Resolvo-me
a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos — e, antes de
começar, digo os motivos por que silenciei e por que me decido. Não conservo
notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer do tempo,
ia-me parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir esta
narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças, esperei
que outros mais aptos se ocupassem dela. Não vai aqui falsa modéstia, como
adiante se verá. Também me afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas,
sem disfarces, com os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me
deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance; mas
teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente verdadeira? Que
diriam ellas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo
palavras contestáveis e obliteradas?
Restar-me-ia
alegar que o DIP, a polícia, enfim os hábitos de um decênio de arrocho, me
impediram o trabalho. Isto, porém, seria injustiça. Nunca tivemos censura
prévia em obra de arte. Efetivamente se queimaram alguns livros, mas foram
raríssimos esses autos-de-fé. Em geral a reação se limitou a suprimir ataques
diretos, palavras de ordem, tiradas demagógicas, e disto escasso prejuízo veio
à produção literária. Certos escritores se desculpam de não haverem forjado
coisas excelentes, por falta de liberdade — talvez ingênuo recurso de
justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém desfruta: começamos
oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e
social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda
nos podemos mexer. Não será impossível acharmos nas livrarias libelos terríveis
contra a república novíssima, às vezes com louvores dos sustentáculos dela,
indulgentes ou cegos. Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o
fizermos perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes,
ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu escrever. Apenas nos
suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume, Viagens
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.