratou com categoria, fui príncipe naquela casa. Todos — a senhora dele, as filhas, as parentas — me cuidavam. Mas o que mormente me, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem. Fui indo melhor.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro, RJ.

1ª edição. 1956.