Sua
casa. Sempre pudesse ser. Mas lá, a Samarra, não era dele. Manuelzão trabalhava
para Federico Freyre — administrador, quase sócio, meio capataz de vaqueiros,
certo um empregado. Porém Federico Freyre em bem uma vez por ano se lembrava de
aparecer, e Manuelzão valia como único dono visível, ali o respeitavam.Às
horas, quando na boa mira dum sonho consentido, ele chegava mesmo a se
sobre-ser, imaginando quase assim já fosse homem em poder e rico, com suas
apanhadas posses. Um dia, havia-de. Sempre puxara por isso, a duras mãos e com
tenção teimosa, sem um esmorecimento, uma preguiça, só lutando. Ele nascera na
mais miserável pobrezazinha, desde menino pelejara para dela sair, para pôr a
cabeça fora d’água, fora dessa pobreza de doer. Agora, com perto de sessenta
anos, alcançara aquele patamar meio confortado, espécie de começo de metade de
terminar. Dali, ia mais em riba. Tinha certeza. E na Samarra todos enchiam a
boca com seu nome: de Manuelzão. Sabiam dele. Sabiam da senhora sua Mãe, dona
Quilina, falecida. Sua mãe, que, meses antes, velhinha viera para aquele ermo,
visitando-o. Pudera ir buscá-la, enfim era a primeira ocasião em ue se via
sediado em algum lugar, fazendo de meio-dono. E ela pensara até que ele fosse
dono todo. A mãe apreciara aquilo, o Baixio da Samarra, a Vereda da Samarra, o
território. No tempo de adoecer, ela mencionara a mesa-de-campo, como o ponto
ideado para se erigir uma capelinha, a sobre.
Ela estava a se pensar? Lá mesmo Manuelzão a enterrou, confechando quase
à borda da chã um cemiteriozinho razoável, cercado de aroeiras, moirões que
podiam durar sem acaba, e coberto pelo capim duro do cerrado, no qual, no raiar
das madrugadas, o orvalho é azul e mata a sede. Ao lado, ergueu a capelinha.
Enquanto pôde uma folga, na lida. O principal da idéia da capelinha então tinha
sido de sua mãe. Mas ele cumprira. E ele inventara a festa, depois.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile
(sete
novelas) – 1º vol.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.