quinta-feira, 25 de abril de 2013

G. RAMOS



Na fronte calma de d. Irene esboçava-se uma ligeira ruga, e eu admirava-lhe a dignidade simples, a decisão rigorosa de abelha-mestra. Apesar de sentir prazer em ouvi-la, desejava que ela se retirasse: inquietava-me saber que a qualquer momento viriam buscar-me, e isto a perturbaria. Depois a notícia daquela visita com certeza lhe ocasionaria prejuízo. Levantava-me, procurava um meio de afastá-la, os ouvidos abertos aos rumores da rua. Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia, deteve-se à porta — e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuz ou mulato, entrou na sala.

― Que demora, tenente! Desde meio-dia estou à sua espera.

― Não é possível, objetou o rapaz empertigando-se.

―Como não? Está aqui a valise pronta, não falta nada.

O sujeitinho deu um passo à retaguarda, fez meia-volta, aprumou-see, encarou-me. Tinha-lhe observado esse curioso sestro um mês antes, na repartição, onde me surgira pleiteando a aprovação de uma sobrinha reprovada. Eu lhe mostrara um ofício em que a diretora do grupo escolar de Penedo contava direito aquele negócio: a absurda pretensão de se nomear para uma banca especial fora de tempo.

― Impossível, tenente. Isso é anti-regulamentar. Demais, se a garota não conseguiu aprender num ano, certamente não foi recuperar em dias o tempo perdido. Sua sobrinha não é nenhum gênio, suponho.

O tenente recuara, rodara sobre os calcanhares, perfilara-se em atitude perfeitamente militar e replicara com absoluta impudência:

― É o que ela é. Um gênio. Posso afirmar-lhe que é gênio.

E voltara a repetir o mesmo pedido, usando as mesmas palavras. Depois de  meia hora de marchas e contramarchas cansativas, fizera a saudação, a última reviravolta, abrira a portinhola e deixara o gabinete em passos rítmicos. No dia seguinte regressara com uma carta de recomendação, repisara a exigência, lera impenetrável o regulamento e o ofício, ouvira a  recusa fatal ― e, no fim do resumo do caso enfadonho, o recuo, o movimento circular, o aprumo, a solicitação invariável, o obtuso louvor da sobrinha:

― Um gênio, eu garanto. Admita que ela seja realmente um gênio.

Gastara-me a paciência e irritara-me. Agora, finda a pirueta, olhando a valise, prova de que não haviam sabido guardar segredo, encolheu os ombros, sorriu, excessivamente gentil:

― Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer: acho bom levar mais roupa. É um conselho.

― Obrigado, tenente.

Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de pequeno burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros chegados na véspera, pelo correio. Despedi-me, D. Irene se espantava, talvez sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos, agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na cara de minha mulher sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização da ameaça. Diante da cabriola e do sorriso do mulato, pareceu despertar, mas não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: por que vinha prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências desarrazoadas?

― Quando quiser, tenente.

Saímos da sala e entramos no automóvel , um grande carro oficial.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere