O
ADMINISTRADOR INTERINO
Pádua
era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra. Não ganhava
muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que
morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele.
Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez
contos de réis. A primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi
comprar um cavalo do Cabo, uma adereço de brilhantes para a mulher, uma
sepultura perpétua de família, mandar vir da Europa alguns pássaros, etc.; mas
a mulher, esta dona Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé,
falando à filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos
olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e
guardar o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito;
afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem dona Fortunata pediu
auxílio. Nem foi só nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a
salvar a vida ao Pádua. Escutai; a anedota é curta.
O
administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em
comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou
substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de
fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou
de reformar a roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à
mulher, nos dias de festa matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos
sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dous meses na suposição de uma eterna
interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o
lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse
pelas infelizes que deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se. Minha mãe
falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a cousa nenhuma.
― Não,
minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família, tornar
atrás... Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E
os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?
Que
público, senhor Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua mulher não
tem outra pessoa... e que há de fazer. Pois um homem... Seja homem, ande.
Pádua
enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo,
fechado na alcova ― ou então no quintal, ao pé do poço, como se a idéia da
morte teimasse nele. Dona Fortunata ralhava:
―
Joãozinho, você é criança?
Mas,
tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir a minha
mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar.
Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice
era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação
menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de
família, imitar a mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que acharia
forças para cumprir a vontade de minha mãe.
―
Vontade minha, não; é obrigação sua.
―Pois
seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.
Nos
dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no
chão. Nõ era o mesmo homem que estragava o chapéu em cortejar a vizinhança, risonho,
olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, a ferida
foi sarando. Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar
dos passarinhos, a dormir tranqüilo as noites e as tardes, a conversar e dar
notícias da rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo,
na figura de dous amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já
brincava, tinha o ar do costume; a
ferida sarou de todo.
Com
o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou a falar da administração
interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o vexame da perda,
mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a hégira,
donde ele contava para diante e para trás.
―
No tempo em que eu era administrador...
Ou
então:
―
Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dous meses antes...
Ora, espere; a minha administração começou... É isto, mês e meio antes; foi mês
e meio antes, não foi mais.
Ou
ainda:
―
Justamente; havia já seis meses que eu administrava...
Tal
é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade
sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que
com o vizinho Pádua se dava a lição de Elifas a Jó: “Não desprezes a correção
do Senhor; Ele fere e cura”.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro