Ao
Brasil profano e histórico dessas obras correspondia o Brasil místico e mítico
da Atlântida, epopéia cósmica de
Dario Veloso, concluída em 1933, embora só cinco anos mais tarde fosse
postumamente publicada. Trata-se da nossa epopéia nacional, e faltou-lhe apenas
a espessura de um cabelo, escrevia eu a 5 de setembro de 1970 para situar-se no
mesmo plano de tantos outros poemas legendários de que se orgulham escandinavos
e hindus, hispano-americanos ou poloneses — e mesmo franceses. A Atlântida deve ser lida nas perspectivas
das demais epopéias românticas que, segundo a bela síntese de Léon Celeiro, são
humanitárias e religiosas. Otimistas, crêem no futuro da Humanidade; sabem que,
se os deuses morrem, acabam sempre por ressuscitar; anunciam, como Victor Hugo,
o fim de Satã. O épico para uma epopéia moderna é a evolução do progresso
humano; nisso, os simbolistas, como Dario Veloso, confundiam-se paradoxalmente
com os Enciclopedistas nas mesmas aspirações e ideais; a recíproca, aliás, é
verdadeira, porque a idade da Enciclopédia,
na aguda observação de Herbert J. Hunt, “é a idade dos curandeiros,
profetas, convulsionários — e
charlatães. É também a idade dos maçons, da teosofia e do iluminismo” — tudo
confluindo paradigmaticamente na obra de Dario Veloso. De fato, Herbert J. Hunt
reportava-se ao juízo de Chateaubriand, no Gênio
do Cristianismo, só restavam aos tempos modernos dois belos assuntos de
epopéia, as Cruzadas e a Descoberta do Novo Mundo. Lembremos, a propósito do
poema brasileiro, que, desd 1812, Népomucène Lemercier (1771-1840) havia feito
da destruição do continente mítico o tema do poema Atlantide ou la Théogonie newtonienne.
Em
Dario Veloso, a concepção central do poema consistiu em substituir, seja a
mitologia clássica, sejam as lendas nacionais, pelas concepções iniciáticas,
assim inscrevendo as origens do Brasil não no plano humano e histórico em que
afinal todas as epopéias convencionais desembocam, mas no plano mais alto do
universo estelar. No glossário do poema, ele classificava desta maneira a noção
do “Ciclo brasileiro”:
Com a chegada dos Lusos (1500) a cadeia
da Atlântida interrompida desde a submersão de Poseidonis, toca seus últimos
elos, impercebidamente. Volve ao Brasil bruxuleante vestígio da Tradição
atlante-ibera. — O Brasil tem por missão histórica espargir no Orbe
ensinamentos pacifistas, homogeneizando as Raças humanas, formando o tipo
sintético da Espécie. No próximo século
iniciar-se-á o Ciclo do Brasil.
Na
sua cosmogonia, Dario Veloso adota a idéia de A. Sergipe quanto às origens do
Homem na raça negra:
A Raça de azeviche que, primeira
Da espécie humana, o Globo dominou (...)
a
concepção do poema sendo que, com o desaparecimento de Poseidonis, última ilha
da Atlântida, salvam-se um sábio e dois discípulos; aportando no Brasil
aliam-se ao Tamoio da Guanabara e levam finalmente a palavra sagrada até aos
Incas do Peru. Eis a chegada ao Brasil, elo predestinado na obra civilizadora
da Atlântida:
Mais perto a terra do Brasil verdeja...
Antes da noite chegaria à plaga
O frágil lenho que no mar veleja.
Há no ambiente aroma que embriaga,
A carícia da terra donairosa,
A
canção das palmeiras sobre a vaga.
— Que te pode igualar, Terra ditosa?!
(.............................................................)
Acentua-se a curva da baía...
— Guanabara! — a mais linda do Universo!
Perene a primavera, a noite um dia;
Estelário do Eterno em linfa imerso.
Os
peregrinos partem, afinal, para o Peru através da Amazônia, “Canaã que ainda
espera seu povo”, dizia Alfredo Ladislau em Terra
Imatura, em linguagem não menos carregada de misticismo. Foi ele que lançou
a idéia da “cobiça internacional”, destinada a popularidade que se conhece:
Diante desta grande milionária,
permanecemos como usurários desprezíveis, sem o ânimo de usufruí-la,
consentindo, todavia, na espoliação dos seus tesouros nativos, mau grado o
constante receio de que ela nos seja, um dia, arrebatada por uma raça qualquer,
mais poderosa e apta a dar-lhe todo o progresso que ela merece.
Wilson
Martins
História
da Inteligência Brasileira
vol.
VII (1933-1960)
Cultrix.
Editora da Universidade de São Paulo.
São
Paulo, SP.
1978.