Os
homens do primado espiritual viviam bem, tratavam do corpo, mas nós,
desgraçados materialistas, alojados em quartos de pensão, como ratos em tocas,
a pão e laranja, como se diz na minha terra, quase nos reduzimos a simples
espíritos. E como outros espíritos miúdos dependiam de nós, e era preciso
calçá-los, vesti-los, alimentá-los, mandá-los ouvir cantigas e decorar feitos
patrióticos, abandonamos as tarefas de longo prazo, caímos na labuta diária,
contando linhas, fabricamos artigos, sapecamos traduções, consertamos
engulhando produtos alheios. De alguma forma nos acanalhamos. Por que foi que
um dos meus livros saiu tão ruim, pior que os outros? pergunta o crítico
honesto. E alinha explicações inaceitáveis. Nada disso: acho que é ruim porque
está mal escrito. E está mal escrito porque não foi emendado, não se cortou
pelo menos a terça parte dele.
Aqui
findo o resumo dos empecilhos até hoje apresentados à narração que inicio. Terão
eles desaparecido? Alguns se atenuaram, outros se modificaram, determinam o que
impediam, converteram-se em razões contrárias. Estarei próximo dos homens
gordos do primado espiritual? poderei refestelar-me? Não, felizmente. Se me
achasse assim, iria roncar, pensar na eternidade. Quem dormiu no chão deve
lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em
tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita:
inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze. Contudo é indispensável um
mínimo de tranqüilidade, é necessário afastar as miseriazinhas que nos
envenenam. Fisicamente estamos em repouso. Engano. O pensamento foge da folha
meio rabiscada. Que desgraças inomináveis e vergonhosas nos chegarão amanhã?
Terei desviado esses espectros? Ignoro. Sei é que, se obtenho sossego bastante
para trabalhar um mês, provavelmente conseguirei meio de trabalhar outro mês. Estamos
livres das colaborações de jornais e das encomendas odiosas? Bem. Demais já
podemos enxergar luz a distância, emergimos lentamente daquele mundo horrível
de treva e morte. Na verdade estávamos mortos, vamos ressuscitando.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. Viagens. (Obra póstuma).
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1953.