quinta-feira, 15 de novembro de 2012

DE DIANTE PRA TRÁS



Mas, então, quando se estava de volta m’embora vindo, peguei uma inesperada informação, na Barra do Abaeté. De Zé Bebelo! Tinha mesmo de ser. Não sei por que foi, que com aquilo me renasci. Que Zé Bebelo estava demorando légua para cima, perto do São Gonçalo do Abaeté, no Porto-Passarinho. Me fiz para lá. E como era, que, antes e antes, eu não tivesse pensado em Zé Bebelo? Trote tocamos, viemos, beirando aquele rio. O senhor sabe — o rio Abaeté, que é entristecedor audaz de belo: largo tanto, de morro a morro. E em minha vida eu já pensava.

Zé Bebelo gritou — Safa! Safas!...” — e me abraçou como amigo cordial, contente de muito me ver, constante se nada tivesse destruído o nosso costume. Conto que estava o mesmo, aposto e condizente

— “Tudo viva!, Riobaldo, Tatarana , Professor...” — ele concisou. — “Tu quis paz?”

Sagaz assim me olhava, chega me cheirar só faltasse, de tornados a encontrar no curral, como boi a boi. Disse que eu estava feliz, mas emagrecido, e que encovava mais os olhos.

— “Estais p’ra trás... Sabe? Negociei um gado... Mudei meus termos! A ganhar o muito dinheiro — é o que vale... Pó d’ouro em pó...” — o que ele me disse.

E era a pura mentira. Mas podia ser verdade.

Porque ele, para se viver, carecia daquela bazófia, forte mestreava. Como logo ele pregou:

— “Há-te! Acabou com o Hermógenes? A bem. Tu foi o meu discípulo... Foi não foi?”

Deixei: ele dizer, como essas glórias não me invocavam. Mas, então, ele não me entendendo, esbarrou e se pôs. Cujo:

— “A bom, eu não te ensinei; mais bem te aprendi a saber a saber certa a vida...”

Eu ri, de nós dois.

Três dias falhei com ele, lá, no Porto-Passarinho.

E Zé Bebelo corrigiu, para eu ouvir, os projetos que ele tinha. Aí, ai, fanfarrices. Não queria saber do sertão, agora ia para capital, grande cidade. Mover com comércio, estudar para advogado. — “Lá eu quero deduzir meus feitos em jornal, com retratos... A gente descreve as passagens de nossas guerras, fama devida...” “— Da minha, não senhor!” — eu fechei. Distrair gente com o meu nome... Então ele desconversou. Mas, naqueles três dias, não descansou de querer me aliviar, e de formar outros planejamentos para encaminhar minha vida. Nem indenizar completa a minha dor maior ele não pudesse. Só que Zé Bebelo não era homem de não prosseguir. Do que a Deus dou graças!

Porque, por fim, ele exigiu minha atenção toda, e disse:

—“Riobaldo, eu sei a amizade de que agora tu precisa. Vai lá. Mas, me promete: não adia, não desdenha! Daqui, e reto, tu sai e vai lá.. Diz que é de minha parte... Ele é diverso de todo o mundo.”

Mesmo  escreveu um bilhete, que eu levasse. Ao quando despedi, e ele me abraçou, senti o afeto em ser de pensar. Será que ainda tinha aquele apito, na algibeira? E gritou: — “Safas!” —; maximé.

Tinha de ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo, mesmo, para meu destino começar de salvar. Porque o bilhete era para o Compadre meu Quelemém de Góis, na Jijujã — Vereda do Buriti Pardo. Mais digo? O senhor vá lá. No tempo de maio, quando o algodão lãla. Tudo o branquinho. Algodão é o que ele mais planta, de todas as modernas qualidades: o rasga-letras, bibol, e mussulim. O senhor vai ver pessoa de tal rareza, como perto dele todo-o-mundo pára sossegado, e sorridente, bondoso... Até com o Vupes lá topei.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.