Por
tudo, mesmo sem precisão, ele não saía de cima do cavalo — estava com um
machucão num pé — indo e vindo da capela, sol a sol vinte vezes, dez vezes,
acompanhado sempre pelo rapazinho Promitivo. Não esbarrava. Não sabia de
esforço por metade. Vai agorinha, um exemplo, deixava as mulheres na arrumação
e tocava para a Casa, a ver a chegada de mais povo. Ativo e quieto, Manuelzão,
ali à porta se entusiasmava, público como uma árvore, em sua definitiva
ostentação. Embora dois dias para a véspera ainda faltassem, as pessoas de fora
já eram em número. Gente de surrão e bordão, figuras de romaria. Alguns, tão
estranhos, que antes de apear do cavalo invocavam em alta voz o louvor a
Cristo-Jesus e esperavam de olhos quase fechados o convite para entrar com toda
paz e mão irmã na hospitalidade geral. Outros, contando alguém doente em sua
comitiva, imploravam licença para armar as tipóias ou latadas lá mesmo, na
rechã descampada e ventosa, não distante da capelinha. Outros tangiam adiante
cabeças de gado, sobradas para vender, pois também uma boiada estava-se
ajuntando, devendo sair logo depois dos dias santos, conforme o grande aviso
que Manuelzão difundira. — “...Siô, siô,
mesmo aqui mesmo que a Simarra é?” — sempre sabiam. Pobres lazarados queriam
ajudar em algum serviço; por devoção e esperança de comida. Até aleijados, até
vultos ciganos, más mulheres, lindas moças — do rumo do Chapadão tudo é
possível. Havia quem precisasse da caridade de agulha e linha para recoser suas
roupas, urtigadas contra os espinheiros, no atravessarem trechos de caatinga.
Um ou mais de um, três vezes armado no cinturão e com chapéu-de-couro claro
quebrado adiante, não ditava de esconder sua má menção de brabo sertanejo,
capaz de piorar assuntos; e Manuelzão, tanto quanto conseguia disfarçar um
desgosto, acolhia-os proferindo que não era bem ele, mas sim a Nossa Senhora do
Socorro, quem os agasalhava , aos que vinham para a respeitar e venerar.
Principalmente mulheres, de trouxa à cabeça e pondo para a frente seus meninos,
desciam a encosta — uma extensa encosta aladeirada, rachada de grotas de chuva
roer, e pela qual se espalhavam, em quantidade, galhos verdes cortados de
árvores, dos que os carreiros nas descidas usam para acorrentar à traseira de
seus carros-de-bois, à guisa de freios. Aquém, no terço baixo dessa aba, era a
Casa.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile
(sete
novelas) – 1º vol.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.