E
aqui chego à última objeção que me impus. Não resguardei os apontamentos
obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui
obrigado a atirá-los. Certamente me irão fazer falta, mas terá sido uma perda
irreparável? Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se
ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada instante,
mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas
demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor das
folhas que tombavam das árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes,
tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa
isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se esmoreceram,
deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco.
Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável
mencioná-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade. Em conversa
ouvida na rua, a ausência de algumas sílabas me levou a conclusão falsa — e
involuntariamente criei um boato. Estarei mentindo? Julgo que não. Enquanto não
se reconstituírem as sílabas perdidas, o meu boato, se não for absurdo,
permanece. e é possível que esses sons tenham sido eliminados por brigarem com
o resto do discurso. Quem sabe se eles aí não se encaixaram com intuito de
logro? Nesse caso havia conveniência em suprimi-los, distinguir além deles uma
verdade superior a outra verdade convencional e aparente , uma verdade expressa
de relance nas fisionomias. Um sentido recusou a percepção de outro, substituiu-a.
Onde estará o erro? Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento,
exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças
diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se,
completam-se e não dão hoje impressão de realidade. Formamos um grupo muito
complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de
recompô-lo. Define-se o ambiente, as figuras se delineiam, vacilantes, ganham
relevo, a ação começa. Com esforço desesperado arrancamos de cenas confusas
alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos assaltam. De que modo reagiram os
caracteres em determinadas circunstâncias? O ato que nos ocorre, nítido,
irrecusável, terá sido realmente praticado? não será incongruência? Certo a
vida é cheia de incongruências, mas estaremos seguros de não nos havermos
enganado? Nessas vacilações dolorosas,
às vezes necessitamos confirmação, apelamos para reminiscências alheias,
convencemo-nos de que a minúcia discrepante não é ilusão. Difícil é sabermos a
causa dela, desenterrarmos pacientemente as condições que a determinaram. Como
isso variava em excesso, era natural que variássemos também, apresentássemos
falhas. Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma,
sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus
defeitos as sombras dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo
ter-me revelado com freqüência egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de
sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam infligir naquele ano
terrível.
Desgosta-me
usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem; fala um sujeito mais ou
menos imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante,
embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele me
facilita a narração. Além disso não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário.
Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei
prudente por detrás dos que merecem patentear-se.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. Viagens.
(obra
póstuma).
José
Olympio. Rio de Janeiro, 1953.