domingo, 30 de setembro de 2012

EMANUEL E FEDERICO



Sua casa. Sempre pudesse ser. Mas lá, a Samarra, não era dele. Manuelzão trabalhava para Federico Freyre — administrador, quase sócio, meio capataz de vaqueiros, certo um empregado. Porém Federico Freyre em bem uma vez por ano se lembrava de aparecer, e Manuelzão valia como único dono visível, ali o respeitavam.Às horas, quando na boa mira dum sonho consentido, ele chegava mesmo a se sobre-ser, imaginando quase assim já fosse homem em poder e rico, com suas apanhadas posses. Um dia, havia-de. Sempre puxara por isso, a duras mãos e com tenção teimosa, sem um esmorecimento, uma preguiça, só lutando. Ele nascera na mais miserável pobrezazinha, desde menino pelejara para dela sair, para pôr a cabeça fora d’água, fora dessa pobreza de doer. Agora, com perto de sessenta anos, alcançara aquele patamar meio confortado, espécie de começo de metade de terminar. Dali, ia mais em riba. Tinha certeza. E na Samarra todos enchiam a boca com seu nome: de Manuelzão. Sabiam dele. Sabiam da senhora sua Mãe, dona Quilina, falecida. Sua mãe, que, meses antes, velhinha viera para aquele ermo, visitando-o. Pudera ir buscá-la, enfim era a primeira ocasião em ue se via sediado em algum lugar, fazendo de meio-dono. E ela pensara até que ele fosse dono todo. A mãe apreciara aquilo, o Baixio da Samarra, a Vereda da Samarra, o território. No tempo de adoecer, ela mencionara a mesa-de-campo, como o ponto ideado para se erigir uma capelinha, a sobre.  Ela estava a se pensar? Lá mesmo Manuelzão a enterrou, confechando quase à borda da chã um cemiteriozinho razoável, cercado de aroeiras, moirões que podiam durar sem acaba, e coberto pelo capim duro do cerrado, no qual, no raiar das madrugadas, o orvalho é azul e mata a sede. Ao lado, ergueu a capelinha. Enquanto pôde uma folga, na lida. O principal da idéia da capelinha então tinha sido de sua mãe. Mas ele cumprira. E ele inventara a festa, depois.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile
(sete novelas) – 1º vol.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.