DOM
CASMURRO E O LEITOR LACUNAR
Em
Dom Casmurro, a figura do leitor
passa a incluir também o risco da interpretação inerente ao processo de
leitura, e o lugar que lhe é prescrito torna-se mais ambíguo do que em qualquer
dos romances anteriores . Desta vez o leitor é explicitamente convocado a
participar do processo literário na condição de intérprete, completando lacunas, tirando conclusões e fazendo
julgamentos do que lhe é relatado. Enquanto em Brás Cubas e Quincas Borba
o tom jocoso da narração convida ao distanciamento em relação aos fatos
narrados, em Dom Casmurro a nostalgia
melancólica apela à empatia do leitor. Ao mesmo tempo em que o narrador Bento
Santiago procura convencer-nos da sua versão do ocorrido, ele vai deixando pelo
caminho falsas pistas que possibilitam explicações divergentes das suas, constituindo-se
em iscas para enredar o leitor no campo ficcional. Para isso, como bem observou
Silviano Santiago em “Retórica da Verossimilhança” o leitor é colocado no
centro da arena de discussão, já que persuadir é um dos principais interesses
da prosa de Dom Casmurro. Mas o
processo de convencimento e persuasão não quer fazer com que o leitor evolua no
seu modo de pensar ou de encarar os problemas, mas sim fornecer-lhe matéria
para que ele se convença a si próprio, a partir dos seus próprios conceitos e
preconceitos. Daí a centralização do motivo do discurso estar não no
discernimento do orador casmurro, mas no de quem escuta, em última análise
responsável por completar e dar sentido à narração.
Ao
apelo por uma identificação negativa com Brás Cubas e, em certa medida, com
Rubião, sucede a procura não de identificação, mas de uma espécie de adesão do
interlocutor ao processo da narração. O narrador procura seduzi-lo de modo a
torná-lo não apenas cúmplice, mas co-autor da narração, forçando-se a aproximação
entre as instâncias da narração e da interlocução. Diferentemente do que ocorre
nos dois romances anteriores, as objeções ao leitor desta vez não se manifestam
pelo confronto direto, mas aparecem incorporadas ao modo ambíguo do relato. É
como se a tessitura do texto se alargasse e as fissuras — contradições,
omissões, emendas, lacunas — construíssem um espaço, digamos, interno, capaz de
abrigar leituras discordantes entre si, variáveis em função das projeções que o
leitor empírico faz dos seus próprios valores e crenças sobre o texto
radicalmente ambíguo do romance.
Hélio
de Seixas Guimarães
Os
Leitores de Machado de Assis
o
romance machadiano e o público de literatura
no
século 19
Nankin
Editorial. Edusp (Editora da Universidade
de
São Paulo). São Paulo, SP. 2004.