O
receio de cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram comigo
convivência forçada já não me apoquenta. Muitos desses antigos companheiros
distanciaram-se, apagaram-se. Outros permaneceram junto a mim, ou vão
reaparecendo ao cabo de longa ausência, alteram-se, completam-se, avivam
recordações meio confusas — e não vejo inconveniência em mostrá-los. Alguns
reclamam a tarefa, consideram-na dever, oferecem-me dados, relembram figuras
desaparecidas, espicaçam-me por todos os meios. Acho que estão certos: a
exigência se fixa, domina-me. Há entre eles homens de várias classes, das
profissões mais diversas, muito altas e muito baixas, apertados nelas como em
estojos. Procurei observá-los onde se acham, nessas bainhas em que a sociedade
os prendeu. A limitação impediu embaraços e atritos, levou-me a compreendê-los,
senti-los, estimá-los, não arriscar julgamentos precipitados. E quando isto não
foi possível, às vezes me acusei. Ser-me-ia desagradável ofender alguém com
esta exumação. Não ofenderei, suponho. E, refletindo, digo a mim mesmo que, se
isto acontecer, não experimentarei o desagrado. Estou a descer para a cova, este novelo de casos em
muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão — e provavelmente isto
será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias. Realmente há entre
os meus companheiros sujeitos de mérito, capazes de fazer sobre os sucessos a
que vou referir-me obras valiosas. Mas são especialistas, eruditos,
inteligências confinadas à escrupulosa análise do pormenor, olhos afeitos a
investigações em profundidade. Há também narradores, e um já nos deu há tempo
excelente reportagem, dessas em que é preciso dizer tudo com rapidez. Em
relação a eles, acho-me por acaso em situação vantajosa. Tendo exercido vários
ofícios, esqueci todos, e assim posso mover-me sem nenhum constrangimento. Não
me agarram métodos, nada me força a exames vagarosos. Por outro lado, não me
obrigo a reduzir um panorama, sujeitá-lo a dimensões regulares, atender ao
paginador e ao horário do passageiro do bonde. Posso andar para a direita e
para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens
desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos.
Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se
os enxergasse pelos vidros pequenos de
um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me
parecer conveniente.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume –Viagens
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.