É degradante. Demais estaria eu certo de não haver
cometido falta grave? Efetivamente não tinha lembrança, mas ambicionara com
fúria ver a desgraça do capitalismo, pregara-lhe alfinetes, únicas armas disponíveis,
via com satisfação os muros pichados, aceitava as opiniões de Jacó. Isso
constituiria um libelo mesquinho, que testemunhas falsas ampliariam. Tinha o
direito de insurgir-me contra os depoimentos venenosos? De forma nenhuma. Não
há nada mais precário que a justiça. E se quisessem transformar em obras os
meus pensamentos, descobririam com facilidade matéria para condenação. Não me
repugnava a idéia de fuzilar um proprietário. Era razoável que a propriedade me
castigasse as intenções.
Fui ao banheiro, tomei um longo banho. Tolice vivermos
a apurar responsabilidades. Muitas coisas nos acontecem por acaso, e às vezes
nos chegam vantagens por acaso. Julgava é que não me deteriam nem uma semana.
Dois ou três dia depois me mandariam embora, dando-me explicações. Um engano.
Findo o banho, preparei-me para sair. Em seguida meti alguma roupa branca na
valise, mandei comprar muito cigarro e fósforo.
D. Irene, diretora de um grupo escolar vizinho,
apareceu à tarde. Envergonhei-me de tocar na demissão, e falamos sobre assuntos
diversos. Aí me chegaram dois telegramas. Um encerrava insultos; no outro certo
candidato prejudicado felicitava a instrução alagoana pelo meu afastamento.
Rasguei os papéis, disposto a esquecê-los. Sumiram-se na verdade os nomes dos
signatários e as expressões injuriosas, ter-se-ia talvez a pequena infâmia
esvaído inteiramente se não contrastasse com a presença de d. Irene ali na
sala. O que me interessava no momento era o esforço despendido por ela em três
anos. Talvez isso houvesse concorrido para embranquecer-lhe os cabelos, dar-lhe
aquela gravidade atenta. Não sorria nunca. E sob o penteado grisalho o rosto
moço tinha uma beleza fria. No estabelecimento dela espalhavam-se a princípio
duzentos e poucos meninos, das famílias mais arrumadas de Pajuçara. Numa
campanha de quinze dias, por becos, ruelas, cabanas de pescadores, d. Irene
enchera a escola. Aumentado o material, divididas as aulas em dois turnos, mais
de oitocentas crianças haviam superlotado o prédio, exibindo farrapos,
arrastando tamancos. Ao vê-las, um interventor dissera indignado:
─ Convidam-me para assistir a uma exposição de
misérias.
E alguém respondera:
─ É o que podemos expor.
Calçados e vestidos pela caixa escolar, os garotos se
haviam apresentado com decência. Lembrava-me da lufa-lufa necessária para
modificá-los, ria-me pensando em Flora Ferraz sentada no chão, às oito horas da
noite, a experimentar sapatos em negrinhos. Avizinhando-me dela, repelira-me
com raiva:
─ O senhor tem coragem de me dar a mão? Estou suja.
Desde a manhã aqui pegando os pés destes moleques!
Quatro dessas criaturinhas arrebanhadas nesse tempo,
beiçudas e retintas, haviam obtido as melhores notas nos últimos exames.
─ Que nos dirão os racistas, d. Irene?
Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere