terça-feira, 25 de setembro de 2012

EMANUEL E FEDERICO



Por tudo, mesmo sem precisão, ele não saía de cima do cavalo — estava com um machucão num pé — indo e vindo da capela, sol a sol vinte vezes, dez vezes, acompanhado sempre pelo rapazinho Promitivo. Não esbarrava. Não sabia de esforço por metade. Vai agorinha, um exemplo, deixava as mulheres na arrumação e tocava para a Casa, a ver a chegada de mais povo. Ativo e quieto, Manuelzão, ali à porta se entusiasmava, público como uma árvore, em sua definitiva ostentação. Embora dois dias para a véspera ainda faltassem, as pessoas de fora já eram em número. Gente de surrão e bordão, figuras de romaria. Alguns, tão estranhos, que antes de apear do cavalo invocavam em alta voz o louvor a Cristo-Jesus e esperavam de olhos quase fechados o convite para entrar com toda paz e mão irmã na hospitalidade geral. Outros, contando alguém doente em sua comitiva, imploravam licença para armar as tipóias ou latadas lá mesmo, na rechã descampada e ventosa, não distante da capelinha. Outros tangiam adiante cabeças de gado, sobradas para vender, pois também uma boiada estava-se ajuntando, devendo sair logo depois dos dias santos, conforme o grande aviso que Manuelzão difundira. — “...Siô, siô, mesmo aqui mesmo que a Simarra é?” — sempre sabiam. Pobres lazarados queriam ajudar em algum serviço; por devoção e esperança de comida. Até aleijados, até vultos ciganos, más mulheres, lindas moças — do rumo do Chapadão tudo é possível. Havia quem precisasse da caridade de agulha e linha para recoser suas roupas, urtigadas contra os espinheiros, no atravessarem trechos de caatinga. Um ou mais de um, três vezes armado no cinturão e com chapéu-de-couro claro quebrado adiante, não ditava de esconder sua má menção de brabo sertanejo, capaz de piorar assuntos; e Manuelzão, tanto quanto conseguia disfarçar um desgosto, acolhia-os proferindo que não era bem ele, mas sim a Nossa Senhora do Socorro, quem os agasalhava , aos que vinham para a respeitar e venerar. Principalmente mulheres, de trouxa à cabeça e pondo para a frente seus meninos, desciam a encosta — uma extensa encosta aladeirada, rachada de grotas de chuva roer, e pela qual se espalhavam, em quantidade, galhos verdes cortados de árvores, dos que os carreiros nas descidas usam para acorrentar à traseira de seus carros-de-bois, à guisa de freios. Aquém, no terço baixo dessa aba, era a Casa.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º vol.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.