sexta-feira, 23 de novembro de 2012

MACHADO



DOM CASMURRO E O LEITOR LACUNAR

Em Dom Casmurro, a figura do leitor passa a incluir também o risco da interpretação inerente ao processo de leitura, e o lugar que lhe é prescrito torna-se mais ambíguo do que em qualquer dos romances anteriores . Desta vez o leitor é explicitamente convocado a participar do processo literário na condição de intérprete, completando lacunas, tirando conclusões e fazendo julgamentos do que lhe é relatado. Enquanto em Brás Cubas e Quincas Borba o tom jocoso da narração convida ao distanciamento em relação aos fatos narrados, em Dom Casmurro a nostalgia melancólica apela à empatia do leitor. Ao mesmo tempo em que o narrador Bento Santiago procura convencer-nos da sua versão do ocorrido, ele vai deixando pelo caminho falsas pistas que possibilitam explicações divergentes das suas, constituindo-se em iscas para enredar o leitor no campo ficcional. Para isso, como bem observou Silviano Santiago em “Retórica da Verossimilhança” o leitor é colocado no centro da arena de discussão, já que persuadir é um dos principais interesses da prosa de Dom Casmurro. Mas o processo de convencimento e persuasão não quer fazer com que o leitor evolua no seu modo de pensar ou de encarar os problemas, mas sim fornecer-lhe matéria para que ele se convença a si próprio, a partir dos seus próprios conceitos e preconceitos. Daí a centralização do motivo do discurso estar não no discernimento do orador casmurro, mas no de quem escuta, em última análise responsável por completar e dar sentido à narração.

Ao apelo por uma identificação negativa com Brás Cubas e, em certa medida, com Rubião, sucede a procura não de identificação, mas de uma espécie de adesão do interlocutor ao processo da narração. O narrador procura seduzi-lo de modo a torná-lo não apenas cúmplice, mas co-autor da narração, forçando-se a aproximação entre as instâncias da narração e da interlocução. Diferentemente do que ocorre nos dois romances anteriores, as objeções ao leitor desta vez não se manifestam pelo confronto direto, mas aparecem incorporadas ao modo ambíguo do relato. É como se a tessitura do texto se alargasse e as fissuras — contradições, omissões, emendas, lacunas — construíssem um espaço, digamos, interno, capaz de abrigar leituras discordantes entre si, variáveis em função das projeções que o leitor empírico faz dos seus próprios valores e crenças sobre o texto radicalmente ambíguo do romance.


Hélio de Seixas Guimarães
Os Leitores de Machado de Assis
o romance machadiano e o público de literatura
no século 19
Nankin Editorial. Edusp (Editora da Universidade
de São Paulo). São Paulo, SP. 2004.