Na fronte calma de d. Irene esboçava-se uma ligeira
ruga, e eu admirava-lhe a dignidade simples, a decisão rigorosa de
abelha-mestra. Apesar de sentir prazer em ouvi-la, desejava que ela se
retirasse: inquietava-me saber que a qualquer momento viriam buscar-me, e isto
a perturbaria. Depois a notícia daquela visita com certeza lhe ocasionaria
prejuízo. Levantava-me, procurava um meio de afastá-la, os ouvidos abertos aos
rumores da rua. Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia,
deteve-se à porta — e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuz ou
mulato, entrou na sala.
― Que demora, tenente! Desde meio-dia estou à sua
espera.
― Não é possível, objetou o rapaz empertigando-se.
―Como não? Está aqui a valise pronta, não falta nada.
O sujeitinho deu um passo à retaguarda, fez
meia-volta, aprumou-see, encarou-me. Tinha-lhe observado esse curioso sestro um
mês antes, na repartição, onde me surgira pleiteando a aprovação de uma
sobrinha reprovada. Eu lhe mostrara um ofício em que a diretora do grupo
escolar de Penedo contava direito aquele negócio: a absurda pretensão de se
nomear para uma banca especial fora de tempo.
― Impossível, tenente. Isso é anti-regulamentar.
Demais, se a garota não conseguiu aprender num ano, certamente não foi
recuperar em dias o tempo perdido. Sua sobrinha não é nenhum gênio, suponho.
O tenente recuara, rodara sobre os calcanhares,
perfilara-se em atitude perfeitamente militar e replicara com absoluta
impudência:
― É o que ela é. Um gênio. Posso afirmar-lhe que é
gênio.
E voltara a repetir o mesmo pedido, usando as mesmas
palavras. Depois de meia hora de marchas
e contramarchas cansativas, fizera a saudação, a última reviravolta, abrira a
portinhola e deixara o gabinete em passos rítmicos. No dia seguinte regressara
com uma carta de recomendação, repisara a exigência, lera impenetrável o
regulamento e o ofício, ouvira a recusa
fatal ― e, no fim do resumo do caso enfadonho, o recuo, o movimento circular, o
aprumo, a solicitação invariável, o obtuso louvor da sobrinha:
― Um gênio, eu garanto. Admita que ela seja realmente
um gênio.
Gastara-me a paciência e irritara-me. Agora, finda a
pirueta, olhando a valise, prova de que não haviam sabido guardar segredo,
encolheu os ombros, sorriu, excessivamente gentil:
― Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer:
acho bom levar mais roupa. É um conselho.
― Obrigado, tenente.
Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas
de pequeno burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros
chegados na véspera, pelo correio. Despedi-me, D. Irene se espantava, talvez
sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos,
agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na
cara de minha mulher sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe
percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto
a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã
serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização
da ameaça. Diante da cabriola e do sorriso do mulato, pareceu despertar, mas
não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: por que vinha
prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências
desarrazoadas?
― Quando quiser, tenente.
Saímos da sala e entramos no automóvel , um grande
carro oficial.
Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere