sábado, 1 de setembro de 2012

GR



É conhecida a importância que tem o meio, o centro, para a análise das obras de Guimarães Rosa. Para mim, o encontro com o meio foi sempre a chave para a interpretação dos conjuntos de contos que interpretei.

Em Corpo de Baile, o conto do meio, “O Recado do Morro”, reúne os temas dos demais — os temas dos planetas clássicos —, articulando-os, no seu ir e vir, e dando-lhes unidade, o que foi analisado em A Raiz da Alma (Edusp, 1992) e em “A Pedra Brilhante” (em O Roteiro de Deus, Mandarim, 1996).

Em Primeiras Estórias, o conto do meio, “O Espelho”, é o fio de Ariadne para percorrer a coletânea, invertendo, num movimento especular de ida e volta, o tema do primeiro conto no último, como exposto em O Espelho (Mandarim, 1998).

Em Tutaméia, o centro surge curiosamente numa descentralização, como obliqüidade, como declinação, isto é, como queda de sua posição central: é formado pelos três contos cujos títulos têm, como iniciais, as letras do nome de João Guimarães Rosa — JGR, segundo examinado em As Três Graças (Mandarim, 2001).

E em Grande Sertão: Veredas? Haveria um centro organizador do romance?

“Pois bem — e posso dizer, porque outro crítico, que não tenho à mão para aqui transcrever, já o notou e revelou, também — acontece, no livro, a certo momento esta coisa: É que na página 306, da primeira edição (p. 292, da 2ª edição), começa um parágrafo enorme que dura quatro páginas. Começa com “Urubu?...” naquela página. E vai terminar na página 309 (da 1ª edição), (página 296, da 2ª edição). POIS BEM, nesse longo parágrafo, mais ou menos no meio do livro, o que temos é uma exposição, entrecruzada, de todos os motivos principais — sobre glosa, alongada, da canção de Siruiz. Um trançadinho de motivos; que são, aliás, muitíssimos mais do que os que o A.C. aponta, no trecho reproduzido acima. Achei que seria interessante o Meyer-Clason ficar com a atenção chamada para” (Carta de 29 de outubro de 1963 ao Cônsul-Geral do Brasil em Munique, Mário Calábria).

A carta de Guimarães Rosa para o Cônsul-Geral do Brasil em Munique, acima citada, indica, justamente, que o longo parágrafo que começa com a palavra ‘Urubu’, “mais ou menos no meio do livro”, contém uma articulação dos motivos da canção de Siruiz, canção misteriosa, que Riobaldo ouve na adolescência, como prenúncio de sua vida da jagunço. Tendo em conta que a vida de Riobaldo, representada em sua memória, é a matéria do romance, parece que os motivos da canção seriam, também, os motivos do livro: “Agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir” (p. 237).

Seguindo a orientação de Guimarães Rosa, examinemos as três estrofes da canção do Siruiz, que entremeei, abaixo, ao parágrafo indicado, com os trechos correspondentes grifados por mim. O parágrafo estende-se da página 235 à página 237 (7ª edição) e a canção do Siruiz está na página 93 da mesma edição.

Urubu é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida —
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...

“Urubu? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as igrejas, antiquíssimo — para morarem famílias de gente. Serve meus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter remorso; por isso, não tenho. Mas o demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que chegue a hora de se dançar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? Estive nessas vilas, velhas, altas cidades... Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão? Sertão: é dentro da gente. O senhor me acusa? Defini o alvará do Hermógenes, referi minha má cedência. Mas minha padroeira é a Virgem, por orvalho. Minha vida teve meio-do-caminho? Os morcegos não escolheram de ser tão feios tão frios —  bastou só que tivessem escolhido de esvoaçar na sombra da noite  e chupar sangue. Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus Gerais: voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias...

“Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti — água azulada,
carnaúba — sal do chão...

Diadorim, os rios verdes. A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia. Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água — carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? Eu queria formar uma cidade de religião. Lá, nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucuia. O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigri, minha mãe, fez uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe? Medeiro Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda. Medeiro Vaz morreu em pedra, como o touro sozinho berra feio; conforme já comparei, uma vez: touro preto todo urrucando no meio da tempestade. Zé Bebelo me alumiou. Zé Bebelo ia e voltava, como um vivo demais de fogo e vento, zás de raio veloz como o pensamento da idéia — mas a água e o chão não queriam saber dele. Compadre meu Quelemém outranto é homem sem parentes, provindo de distante terra — da Serra do Urubu do Indaiá. Assim era Joca Ramiro, tão diverso e reinante, que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já estivesse constando de falecido. Sô Candelário? Sô Candelário se desesperou por forma. Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a requerer e traçar. Ao que Joca Ramiro pousou que se desfez, enterrado lá no meio dos carnaubais , em chão arenoso salgado. Sô Candelário não era, de certo modo, parente do compadre meu Quelemém, o senhor sabe? Diadorim me veio, de meu não-saber e querer Diadorim — eu adivinhava. Sonhei mal? E em Otacília eu sempre muito pensei: tanto que eu via as baronesas amarasmeando no rio em vidro — jericó, e os lírios todos, os lírios-do-brejo — copos-de-leite, lágrimas-de-moça, são-josés. Mas Otacília era como se para mim ela estivesse no camarim do Santíssimo. A Nhorinhá — nas Aroeirinhas — filha de Ana Duzuza. Ah, não era rejeitã... Ela quis me salvar? De dentro das águas mais clareadas, aí tem um sapo roncador. Nonada! A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá puta e bela. E ela rebrilhava, para mim, feito itamotinga. Uns talismãs. A mocinha Miosótis? Não. A Rosa’uarda. Me alembrei dela: todas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão. Voltam, como os cavalos: os cavaleiros na madrugada — como os cavalos se arraçoam. O senhor se alembra da canção do Siruiz? Ao que aquelas croas de areia e as ilhas do rio, que a gente avista e vai guardando para trás. Diadorim vivia só um sentimento de cada vez. Mistério que a vida me emprestou: tonteei de alturas. Antes, eu percebi a beleza daqueles pássaros, no Rio das Velhas — percebi para sempre. O manuelzinho-da-croa. Tudo isso posso vender? Se vendo minha alma, estou vendendo também os outros. Os cavalos relincham sem causa; os homens sabem alguma coisa da guerra? Jagunço é o sertão. O senhor pergunte: quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo? Mas aquele menino, o Valtei, na hora em que o pai e a mãe judiavam dele por lei, ele pedia socorro aos estranhos. Até o Jazevedão, estivesse ali, vinha com brutalidade de socorro, capaz. Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente — o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo era Diadorim — mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otacília.

“Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...

“Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucuia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra dele. Uma musiquinha até que não podia ser mais dançada — só o debulhadinho de purezas, de virar-virar... Deus está em tudo — conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão. Igual aquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha. Ah, pacto não houve. Pacto? Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia tivesse de ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O pacto de um morrer em vez do outro — e o de um viver em vez do outro, então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus mesmo — posso? — então não desmancha na rás tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? Às vezes não aceito nem a explicação  do Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa falta. Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com a sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa — uma só, diversa para cada um — que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons — todo grau de pessoa. Mas, então , todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah, para o prazer e para ser feliz , é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porque. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais — a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar que o ‘Que-Diga’ existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem — que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo. Agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir” (p.235-237).


Heloisa Vilhena de Araujo
Palavra e Tempo
ensaios sobre Dante, Caroll e Guimarães Rosa
Mandarim. São Paulo. 2001.