PRÓLOGO
Escrevi
estas Confissões urgido por duas
lanças. Meu medo-pânico de morrer antes de dizer a que vim. Meu medo ainda
maior de que sobreviessem as dores terminais e as drogas heróicas trazendo com
elas as bobeiras do barato. Bobo não sabe de nada. Não se lembra de nada. Tinha
que escrever ligeiro, ao correr da pena. Hoje, o medo é menor, e a aflição
também. Melhorei. Vou durar mais do que pensava.
De
nada de irremediável suceder, terei tempo para revisões. Não ouso pensar que me
reste vida para escrever mais um livro. Nem preciso, já escrevi livros demais.
Mas admito que tirar mais suco de mim nesta porta terminal é o que quisera.
Impossível?
Este
livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e precisões, é um
mero reconto espontâneo. Recapitulo aqui, como me vem à cabeça, o que me
sucedeu pela vida afora, desde o começo, sob o olhar de Fininha, até agora,
sozinho neste mundo.
Muito
relato será, talvez, equivocado em alguma coisa. Acho melhor que seja assim,
para que meu retrato do que fui e sou me saia me saia tal como me lembro.
Neguei-me, por isso, a castigar o texto com revisões críticas e pesquisas. Isso
é tarefa de biógrafo. Se eu tiver algum, ele que se vire, sem me querer mal por
isso.
Quero
muito que estas minhas Confissões comovam.
Para isso as escrevi, dia a dia, recordando meus dias. Sem nada tirar por
vexame ou mesquinhez nem nada acrescentar por tolo orgulho. Meu propósito,
nesta recapitulação, era saber e sentir como é que cheguei a ser o que sou.
Quero
também que sejam compreendidas. Não por todos, seria demasia; mas por aqueles
poucos que viveram vidas paralelas e delas deram ou querem dar notícia. Nos
confessamos é uns aos outros, os de nossa iguala, não aos que não tiveram nem
terão vidas de viver, nem de confessar. Menos ainda aos pródigos de palavras de
fineza, cortesãos.
Quero
inclusive o leitor anônimo, que ainda não viveu nem deu fala. Mas tem coração
que pulsa, compassado com o meu. Talvez até me ache engraçado, se alegre e ria
de mim, se tiver peito. Não me quer julgar, mas entender, conviver.
Não
quero mesmo é o leitor adverso, que confunde sua vida com a minha, exigindo de
mim recordos amorosos e gentis, apagando os dolorosos, conforme sua pobre noção
do bem e da dignidade. O preço da vida se paga é vivendo, impávido, e
recordando fiel o que dela foi dor ou foi contentamento.
Termino
esta minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais
saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só
digo: “Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O
único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa
parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes ou de gozos.
Apagados, minerais. Para sempre mortos”.
Darcy
Ribeiro
Confissões
Companhia
das Letras. São Paulo.
1997.