sexta-feira, 12 de abril de 2013

DE DIANTE PRA TRÁS



O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver ― não é? ― é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?

Subi aquela escada-de-redor, escutando a madeira nos meus passos, e avisando: ― “Quem evém sou eu, minha gente!” ― repetido. Aquilo meio sombrio. Aquilo meio sombrio, o ar que dava era como de ser antigo dia-de-domingo. Aí, notei que eu mesmo arfava um pouco, e estava com uma sede. Por lá devia de ter algum pote fresco ― imaginei. ― “É eu! minha gente...” ― eu disse; mesmo assim eles se assustaram primeiro, depois tomaram satisfação por me ver. Os que na sala que dava para  a frente da rua estavam, os quais eram: que o Araruta e o José Gervásio, nas armas; e o menino Guirigó e o cego Borromeu, assentados no banco, encostado na parede para o interno. Esses dois, muito juntos, como que tremiam um tanto; deviam de estar rezando.

― Que e a mulher?” ― eu indaguei.

O menino Guirigó queria mostrar: ela estava presa num quarto. Ela também estivesse rezando? Corredor velho, para ele davam tantas portas, por detrás duma delas tinham fechado a mulher, num cômodo. A chave estava na mão do cego Borromeu. Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de me entregar; rejeitei. ― Tem talha d’água, por aqui?” ― eu disse; eu tinha uma pressa desordenada, de certo. ― “Diz que lá em baixo tem... ― foi o que o menino Guirigó me deu resposta. Entendi que ele curtia sede, igualmente, e querendo comigo ir ― por seguro temia descer sozinho a escada. E o cego Borromeu, também, que não respondeu, mas que mexeu a boca, mole, mole, fazendo desse rumor de quem termina de mastigar rapadura. Me enjoou. Mas ele não tinha comido alguma coisa. Não tive comigo: ― “Tu me ouve, xixilado, tu me ouve? Assim tu me dá respeito e agradece interesses de ter tomado conta de você, e trazido em companhia minha, por todas as partes?!” Eu disse. Ele disse: ― “Deus vos proteja, Chefe, dê ademão por nós todos... E de tudo peço perdão...” Ele se ajoelhou. Ouvir e ver isso me embaraçasse, eu já pegava ponta de remorso. Porque esse homem, sem visão carnal, de valia nenhuma, maldade minha era que tinha sido a trazida dele, de em desde o começo de lugar onde ele cumpria sua vida. E agora ele devia de padecer o redobrado medo, concebendo que vai ou vai a gente fugisse dali, e ele para trás parasse, para as unhas dos outros. Mas a cena desses todos pensamentos em mim foi ligeira demais, conforme não tinham geração. A meio me lembro, e conto, é só para firmar minha capacidade. Como o reslumbre, que, no tento da hora, eu prezei em Otacília , juízo vago. Como para a janela eu fui, quase que na imaginação de botar meu olhar e haver de ver, no longe tal, o lugar aonde ela andava. Conto, para o senhor conhecer quanta espécie de causa, no mover da mente, no mero da tragagem de guerra. E o José Gervásio e o Araruta, cada um em beira duma janela, agachados, carabinas em mãos, as cheias cartucheiras. Para mim era que olhavam, estudados, querendo algum qualquer sinal. E aí uma bala alta abelhou, se seguindo sozinha, muito rente, com cujo barulho de música que fez eu conheci que era de comblém. Eu tinha de dar mais espertação ainda àqueles dois. Tenência. Para uma janela me cheguei. E endureci no rifle. Em volta relanceei. Eu ―  o bedegas!


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.