segunda-feira, 1 de abril de 2013

MACHADO



O Diabo, começando modestamente sua obra com a franja de algodão do manto de veludo das virtudes, em breve viu sua igreja triunfante. “Todas as virtudes cuja capa de veludo acabara em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitaram a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova”. Mas, no auge da sua glória, percebeu o Diabo que as antigas virtudes, posto que proscritas da sociedade, eram praticadas às escondidas, por seus apóstolos e fiéis. Quem lhe explica o mistério é Deus, em novo colóquio: “ ― Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”.A explicação ofusca, mas não obscurece o fato essencial: a igreja do Diabo é senhora das capas de algodão, restando a Deus apenas as franjas de seda. Franjas de seda, mas franjas, que não cobrem o corpo, nem aquecem, nem protegem do sol e da chuva: pobres ornamentos sem poder. O Diabo conquistou a terra, não pela negação, mas pelo socorro do Demônio, soberano do visível e do invisível. A inversão está completa, com a pirâmide apoiada sobre o ápice. O altar está em outras mãos, para outras missas, preparado para o sermão diabólico. Mas a vitória é a mesma vitória de outrora, turbada pela legião dos contestantes ocultos, discípulos do Diabo e filhos de Deus, como antes eram filhos do Diabo e discípulos de Deus. O demolidor que nega e esteriliza serve-se, para a reconstrução, da sociedade dos homens e da natureza, para a glória da terra, impassível à voz da divindade.

Não seria possível a descida do palco metafísico para o palco da história sem o componente de uma sociedade que se secularizou. Deus, depois de abandonar a força que está na vontade eterna e na vida, desertou da terra, por obra da conjuração do século. O aluvião ambiental, contingente, sufocou a raiz da religião, o viço da fé, afogando a flor que se abre para a divindade. A comunidade dos homens perdeu o seu enérgico cimento, para se transformar em peças justapostas, que se digladiam, na busca do pão e da glória, sem caridade e sem amor. O Diabo sabe que por aí há de culminar sua obra triunfante. Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor de próximo era um obstáculo à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis: não se devia dar ao próximo senão indiferenças; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração que a noção do próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: “Leve a breca o próximo! Não há próximo.” A única hipótese em que ele permitia amor ao próximo era quando se tratasse de amor às damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal aplicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: ― Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão dos seus dividendos; é o que acontece aos adúlteros. Por este apólogo, que reduz os homens ao acionista, entra-se no campo da vida moderna, devorada e esterilizada pela economia. O homem religioso, o cristão, o católico, são extravagâncias e inutilidades na máquina do mundo. O católico perdeu as raízes cristãs que o alimentaram e lhe insuflaram o sentimento da divindade. Sua existência social se determina pela qualidade de burguês, cujo último estágio é o acionista, e não de membro da cristandade, da igreja. “O indivíduo não é mais burguês e católico, senão um burguês católico... Sua vida transcorre fora da igreja, vida que se fez autônoma e se basta a si própria. Para ele a igreja já não representa a grande comunidade em que se vive e se morre; mesmo quando freqüenta a igreja, freqüenta-a como cidadão deste mundo. Em suma, é estranho no seio da igreja.


Raymundo Faoro
Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio      
Globo. Rio de Janeiro. 3ª edição. 1988.