O
Diabo, começando modestamente sua obra com a franja de algodão do manto de
veludo das virtudes, em breve viu sua igreja triunfante. “Todas as virtudes
cuja capa de veludo acabara em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitaram a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova”. Mas, no auge da
sua glória, percebeu o Diabo que as antigas virtudes, posto que proscritas da
sociedade, eram praticadas às escondidas, por seus apóstolos e fiéis. Quem lhe
explica o mistério é Deus, em novo colóquio: “ ― Que queres tu, meu pobre
Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram
franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”.A explicação
ofusca, mas não obscurece o fato essencial: a igreja do Diabo é senhora das
capas de algodão, restando a Deus apenas as franjas de seda. Franjas de seda,
mas franjas, que não cobrem o corpo, nem aquecem, nem protegem do sol e da
chuva: pobres ornamentos sem poder. O Diabo conquistou a terra, não pela
negação, mas pelo socorro do Demônio, soberano do visível e do invisível. A
inversão está completa, com a pirâmide apoiada sobre o ápice. O altar está em
outras mãos, para outras missas, preparado para o sermão diabólico. Mas a
vitória é a mesma vitória de outrora, turbada pela legião dos contestantes
ocultos, discípulos do Diabo e filhos de Deus, como antes eram filhos do Diabo
e discípulos de Deus. O demolidor que nega e esteriliza serve-se, para a
reconstrução, da sociedade dos homens e da natureza, para a glória da terra,
impassível à voz da divindade.
Não
seria possível a descida do palco metafísico para o palco da história sem o
componente de uma sociedade que se secularizou. Deus, depois de abandonar a
força que está na vontade eterna e na vida, desertou da terra, por obra da
conjuração do século. O aluvião ambiental, contingente, sufocou a raiz da religião,
o viço da fé, afogando a flor que se abre para a divindade. A comunidade dos
homens perdeu o seu enérgico cimento, para se transformar em peças justapostas,
que se digladiam, na busca do pão e da glória, sem caridade e sem amor. O Diabo
sabe que por aí há de culminar sua obra triunfante. Para rematar a obra,
entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com
efeito, o amor de próximo era um obstáculo à nova instituição. Ele mostrou que
essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis: não
se devia dar ao próximo senão indiferenças; em alguns casos, ódio ou desprezo.
Chegou mesmo à demonstração que a noção do próximo era errada, e citava esta
frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma
das marquesas do antigo regime: “Leve a breca o próximo! Não há próximo.” A
única hipótese em que ele permitia amor ao próximo era quando se tratasse de
amor às damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de
não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns
discípulos achassem que uma tal aplicação, por metafísica, escapava à
compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: ― Cem pessoas tomam
ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida
realmente senão dos seus dividendos; é o que acontece aos adúlteros. Por este
apólogo, que reduz os homens ao acionista, entra-se no campo da vida moderna,
devorada e esterilizada pela economia. O homem religioso, o cristão, o
católico, são extravagâncias e inutilidades na máquina do mundo. O católico
perdeu as raízes cristãs que o alimentaram e lhe insuflaram o sentimento da
divindade. Sua existência social se determina pela qualidade de burguês, cujo
último estágio é o acionista, e não de membro da cristandade, da igreja. “O
indivíduo não é mais burguês e católico, senão um burguês católico... Sua vida
transcorre fora da igreja, vida que se fez autônoma e se basta a si própria.
Para ele a igreja já não representa a grande comunidade em que se vive e se
morre; mesmo quando freqüenta a igreja, freqüenta-a como cidadão deste mundo.
Em suma, é estranho no seio da igreja.
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis: a Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro. 3ª edição. 1988.