UMA
NAÇÃO CAPITU
Os
olhos de Capitu, de cigana oblíqua e dissimulada da personagem de Machado de
Assis são um patrimônio feminino brasileiro.
Como
seria interpretar, sobre um palco, a personagem Capitu, com seus olhos de
cigana oblíqua e dissimulada? É impossível, para uma atriz, dar conta
totalmente da complexidade desse olhar tão poderosamente descrito por Machado
de Assis em Dom
Casmurro. Cada um de nós teria,
certamente, o seu toque oblíquo, as suas olheiras de ressaca, a sua
dissimulação, o seu fluido misterioso e energético. A minha intuição me faria
interpretar Capitu com a absoluta crença de que esse olhar está, todo ele,
subdividido no olhar da brasileira. Todas nós somos Capitu. Esse olhar nos
pertence. E só a nós. É um patrimônio do feminismo brasileiro.
Machado
nos ensinou a vê-lo e o equacionou. Esse olhar é a nossa miscigenação, a nossa
aparente submissão, são as nossas olheiras amorosamente gulosas, quentes e
erotizadas. É o olhar que denuncia a marginal vitória desse ser-mulher
colonizado. Olhar de quem dissimuladamente aceita o jogo surdo, silencioso, de
carrasco e vítima, jogo fascinante e cruel na aparente aceitação das diversas
manifestações do relacionamento humano. Essa luta dolorosa fascina Dom Casmurro
porque ela é jogada no campo da dúvida.
Ao
descrever Capitu, Machado esclarece: “Retórica dos namorados, dá-me uma
comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não
me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca?
Vá, de ressaca. Nessas circunstâncias, o autor lança mão da imagem da cigana
(presença marginal), do olhar de ressaca (visão de uma carne indomável) e do
olhar oblíquo (não definido, não confiável, dissimulado).
Os
olhos mostram o que desejamos ver por meio deles. É sempre também o reflexo, a
projeção de quem olha. Esse perscrutar de olhares se apresenta desde o primeiro
momento em que os hormônios começam a latejar. Não é só o menino que é o pai do
homem. A menina também é a mãe da mulher. Os heróis de Dom Casmurro se conheceram na adolescência. Com mais luz ou menos
luz, os olhos de uma menina de 14 anos já denunciam o olhar de toda uma vida.
Dom Casmurro é um tratado sobre o olhar. Capitu é emblemática.
Bentinho
descreve seu próprio olhar, olhando Capitu. Ouso falar sobre Capitu como atriz.
Como se estivesse analisando um texto de dramaturgia, juntamente com um elenco,
ao redor de uma mesa. Não estou aqui me arvorando em crítica literária. E como
mulher de palco digo que, se eu tivesse tido na minha vida a oportunidade de
tentar interpretar Capitu, partiria do ponto de vista de sua clara, profunda e
inconfundível brasilidade.
Não
estou circunscrevendo Capitu à nossa aldeia. Ela é universal como literatura e
como perfil de mulher. Indo além do que já ousei e me arrisquei nestes
parágrafos, intuo que, embora o Brasil seja nome masculino, nosso país, por
nossa complexidade oblíqua, energética, misteriosa, pela nossa história contada
sempre de uma forma tão dissimulada e pelo fascínio tão decantado de nossos
trópicos, é, no fundo, uma nação Capitu.
Fernanda
Montenegro
em
Quem é Capitu?
org.
de Alberto Schprejer
Nova
Fronteira. Rio de Janeiro.
2008.